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6 O ENCONTRO ENTRE MEMÓRIA, BIBLIOTECA E COMUNIDADE

6.1 Em busca da memória: caracterização das ações de promoção da memória

6.1.2 O projeto Histórias e Quintais

No bairro Jardim Iracema, a busca pelas memórias comunitárias adentrou a intimidade dos quintais do bairro através do projeto Histórias e Quintais, o qual revela-se como sendo o principal movimento de promoção da memória e cultura local. Segundo as informações coletadas nas entrevistas, o Histórias e Quintais nasceu no ano de 2011, como uma iniciativa que reúne os esforços do PROCIF e outros segmentos do projeto, entre eles a BCCF e o grupo de bordadeiras “Convivência e Arte”.

Conforme narra a diretora do PROCIF, o objetivo de criação desse projeto foi promover momentos de encontro e avivamento das memórias e da história local. E, de acordo com ela, outra razão para criação do Histórias e Quintais surgiu,

[...] da necessidade de nós termos uma maior participação por parte dos pais, os pais geralmente têm muita dificuldade de participar. E aí nós resolvemos ir até eles através de uma ação, dentro de alguns quintais que ainda existem na comunidade. (Diretora do PROCIF, E4)

Desse modo, percebe-se que de forma semelhante ao projeto Tecendo Memórias, o Histórias e Quintais surge com duplo objetivo, buscando de forma simultânea: promover as memórias comunitárias e atuar como um canal de aproximação do público adulto das comunidades.

No Histórias e Quintais, a preparação de cada encontro envolve, primeiramente, a busca de um quintal do bairro para sua realização. Busca essa, que de acordo com as entrevistadas, se encontra cada vez mais complicada, pois, existem poucos quintais na comunidade com dimensões que possibilitem a realização de um evento para grande número de pessoas. Após a escolha do quintal, é feita uma pesquisa junto à família anfitriã do encontro e dos moradores do entorno, por meio da qual se busca descobrir histórias que possam ser exploradas durante a realização do encontro. Segundo uma das entrevistadas,

[...] com o passar do tempo, esses quintais foram agregando outras coisas, e é importante dizer, que mesmo trabalhando com as memórias, cada quintal é diferente, porque as histórias são muito ricas, a gente trabalha com a história do dono da casa, com a pessoa que tá ali. E aí a gente fica, ah meu Deus do céu, onde vai ser o próximo quintal, então uma convidada se ofereceu e disse eu quero que o próximo quintal seja na minha casa. Cada quintal as pessoas se ofereciam, elas diziam ah eu quero que seja na minha

casa, e tinha realmente o apoio desse grupo. (Arte-educadora do PROCIF, E5)

A programação desses encontros é marcada principalmente pela partilha de memórias, que ocorre tanto através da oralidade, como também por meio da exposição de objetos, como utensílios domésticos e fotografias das famílias e dos vizinhos. Na programação, existem, ainda, momentos de mediação de leitura, apresentação de dança, teatro, dentre outras coisas.

Segundo conta uma das idealizadoras do projeto, os primeiros encontros do Histórias e Quintais teve como cenário os quintais das casas das mulheres do grupo de bordadeiras “Convivência e Arte”. Sobre as primeiras edições do projeto, ela relata que:

[...] tinha, também, essa intenção de resgatar essa medicina popular sabe, através da partilha do chá, então tinha aquele momento de partilha dos chás, aí levava bolo, e o dono da casa sempre oferecia alguma coisa né. Aí ela fez também, fez um chá tirado do próprio quintal né. Então a gente falou sobre o que era bom pra isso, como era o bairro no nosso tempo. Aí sim, então outra bordadeira ofereceu seu quintal pra fazer na sua casa, então o segundo quintal, teve também algumas pessoas. Então, cada quintal tinha algum tema, um mote, passou a ter um mote. (Arte-educadora do PROCIF, E5)

Em suas edições, o projeto reviveu as histórias sobre antigos mitos locais, como, por exemplo, a lenda da “Cobra Isaura”, que segundo o folclore local diz respeito à história de uma jovem chamada Isaura, que era tão bela que causava sentimentos de inveja nas outras moças do bairro. Tal inveja teria culminado em um feitiço que amaldiçoou Isaura a se transformar em uma enorme cobra, que até hoje – segundo dizem – assombra a “Lagoa do Urubu”, situada entre os bairros Jardim Iracema, Padre Andrade, Presidente Kennedy e Floresta.

