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Propedêutica Psicofisiológica: a Metáfora da Aranha e o “Funcionamento

No documento Denis Diderot: uma estética do corpo musical (páginas 151-156)

CAPÍTULO II O HUMANO SONORO OU O CORPO MUSICAL

1) Propedêutica Psicofisiológica: a Metáfora da Aranha e o “Funcionamento

Diderot reúne num todo vital, a humanidade tradicionalmente estilhaçada em pedaços opostos. Vai então criar um novo plano narrativo que transporte o pensamento do homem reconciliado para uma linguagem tão viva que, através do poder analógico das metáforas, penetre a quase inefável sonoridade ou musicalidade da estátua-humana enquanto todo orgânico renascido.

Para que se possa reescrever a estrutura sonora do corpo e do homem unitário, coloca-se como imperativa a necessidade de esclarecer o modo como funciona o cérebro, o sensorium commune diderotiano, órgão cuja actividade não subsiste por si e em si, mas que se cumpre a partir da sua solidariedade dinâmica com as fibras nervosas. Assim, a concepção antropológica diderotiana apresenta o espírito e o corpo ligados, o que pressupõe a aproximação da psicologia relativamente à fisiologia que, segundo ele, fazem parte integrante do sujeito humano, desta unidade organizada que se explica através do funcionamento do cérebro e das conexões que este órgão estabelece com os outros órgãos corporais. Esta vida relacional corroborada nos mecanismos cerebrais permite ainda que a fisiologia e a afectividade se entrecruzem a tal ponto que o autor chegue a conciliar as doenças com as paixões. De facto, ambas provocam uma manifestação física, quantificável e visível, como a alteração do ritmo pulsional do sujeito sentinte. Neste sentido, as paixões tornam-se, antes de mais, estados fisiológicos que se definem pelos comportamentos, representativos de atitudes físicas e psicológicas, que se despoletam nos seres humanos concretos. Por exemplo, uma mulher que fecha as portas ao prazer, revela nos seus comportamentos um desejo constante de solidão e um estado permanente de melancolia que conduz, por seu turno, à doença dos vapores. Segundo T. Bordeu, o segredo da cura ou o remédio conveniente está na transformação comportamental da paciente, através da aquisição de novos hábitos de vida mais ligados à alteridade natural: aprender a viver como uma camponesa, acostumando-se a dormir sobre a palha e a alimentar-se de pão duro.

a plus de remède? [...] Où est-ce que l’homme, ne se considérant que comme un être d’un instant et qui passe, traite les liaisons les plus douces de ce monde, comme un voyageur les objets qu’il rencontre, sans attachement? [...] Où est le séjour de la cruauté [...]?”

A inspiração artística é um outro exemplo desta correlação psicofisiológica e afectiva, visto que provoca entusiasmo e, ao mesmo tempo, o estado febril na carne do sujeito que a sente.

Diderot concebe o cérebro como o centro da actividade psicofisiológica. Trata-se de um “aparelho” ou órgão de registo que guarda todos os impulsos recebidos. Estes impulsos de origem interna ou externa denominam-se sensações. Mas a vida psicofisiológica humana não é explicável por simples sensações. Neste sentido, há que acrescentar outros elementos constitutivos a esta incompletude narrativa, como a memória, o hábito e a imaginação que intervêm na interpretação dos estímulos recebidos e na afinação dos órgãos sensoriais, ultrapassando, muitas vezes, os contributos informativos através da recriação pela ilusão. Neste aspecto116, o autor assemelha-se a C. Bonnet: este último também precisou o substrato orgânico dos nossos actos mentais e, simultaneamente, recorreu à combinatória e ao livre jogo das fibras nervosas para justificar a diversidade de fenómenos vitais como a sensação, a memória, a imaginação, entre outros. Segundo Belaval, as ideias de C. Bonnet demarcaram-se pela ousadia e actualidade comprovadas, como se compreende nas próximas palavras: “Estas ideias, audaciosas e singulares, merecem atenção; o cérebro humano aparece assim como uma das nossas máquinas cibernéticas modernas, e as fibras de C. Bonnet poderiam sem solicitação do seu pensamento ser assimiladas aos neurónios.”117

