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O Toque do Gosto em Diderot

No documento Denis Diderot: uma estética do corpo musical (páginas 190-194)

CAPÍTULO III CONTRIBUTOS PARA UMA ESTÉTICA DO CORPO

2) O Toque do Gosto em Diderot

Diderot, por seu turno, procedeu a uma genealogia do belo para encontrar o elemento fundante do juízo de gosto e do prazer estético. Diderot discordaria, certamente, do pensamento humeano que alia a objectividade estética à própria natureza humana, como explicitam André Cresson e Gilles Deleuze: “[...] a regra do gosto confere ao sentimento a objectividade que o transforma em juízo estético.”41

Analisando de novo a obra diderotiana Investigações Filosóficas sobre a Origem e a

Natureza do Belo, detectamos a preocupação do autor em fundar o belo e o juízo estético

numa exterioridade além da natureza humana, visto que o belo, ao contrário de Hume, é entendido como uma qualidade intrínseca da coisa. A objectividade estética está, por esta razão situada nas coisas, na natureza multiforme da qual o homem é apenas um pequeno fragmento. Contudo, a subjectividade humana não é esquecida, porque só o ser humano pode “reconhecer” a beleza presente na natureza e nas coisas, porque o seu corpo é uma espécie de cravo onde ressoa “deleitosamente” a alteridade relacional que não ofende os seus órgãos. O belo resulta, então, da percepção humana das relações constitutivas das coisas. O belo e o juízo de gosto fundam-se nesta convivência harmoniosa do homem

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R. Bouveresse, Introduction, in David Hume, Essais esthétiques, p. 25: “C’est que, selon Hume, l’art a pour but de rendre l´homme plus heureux, de l’intégrer à la société, d’affermir en lui les sentiments moraux qui sont intimement liés au sens artistique.”

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André Cresson e Gilles Deleuze, David Hume, Sa Vie, Son Oeuvre, Sa Philosophie, Paris, Presses Universitaires de France, 1952, p. 58: “[…] la règle du goût confère au sentiment l’ objectivité qui le transforme en jugement esthétique.”

com a natureza que lhe é imanente e, ao mesmo tempo, transcendente. Esta dualidade entre imanência e transcendência é, sem dúvida, uma razão explicativa do gosto plural que Diderot também observa. Deste modo, Diderot defende que nenhum homem pode ter uma percepção reprodutora de uma coisa diferente de si, porque concilia, contemporaneamente, as sensações objectivas com a sua interioridade subjectiva, singularmente organizada e organizadora.

Para Diderot, a radicalidade do prazer estético reside nas relações reais que o ser humano percebe na natureza e o juízo de gosto constitui-se, geralmente, quando o sujeito “põe em marcha” o seu entendimento e, primeiramente, a sua sensibilidade, faculdades humanas da percepção. A actividade perceptiva não se completa, no entanto, sem a intervenção das coisas, da natureza, da alteridade. Mas, esta percepção exclui, ainda, o poder transbordante da imaginação, contrariando a filosofia humeana. No entanto, a força da imaginação produtora será reabilitada, posteriormente, como faculdade possibilitante de uma maior consonância entre o artista genial e a natureza que o primeiro imita e expressa na obra de arte.

O autor precisa, no entanto, que o juízo de gosto nem sempre é um fenómeno representativo do pensamento ou do conhecimento, como no caso da apreciação de objectos novos e essencialmente complexos, e pode ser, pela sua fuga à determinação e objectivação do entendimento, um fenómeno do sentimento particular, quando se trata, por exemplo, de uma percepção menos clara da riqueza das relações objectivas ou da apreciação de objectos habituais cujo conjunto de relações (ordem, arranjo ou combinação, relação, simetria, mecanismo, proporção e unidade) já foi, anteriormente, apreendido pelo entendimento, como refere Diderot: “Quando julgamos um objecto habitual, que nos agrada desde a mais tenra idade, julgamos estes objectos, cremos nós, pelo sentimento. Quando deparamos com objectos novos e complexos pelas relações, tal princípio será surpreendido e posto entre parêntesis: o prazer, esperará para se fazer sentir, até que o entendimento se pronuncie sobre a beleza do objecto.”42

