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5.1 O acolhimento em saúde mental – É um perigo deitar nessa rede furada!

5.1.2 Responsabilização e Rede de cuidados

Tomando por base a portaria n.º 336/02, artigo 1º, parágrafo 4, alínea a:“cabe ao CAPS responsabilizar-se, sob coordenação do gestor local, pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território”. Alínea b: “possuir capacidade técnica para desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial no âmbito do seu território e/ou do módulo assistencial, definido na Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS), de acordo com a determinação do gestor local”. E, a portaria n.º 3088/11, artigo 7º, parágrafo 3: “O cuidado, no âmbito do Centro de Atenção Psicossocial, é desenvolvido por intermédio de Projeto Terapêutico Individual, envolvendo em sua construção

a equipe, o usuário e sua família, e a ordenação do cuidado estará sob a responsabilidade do Centro de Atenção Psicossocial ou da Atenção Básica, garantindo permanente processo de cogestão e acompanhamento longitudinal do caso”.

Reconhecemos que não é possível acolher o sofrimento da pessoa que adentra ao serviço sem o CAPS exercer seu papel de articulador da rede. Acolher é responsabilizar-se pela demanda que chega, independentemente se será acompanhado ou não no serviço. Corroborando com as portarias ministeriais, o cuidado em liberdade, para Lobosque (2011), demanda uma rede descentralizada e desdobra-se na tessitura do espaço social, tornando-se cada vez menos técnica e menos sanitarizada. Cabe sinalizar que articular não é o mesmo que organizar a Rede. Como a autora aponta, o CAPS tem certa tendência de fechar-se em si mesmo, tornando centralizador, no entanto, cabe a ele convocar os diferentes pontos da rede como atores da territorialização que buscamos. Faz-se urgente o movimento para fora, para o âmbito mais amplo da rede.

A equipe do CAPS é a referência na organização da rede assistencial do sistema local de saúde, devendo articular diálogo permanente, apoio e intercâmbio para o planejamento, avaliação, organização e execução das ações no âmbito da saúde mental. Ainda, tecer uma rede ativando os mais diversos recursos existentes no território, estabelecendo alianças com outros setores e segmentos sociais (YASUÍ, 2006).

A preocupação em estabelecer conexões setoriais já vinha sendo sinalizada desde a III conferência de saúde mental como descrito no relatório da IV conferência46. Nele, aponta

que esta última permitiu a convocação não só dos setores diretamente envolvidos com as políticas públicas da saúde, mas, todos aqueles que pudessem indagar e propor intervenções no campo da saúde mental, como o próprio relatório descreve:

A convocação da intersetorialidade, de fato, foi um avanço radical em relação às conferências anteriores, e atendeu às exigências reais e concretas que a mudança do modelo de atenção trouxe para todos. Desde a III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada no ano de 2001, cresceu a complexidade, multidimensionalidade e pluralidade das necessidades em saúde mental, o que exigiu de todo o campo a permanente atualização e versificação das formas de mobilização e articulação política, de gestão, financiamento, por matização e avaliação e construção de estratégias inovadoras e intersetoriais de cuidado (BRASIL, 2010).

Para a articulação dos diferentes campos, como a Educação, Cultura, Habitação, Assistência Social, Esporte, Trabalho, Lazer, Universidade, Ministério Público, deve-se

46 Intitulada: IV Conferência de Saúde Mental – Intersetorial. Ocorreu no período de 27 de junho a 1 de julho de

estabelecer diálogo intenso, reconhecendo e respeitando as especificidades de cada um. Os conflitos surgidos precisam ser negociados, nesta direção torna-se essencial encontros para debater os temas que perpassem a todos, é crucial unir forças na busca da melhoria da qualidade de vida, da inclusão social e da construção da cidadania. É uma dimensão fundamentalmente política. Urge aos serviços conviver com a diferença, aprender articular saberes/fazeres fragmentados e isolados, para construção do cuidado em saúde mental (YASUÍ, 2006).

No entanto, muitos são os entraves para a efetivação da rede, como podemos perceber ao longo do trabalho de campo. A grande demanda na atividade de acolhimento do serviço não se restringia a uma escuta pontual para amenizar a angústia. Exigia muito mais, convocava a família, que por sua vez também estava implicada no processo de adoecimento, invocava a atenção básica (que além de não receber demandas consideradas não graves, encaminhava grande parte dos usuários ao CAPS), provocava a assistência social, as clínicas escolas, a justiça..., porém, cabia exclusivamente ao CAPS a tarefa de receber todo esse contingente de pessoas e remeter a uma lista de espera. O serviço estava num ponto isolado da imaginária rede e “o perigo de deitar nessa rede” não estava restrito ao usuário, apenas, mas, também ao profissional do serviço, que se via paralisado frente a rede furada, insegura, incomunicável e ineficaz.