Para Diderot, o cérebro é definido como “[...] a massa mole, onde têm origem e a partir da qual se distribuem os nervos ou cordas que sentem, e que está contida na cabeça dos animais [...].”118 Contudo, apesar da unidade implícita no termo cérebro, a sua organização exige a pluralidade, de tal modo que se deve falar em organizações no mundo animal e até no próprio mundo humano. Por esta razão, o autor expressa esta diversidade na unidade, afirmando que: “Nada de tão diverso, de tão composto como o cérebro; não menos diversidade neste órgão do que nas fisionomias.”119

116

C. Bonnet diferencia-se de Diderot quanto ao modo como entende a evolução ou o simples desenvolvimento da natureza sem qualquer intervenção do conceito de cadeia contínua desde o mineral até ao animal. Nega, igualmente, qualquer geração, porque todos os seres atingem o seu estado de perfeição por esta evolução que exige a coexistência das partes. Ilustram-se estas ideias com os casos do desenvolvimento da borboleta e do frango.

117

I. Belaval, Études sur Diderot, p. 270: “Ces idées, audacieuses et singulières, méritent attention; le cerveau humain apparaît ainsi comme une de nos machines cybernétiques modernes, et les fibres de Bonnet pourraient sans sollicitation de sa pensée être assimilées aux neurones.”

118

D. Diderot, Éléments de Physiologie, p. 78: “[...] la masse molle, d’où naissent et se repandent les nerfs ou cordes sentantes, et qui est contenue dans la tête des animaux [...].”

119

D. Diderot, idem, p. 83: “Rien de si divers, de si composé que le cerveau; pas moins de diversité dans cet organe que dans les phisionomies.”

O homem diderotiano possui um corpo integral que contém em si mesmo o cérebro, que adquire uma “fisionomia” relacional de aracnóide, porque ele é o centro unitivo corpóreo, base da convivencialidade e da comunicação entre todos os órgãos que, por serem autónomos, se comprometem, unindo-se uns aos outros através dos tecidos erguidos através da engenharia natural. Estes tecidos ou redes de fios asseguram não só esta unidade orgânica simpática, como também a defesa do nosso tesouro nervoso: o cérebro, ao qual se acrescenta, pela proximidade provada, um outro tesouro a quem damos o nome de espinal-medula ou de cordão espinal, cordão peculiar por ser o centro da actividade reflexa.

Diderot retrata-nos o cérebro, na obra Elementos de Fisiologia, como um órgão central que possui ligações com outros órgãos como o cerebelo, a glândula alongada e a glândula pineal. Fala de duas membranas ou meninges não irritáveis e comparáveis a dois invólucros fechados e protegidos pela derme e epiderme. À primeira chama

Pia-Mater ou Aracnóide e à segunda Dura-Mater. Compreendemos que o autor só viu

duas meninges quando identificou a Pia-Mater com a Aracnoideia. Actualmente, pelo contrário, distinguem-se três meninges ou protecções vivas no corpo natural e musical: a

Dura-Mater, que é uma membrana fibrosa, dura, densa e externa que envolve o tesouro

nervoso vital anteriormente explicado; a Aracnoideia que é uma membrana delgada e transparente que as veste, situando-se entre a Dura-Mater e a Pia-Mater, designação que significa “Mãe Piedosa” e que se atribui à membrana mais profunda que, de mais perto, as protege e toca.