Além dos mitos e lendas, os encontros buscam relembrar também os artesanatos, os costumes e a memória musical dos bailes antigos. Nesse sentido, em uma das edições do projeto, foi organizado o “Baile nos Quintais”, que segundo a arte-educadora do PROCIF ocorreu, “à luz de lamparina, então, foi muito bom, porque elas cantavam, e se formavam uns grupos de quatro. Nesse intermédio, tinham as histórias, por exemplo, como era que se cantava, com era naquele tempo, como pra debulhar feijão se cantava né.” (Arte-educadora do PROCIF)

Imagem 10 – Baile nos Quintais

Fonte: Acervo de documentos do PROCIF.

Durante a realização do estudo de campo, foi possível acompanhar e participar de dois encontros do Histórias e Quintais. O primeiro deles, realizado em setembro de 2017, teve como tema a trajetória do PROCIF junto à comunidade do Jardim Iracema. Para formar uma espécie de linha do tempo, foram expostas fotografias antigas e recentes no varal da anfitriã, nas quais haviam registros das ações do PROCIF. Pelo conjunto de fotografias, nota-se a forma como, em sua primeira década, nos anos 1980, o foco das ações do PROCIF estava voltado ao assistencialismo. Nas imagens relativas aos anos 1990 em diante, observou-se aumento de atividades socioculturais realizadas pelo projeto, refletindo aquilo que as entrevistadas informaram acerca do histórico da BCCF e do PROCIF.

A edição, ocorrida em setembro de 2017, iniciou com os últimos raios de sol da tarde. A abertura do encontrou sucedeu-se com músicas e ciranda, passando, posteriormente, à realização de mediações de leitura. Com o crepúsculo, principiaram-se as partilhas de memórias da anfitriã e dos demais convidados e participantes. Crianças, jovens e adultos participaram desse momento e relataram de que forma o projeto auxiliou em vários aspectos de suas trajetórias de vida. Entre as partilhas, houve espaço também para as memórias relacionadas aos “causos” e histórias conhecidas na vizinhança. No final do encontro, foram feitos os agradecimentos da anfitriã e dos organizadores do projeto e, para encerrar a noite, os participantes foram convidados a formar juntos uma grande ciranda.

Imagem 11 – Histórias e Quintais, setembro de 2017

Fonte: Dados da pesquisa (2018)

Diferentemente da edição realizada em setembro, o encontro do História e Quintais realizado no mês de dezembro de 2017, teve como cenário não um quintal, mas o pátio de uma escola pública de ensino médio do bairro Jardim Iracema. O objetivo dessa edição foi levar a esses jovens um pouco sobre a memória da vizinhança em que se encontra o colégio onde estudam.

Seguindo a mesma forma de preparação dos demais encontros, a equipe do projeto colheu informações sobre a história da escola com os moradores mais antigos da rua, a qual foi partilhada pela mediadora do encontro para os alunos, professores e pais presentes. As narrativas daquela tarde ficaram por conta, também, de um convidado especial, um antigo morador e contador de histórias do bairro, que narrou para os presentes alguns fatos sobre a fundação do bairro e das características do ambiente da comunidade no passado. Durante o evento houve, ainda, apresentações dos participantes dos grupos de música, dança, e hip hop do PROCIF. Para finalizar, alguns alunos da escola anfitriã apresentaram músicas e poemas.

Imagem 12 – Histórias e Quintais, dezembro de 2017

Os encontros do Histórias e Quintais, orientam a perceber a existência de um comprometimento com a busca e a promoção da memória e da cultura local; buscando trazer à tona as memórias ligadas à história local, às ruas, aos vizinhos, aos colégios, às músicas, aos mitos e saberes populares. Percebeu-se, ainda, a existência de movimento de integração e promoção das iniciativas de cunho cultural do PROCIF e da BCCF, através das mediações de leitura, dos artesanatos, das danças e músicas apresentadas nesses encontros.