Lobosque (2011) também pontuou alguns entraves para a efetivação da rede, que dialogam com nossa pesquisa, dentre eles a escassez de CAPS III (como acolher a crise depois das 17h? Considerando que além do CAPS, outros dispositivos também não acolhem o paciente no período noturno, tais como, a atenção básica, centros de convivência, entre outros). Outro desafio é a inclusão da atenção básica na rede de cuidados, sendo o ponto mais próximo do usuário no âmbito do território, o vínculo deve incluir a parceria com as equipes de Saúde da Família, tornando-se necessário o matriciamento47pelas equipes de saúde mental. Inclusive,

Um índice expressivo da presença real da Reforma num território dado se expressa quando o portador de sofrimento mental é, como qualquer outro usuário, acolhido e escutado pela equipe do PSF ao chegar à unidade básica, e encaminhado devidamente,

47 Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2011), matriciamento ou apoio matricial é um novo modo de produzir

saúde, um tipo de cuidado colaborativo, envolvendo duas ou mais equipes. Pela construção compartilhada, constroem um projeto de intervenção pedagógico-terapêutica. Esse novo modelo, formulado por Gastão Wagner Campo, no município de Campinas-SP; possibilitou estruturar um tipo de cuidado colaborativo entre a saúde mental e a atenção primária. Tradicionalmente, os sistemas de saúde se organizam de uma forma vertical (hierárquica), transferindo de responsabilidade ao encaminhar. A comunicação entre as equipes ocorre(quando ocorre) de forma precária e irregular, geralmente por meio de parecer e formulários de contrarreferência, muitas vezes sem resolubilidade. A nova proposta visa transformar a lógica tradicional dos sistemas de saúde: encaminhamentos, referências e contrarreferências. “Os efeitos burocráticos e pouco dinâmicos dessa lógica tradicional podem vir a ser atenuados por ações horizontais que integrem os componentes e seus saberes nos diferentes níveis assistenciais” (P. 15).

se necessário, à equipe de Saúde Mental. E, vice-e-versa, quando o seu acompanhamento pela Saúde Mental, seja na própria unidade básica seja no CAPS, não desresponsabiliza o PSF dos cuidados que lhe cabe oferecer (p. 39).

Neste novo modelo de organização por rede, as potencialidades dos territórios são reforçadas, o cuidado não estaria limitado a um ponto, mas a todos. A lógica do encaminhamento deve ser substituída pela responsabilização compartilhada, ou seja, o acompanhamento do usuário na rede passa a ser acompanhado seja na atenção primária, seja nos CAPS ou em outro serviço na rede de cuidados. Para que o processo de desinstitucionalização aconteça, como já sinalizava Amarante (1996), é fundamental que diferentes atores sociais estejam implicados no cuidado, sintam-se convocados à responsabilização procurando evitar o abandono e a desassistência.

Yasuí (2006), tomando por base os estudos desenvolvidos por Nicácio em Santos, afirmou que os NAPS48 responsabilizavam-se no plural e no singular. No plural, voltados para

o território onde estava inserido, mapeando-o, reconhecendo suas características e demandas, buscando construir estratégias de cuidados que não se limitavam ao espaço físico, porém iam além, para os espaços de circulação da vida. No singular, responsabilizavam-sepela pessoa em sofrimento, não somente na crise, mas além dela, construindo projetos de vida.

Segundo o autor, o conceito de responsabilização apresentado pelos serviços de saúde mental de Santos inspirou-se na experiência italiana de desinstitucionalização, nomeada por “tomada de responsabilidade”. Representava um papel ativo na promoção de diferentes recursos. Uma vez assumindo a demanda do paciente, o serviço adota todo o alcance social desta demanda convocando as organizações sociais e acompanhando todo o percurso da pessoa. Não existiria um lugar onde ocorreria a tomada de responsabilidade, ela acontece no serviço de saúde mental, em outro dispositivo de saúde ou não, mas sobretudo, na vida do paciente.

É claro que ao abordar a tomada de responsabilidade do CAPS no processo do cuidado nos remetemos às condições nas quais o serviço está submetido. O conceito de Responsabilização se articula no contexto de uma política pública brasileira construída a partir de um processo histórico de lutas políticas desde a década de 70, pela redemocratização do país e da construção de uma sociedade mais justa. Em 1990, foi promulgada a Lei Orgânica da Saúde nº. 8080/90 criando o Sistema Único de Saúde (SUS), organizado em torno de três diretrizes: a descentralização, com direção única em cada esfera de governo; o atendimento integral e a

48Os NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial) surgiram juntamente com o CAPS, como proposta de se tornar

substitutivo ao modelo hospitalocêntrico. Instituído através da Portaria 224, em janeiro de 1992, que estabelecia as diretrizes e normas para a assistência em saúde mental (NAPS/CAPS). A partir de 2002, através da Portaria 336 de 19 de fevereiro, os NAPS passam a ser denominados CAPS.

participação da comunidade. Considerando ainda a lei 8142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde; contamos com 126 dispositivos legais que colocam a saúde como uma política pública de responsabilidade do Estado, em sua esfera federal, estadual e

municipal (YASUÍ, 2006). A responsabilização do paciente pelo CAPS ou pela rede, só será efetivada quando estes estiverem minimamente equipados de material e de profissionais qualificados e comprometidos com uma assistência desisntitucionalizante. Não existe mágica, não existe rede, não existe CAPS, se não houver investimento e comprometimento por parte do poder público. Voltaremos a este ponto mais adiante ao abordar a categoria condições de cuidado.