Segundo Diderot, todos os elementos sólidos do corpo humano são feitos de fibras que originam feixes, implicando, obrigatoriamente, que a substância cerebral contenha fibras esbranquiçadas espalhadas por toda a sua extensão: as fibras nervosas. Por seu turno, uma fibra simples que pode ser ou não de natureza nervosa120 resulta de um feixe de fibrilas muito finas que se assemelham a pequenos fios, como refere o autor: “A fibra simples é um feixe de fibrilas mil vezes mais delgadas do que o mais fino cabelo.”121 Contudo, a fibra é sensível e o cabelo é insensível. Ela é a matéria do tecido celular que liga e cobre de carne cada órgão. O tecido celular é o sustentáculo da linha contínua vital num momento em que ainda se desconhece o mecanismo organizativo da célula viva. Diderot identifica-o com aquilo a que chamamos, contemporaneamente, tecido

120

Outras fibras existem como as fibras musculares. Esta classificação das fibras é da autoria de J.P. Marat e explicitada na sua obra, De L’Homme, datada de 1775-1776.

121

D. Diderot, Éléments de Physiologie, p. 64: “La fibre simple est un faisceau de fibrilles mille fois plus deliées que le cheveu le plus fin.”

conjuntivo, caracterizando-o assim: “Saco muito duro, que limita os corpos cavernosos, na casca das árvores, torna-se madeira; na epiderme animal, torna-se pele, membranas, vísceras, periósseo, ossos, etc., ele tudo faz e tudo nele se transforma; é a passagem da matéria inerte à planta, à vida, ao animal, à organização.” 122

Nesta teia natural que anima o homem, é necessário introduzir um outro elemento orgânico que se diz no plural: os nervos – cordas tocadas e que tocam todo o corpo - são elementos dos músculos e compostos, também, por fibras. Estes são, pois, os princípios do movimento, do sentimento e da acção do homem. São uma espécie de “dedos” que sentem, nas suas extremidades, a acção dos corpos exteriores e que são constituídos pela substância medular, sem invólucro, que se distribui desde o cérebro até às diferentes partes do corpo que se torna senciente. Assim, sem a participação dos nervos o homem nada sentiria.

Diderot recorre à imagem do lagostim para explicar melhor o desempenho essencial destes fios ou cordões peculiares: “É um lagostim, cujos nervos são as patas, e que é diversamente afectado segundo as patas. Estas patas são diversamente organizadas, daí as suas funções diferentes. Extremidades motoras, e contrácteis.”123

Mais adiante, na mesma obra, reutiliza a imagem do pólipo, inspirada em T. Bordeu, para voltar a esclarecer o funcionamento do sistema nervoso: “Todas as partes do corpo comunicam entre si, e com o cérebro, através dos nervos. Os nervos formam com o cérebro um todo semelhante à polpa e às suas raízes filamentosas. Talvez não haja um único ponto no animal que não seja afectado por alguns dos seus filetes.”124. De facto, é através desta estrutura nervosa poliposa que se compreende o modo como se estende por todo o corpo, não só a sensibilidade, mas também o movimento vital e activo que caracteriza a singularidade de cada uma das suas partes.

Podemos inferir do pensamento diderotiano sobre a Psicofisiologia que a arquitectura nervosa do nosso corpo relembra, novamente, a biografia imagética de uma aranha que, produz por si mesma, um mundo da sua autoria, mundo formado por finos fios que se tocam e entrelaçam, intervalados por espaços vazios, configurando uma estrutura

122

D. Diderot, idem, p. 69: “Sac très dur, qui restreint les corps caverneux, dans les arbres ecorce, il devient bois; dans l’animal epiderme, il devient peau, membranes, viceres, perioste, os, &. Il fait tout, et tout se resout en lui; il est le passage de la matiere inerte à la plante, à la vie, à l’animal, à l’organisation.”

123

D. Diderot, idem, p. 87: “C’est une ecrivesse, dont les nerfs sont les pattes, et qui est diversement affectée selon les pattes. Ces pattes sont diversement organisées, de-là leurs fonctions differentes. Extremités motrices, et contractiles.”