Destarte, como se verá mais adiante, ao explorar as narrativas orais dos participantes dos projetos Tecendo Memórias e Histórias e Quintais, percebe-se que esses projetos oferecem não só momentos de encontro entre os moradores, mas, também, a possibilidade de que estes possam ouvir e contar suas próprias histórias. E, por mais simples que essas narrativas pareçam, é preciso considerar a dinâmica maior que decorre desses projetos, pois, ao promover momentos de encontro entre os indivíduos da comunidade, possibilita-se que estes se pronunciem, escutem, e conheçam mais sobre o contexto e as pessoas com as quais convivem.

Com efeito, pode-se dizer que há algo de muito similar ao que Paulo Freire (1984) desejou ver na atuação de uma biblioteca popular. Esta, deve se distanciar de um perfil passivo, devendo contribuir para a formação de cidadãos conscientes de sua história e que se posicionem como sujeitos históricos.

Além desses projetos, pôde-se identificar outros modos pelos quais as bibliotecas pesquisadas promovem os aspectos da memória e cultura local, como por exemplo, a inserção de temáticas ligadas à comunidade nas mediações de leitura, nos saraus e outras atividades das bibliotecas.

Sobre esse aspecto, foi possível presenciar na BCSC uma mediação de leitura realizada proximamente ao dia do Halloween, ocasião na qual se realizou uma atividade, que buscou relembrar as memórias das crianças presentes, as lendas populares de assombração e do folclore, entre elas, a lenda da “Loira do banheiro”, a “Mula-sem-cabeça”, e o “Batatão5”.

Na BCCF, de acordo com a mediadora de leitura, ao planejar as atividades de mediação de leitura realizadas semanalmente, as equipes buscam incluir temas relacionados às questões sociais, históricas e culturais locais. A entrevistada conta também que, em uma das práticas realizadas na biblioteca, um antigo morador do bairro foi convidado para contar histórias da comunidade para as crianças do grupo de mediação, e segundo ela,

5 Lenda sobre uma bola de fogo que persegue as pessoas em zonas de mata durante a noite. Também conhecido

Ele veio para a biblioteca aqui, ele contou um pouco da história, para as crianças conhecer e valorizar a história do bairro delas, que é o Jardim Iracema, aí contou a lenda da Cobra Isaura, que é uma lenda que diz que existe uma cobra lá na lagoa do urubu. (Mediadora de Leitura da BCCF, E7)

Outra atividade promotora de memórias locais identificada na BCCF, ocorreu através do projeto “Pé na Rua” realizado em junho de 2017. Nessa edição, foi organizada a “Tenda da Memória”, na qual foi criada uma espécie de túnel do tempo em que foram expostas fotos antigas do bairro, assim como objetos antigos dos moradores, máquinas de escrever e outros utensílios.

Na edição do “Pé na Rua” realizada em outubro de 2017, o evento trouxe a oportunidade de reviver as brincadeiras e jogos da infância. Essa edição teve como tema principal às histórias do personagem “Menino Maluquinho” do escritor Ziraldo e o intuito de fazer com que as crianças e adultos relembrassem brincadeiras como “pular corda” e “amarelinha”.

Imagem 13 – Pé na Rua, outubro 2017

Fonte: Dados da pesquisa (2018).

Ademais, é preciso considerar que, para além das ações descritas, existe um “tecer de memórias” permeado no fazer cotidiano dessas bibliotecas comunitárias, a exemplo das memórias leitoras formadas através dos livros lidos ou “ouvidos” nas mediações de leitura, bem como nas comemorações, festas, relações de amizade, encontros, diálogos e sentimentos que se constroem junto à biblioteca.

Isto posto, entre formas explícitas e implícitas, tornou-se perceptível a existência de movimentos em busca das memórias comunitárias presentes nos processos de atuação das bibliotecas comunitárias “Sorriso da Criança” e “Criança Feliz”. Traçando um diálogo entre aquilo que se pôde observar nas bibliotecas e os pontos elencados por Prado e Machado

(2008) acerca da biblioteca comunitária como território de memória; pôde-se inferir que a partir de suas ações, esses espaços buscam promover os aspectos culturais das comunidades em que se inserem, de modo a fazer com que os moradores sejam ao mesmo tempo usuários e partícipes das tessituras realizadas nas ações culturais desenvolvidas.

6.2 Expressões da memória, cultura e identidade através da biblioteca comunitária