Consequentemente, Diderot aproxima-se de Hume ao afirmar que o belo pode ser uma “verdade do sentimento”, mas ao mesmo tempo afasta-se dele, ao não acreditar na possibilidade de um sentimento universal do gosto, nem na legitimação deste através de

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D. Diderot, Recherches Philosophiques sur L’Origine et la Nature du Beau, in Oe. Esth., pp. 419-420: “J’ose assurer que toutes fois qu ’un principe nous sera connu dès la plus tendre enfance, et que nous en ferons par habitude une application facile et subite aux objets placés hors de nous, nous croirons en juger par sentiment, mais nous serons contraints d’avouer notre erreur dans toutes les occasions où la complication des rapports et la nouveauté de l’objet suspendront l’application du principe: allors le plaisir attendra, pour se faire sentir, que l’entendement ait prononcé que l’objet est beau.”

uma uniformidade da natureza humana43 e ainda ao afirmar que o sujeito estético julga a beleza de um ser aliando-a ao ideal da verdade, à maior conformidade possível entre sujeito-objecto, o que conduz a uma quase identificação entre o juízo de gosto e o juízo cognitivo. Como vemos, em Diderot, a universalidade desejável do gosto só poderia alicerçar-se na natureza trans-humana, na alteridade, no momento em que o belo real fosse reconhecido uniformemente por toda a humanidade. Mas sabemos, também, através de Diderot, que o juízo e o prazer estéticos têm como causa as relações reais que se transmutam em relações percebidas. O princípio da beleza verdadeira ou real é, pois, inatingível pela medida humana e revela ainda uma indeterminação na especificidade da Estética. Em Hume, esta indeterminação está presente quando o filósofo empirista relaciona o gosto corpóreo com a satisfação empírica ou agradabilidade e quando une a beleza artística à beleza moral. Diderot afirma que o juízo de gosto não só se funda naquilo que as coisas são (belo real - relações reais), mas naquilo que estas devem ser, em nome de uma finalidade interna ou bem (perfeição). Hume salienta também a importância da finalidade interna ou perfeição na constituição do gosto mental. Ambos defendem que a própria arte se esvazia de sentido quando não possui uma finalidade ou interesse moralizante, capaz de converter as paixões mais grosseiras em paixões delicadas; por esta razão o modelo da arte pela arte não é percebido pelos dois autores estudados44.

Todavia, tanto Hume como Diderot sublinham a importância indiscutível de um exercício natural e autónomo do gosto. Sem este exercício perceptivo livre, não retornaremos à natureza (humana e geral) e não julgaremos, mas apenas imitaremos juízos da autoria de outrem.

Na obra Pensamentos detalhados sobre a Pintura iniciados com o Salão de 1767, Diderot expõe uma posição filosófica sobre o gosto que é oposta a qualquer espécie de inatismo ou apriorismo. Como os conhecimentos, o gosto humano é, também, experimental. O gosto é, desde 1762, uma espécie de “instinto do belo”45 ou uma

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Como veremos o gosto em Diderot é experimental, dependendo da sociedade “receptiva” como acontece com a recepção musical, da formação individual e da variável organização biológica da humanidade que provoca também uma recepção peculiar: depende da mobilidade do diafragma, sede do sentimento, ou da forma da cabeça, sede do pensamento. Por exemplo, há uma organização da cabeça própria do pintor, do poeta, do orador, etc.

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A Santíssima Trindade diderotiana formula-se do seguinte modo: A Verdade é o Pai, o Filho é o Bem e o Espírito Santo é o Belo. Esta fórmula humanizada da Trindade é retratada na obra Sobrinho de Rameau de 1762.