124

D. Diderot, idem, p. 89: “Toutes les parties du corps communiquent entre elles, et avec le cerveau par les nerfs. Les nerfs forment avec le cerveau un tout semblable au pulpe et à ses raciness filamenteuses. Il n’y a peut-être pas un point de l’animal qui ne soit atteint de quelques uns de ces filets.”

semi-retícula, de encruzilhada, de cruzamento, em que todos os pontos se ligam, em oposição à estrutura em árvore. Está, pois, fundamentada, a recorrência do autor a palavras como, por exemplo, aracnóide, aranha, fios e teia. Serve-se delas para ilustrar, igualmente, a formação e o desenvolvimento do homem numa obra anterior, O Sonho de

D’Alembert, como se pode ler: “Bordeu: Aquele que não conhece o homem senão sob a

forma que se nos apresenta ao nascer, não faz a menor ideia. A sua cabeça, os seus pés, as suas mãos, todos os seus membros, todas as suas vísceras, todos os seus órgãos, o seu nariz, os seus olhos, as suas orelhas, o seu coração, os seus pulmões, os seus intestinos, os seus músculos, os seus ossos, os seus nervos, as suas membranas, não são, propriamente falando, senão desenvolvimentos grosseiros de uma rede que se forma, aumenta, se estende, lança uma multiplicidade de fios imperceptíveis [...].

Mademoiselle De L’Espinasse: Onde estão os fios? Onde está colocada a aranha? Bordeu: Os fios estão por todo o lado, não há um único ponto na superfície do vosso corpo ao qual eles não cheguem; e a aranha está aninhada numa parte da vossa cabeça que vós haveis nomeado, as meninges, a qual não se saberia quase tocar sem impressionar de torpor toda a máquina.”125

Concluindo, no interior da metáfora enunciada por Mademoiselle De L’Espinasse, a aranha simboliza o cérebro que funciona como o ponto de referência constante de todas as impressões, constituindo a unidade de qualquer animal e ainda a sede da memória e da identidade biográfica do próprio homem. Por seu turno, os fios da teia representam uma parte sensível do animal e a totalidade da teia aponta para o conjunto dos órgãos que constituem o mundo corpóreo de cada ser individuado. No caso humano, a memória de todas as impressões forma a história de cada eu particular e esta capacidade de reter sensações reside numa parte da aranha que remete para a substância mole do cérebro. Esta é comparada a uma espécie de cera que toma e retém diferentes formas, conforme o modo como os fios são tocados e tocantes ao longo da vida de cada teia humana.

125

D. Diderot, Le Rêve de D’Alembert, in Oe. Ph., pp. 314-315: “Celui qui ne connaît l’homme que sous la forme qu’il nous présente en naissant, n’en a pas la moindre idée. Sa tête, ses pieds, ses mains, tous ses membres, tous ses viscères, tous ses organs, son nez, ses yeux, ses oreilles, son Coeur, ses poumons, ses intestines, ses muscles, ses os, ses nerfs, ses membranes, ne sont, à proprement parler, que les développements grossiers d’un réseau qui se forme, s’accroît, s’étend, jette une multitude de fils imperceptibles […].

Mademoiselle De L’Espinasse: Où sont les fils? Où est placée l’aragnée?

Bordeu: Les fils sont partout; il n’y a pas un point à la surface de votre corps auquel ils n’aboutissent; et l’aragnée est niché dans une partie de votre tête que vous ai nommée, les méninges, à laquelle on saurait presque toucher sans frapper de torpeur toute la machine.”

Os fios são alicerces da corporeidade senciente. Atribuamos musicalidade a estes fios e a abordagem renova-se: os pequenos e finos elementos fisiológicos transfiguram-se em constituintes de um instrumento musical análogo ao cravo, que se toca e é tocado através de cordas vibrantes. Deste modo, o corpo musical presentifica-se.

No documento Denis Diderot: uma estética do corpo musical (páginas 151-156)