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D. Diderot, Pensées détachées sur la Peinture, in Denis Diderot, Oe. Esth., p. 752, nota 2: “l’instinct du beau.”

facilidade adquirida que resulta de uma infinidade de pequenas experiências reiteradas pelo hábito e pela observação. O julgamento estético humano não é dirigido por um instinto divino, mas é um mecanismo que se adquire com a multiplicidade de experiências passadas que aguçam o discernimento do belo. Em Hume, o gosto tem uma origem dupla: é natural e experimental, reforçado pelo hábito. Diderot contesta que esta facilidade adquirida seja um recurso da natureza e que radique, ainda, num sexto sentido, como testemunha a sua conversa com Suard em 1767: “Eu responderia que, este sexto sentido em que alguns metafísicos ingleses acreditaram, é uma quimera; tudo é experimental em nós.”46

O gosto, por si só, nada cria, apenas compara e escolhe acolher ou rejeitar as combinações propostas pela experiência ou pela imaginação. É um poder da razão que é perfectível com a idade e antecedido pelo hábito. Depende da memória, da imaginação e do estudo do mundo da arte, sobretudo dos Antigos, exemplos de um regresso ao natural. Mas, este hábito de julgar é, também, preparado pelas qualidades naturais do seu agente. Diderot volta a aproximar-se de Hume, mas o seu pensamento não pretende confirmar a universalidade do juízo de gosto, apenas a sua divergência. Contudo, enquanto crítico de arte, anuncia a sua admiração por Chardin, Greuze e Vernet, por possuírem um gosto mais natural, um bom gosto que lhes permite imitar mais rigorosamente a natureza relacional na obra de arte. Diderot não pressupõe a existência de normas vivas do gosto, mas pensamos que estes artistas retratam o bom gosto, o dever ser deste “instinto do belo”, enquanto poder aproximativo do homem e da natureza. Assim, as suas qualidades determinam o critério distintivo do bom e mau gosto num contexto temporal determinado. Eles têm uma natureza mais feliz, porque mais consonante com a natureza exterior.

Como vimos, Hume e Diderot oscilam entre uma Estética do Sentimento e da Razão mesma. Em nome desta Estética por libertar, Hume, por exemplo, assegura o consenso universal estético num termo exterior à própria humanidade, ou seja, numa misteriosa finalidade organizativa da natureza humana, segundo uma espécie de harmonia preestabelecida tão feliz, que permite postular um princípio forte de unicidade, princípio este, que confere às impressões sensíveis uma consonância na ordem do gosto da humanidade total. Por outro lado, Diderot perspectiva o cosmos estético enlaçado ao

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D. Diderot, idem, p. 752, nota 2: “Je répondis que ce sixième sens, que quelques métaphysiciens avaient accrédité en Angleterre, était une chimére; que tout était experimental en nous.”

Cosmos natural, de tal forma que o segredo da arte não está na observância e actualização

de regras subjectivas, como em Hume, mas na imitação da natureza e / ou da realidade quotidiana social, objecto menos nobre para os clássicos. A imitação deve acompanhar as regras de transformação constante da alteridade natural a representar. Esta deve ser, segundo Herbert Dieckmann47, uma imitação directa e material das coisas, decifradora da sua equação relacional, matriz emblemática da sua origem musical. Mas esta ideia está presente no primeiro momento do pensamento diderotiano, em que as convicções empiristas e naturalistas se sobrepõem a uma concepção mais espiritualista que dominará num segundo momento. Este último momento do pensamento diderotiano parte do sujeito criador da obra de arte que permuta a imitação em expressão das relações reais percebidas na alteridade. A transcendência devém quase-imanência. Assim, no Salão de 1767, Diderot reformula a tarefa do artista: este deve criar a obra de arte segundo as imagens interiores ou o chamado modelo ideal. A imaginação criativa recupera os seus direitos e Diderot prova que prefere o concebido ao percebido, o modelo ideal à natureza subsistente, a razão ao sentimento. Hume, por seu turno, caminha do percebido ao concebido, de modo a aferir as “regras” do gosto, a partir de uma actividade vigilante da razão sobre os sentimentos de uma minoria estética, que se opõe ao homem vulgar mais numeroso. Em Hume, a imanência torna-se quase-transcendência.

No documento Denis Diderot: uma estética do corpo musical (páginas 190-194)