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No país, preeminentemente, as prostitutas são percebidas como sujeitos que merecem menos direitos que os demais cidadãos/cidadãs.

Apesar de, formalmente, seus direitos existirem, a ausência do status de pessoa digna, devido à noção de que inexiste valor numa prostituta, dificulta e/ou impede o acesso a estes73.

O direito do cidadão apenas é efetivado quando são também assegurados o direito de acesso, o direito de fruição, o direito de criação, produção e o direito de participação nas decisões74. Nessa perspectiva, a vigência da cidadania torna-se

plena.

72 GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa: prostituição em Copacabana e identidade

social. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 11, et seq.

73 CAPELA, Gustavo Moreira. O direito à prostituição: aspectos de cidadania. 2013. 252 f.

Tese (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília. Brasília: 2013, pp. 92-93.

74 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y emancipación: Revista latinoamericana

de Ciencias Sociales, Buenos Aires, CLACSO, ano 1, n. 1, jun 2008, pp. 65-66. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye3S2a.pdf>. Acesso em: 18 jan 2018.

Conforme Chauí75:

Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática […] quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social […].

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. (grifo do autor)

A sociedade brasileira, enquanto sociedade autoritária, distribui os indivíduos em inferiores e superiores. Dessa forma, algumas pessoas – como as prostitutas – não são vistas, de um lado, como sujeito, autônomas e iguais, e, de outro, como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos76.

Essa diferenciação negativa não é construída apenas pelos seres sociais, através da discriminação por eles praticada, sendo fortalecida inclusive por atos institucionais, na medida em que o Estado atua, por diversas ocasiões, desrespeitando as profissionais do sexo. Exemplo disso são as inúmeras ocorrências de violência policial, contestadas pelas prostitutas em todos os momentos nos quais lhes é concedida a possibilidade de fala.

Holston77, citado por Dutra, concebe a ideia de cidadania diferenciada,

aplicando tal conceito à cidadania brasileira:

[…] em que diferenças sociais não inerentes à definição de cidadania nacional (nascimento, jus sanguinis) acabam por justificar discriminações por parte do Estado, que tende, em sua práxis burocrática e política, a escalonar os cidadãos em categorias diversas e desiguais de direitos, privilégios, imunidades e poderes.

Faz-se urgente reconhecer às prostitutas a qualidade de sujeito, para que as profissionais do sexo sejam integradas ao real processo de cidadania.

Destarte, Capela78 explana:

75 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Crítica y emancipación: Revista latinoamericana

de Ciencias Sociales, Buenos Aires, CLACSO, ano 1, n. 1, jun 2008, p. 69. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye3S2a.pdf>. Acesso em: 18 jan 2018.

76 Ibidem, p. 70. Disponível em:

<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye3S2a.pdf>. Acesso em: 18 jan 2018.

77 HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade

no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 98 apud DUTRA, Renata Queiroz. Trabalho, regulação e cidadania: a dialética da regulação social do trabalho em call centers na Região Metropolitana de Salvador. 2017. 388 f. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília. Brasília: 2017, p. 290.

78 CAPELA, Gustavo Moreira. O direito à prostituição: aspectos de cidadania. 2013. 252 f.

Conceder direitos, no Brasil, é erguer determinadas pessoas a um status social geralmente reservado para alguns-poucos, como pudemos ver na trajetória da cidadania brasileira. Por conseguinte, conceder direitos é abranger, no status diferenciado de cidadania estruturado no Brasil, a prostituta como uma cidadã que seja ao menos ‘semelhante’ aos outros trabalhadores regulamentados. E, no Brasil, isso pode significar muito.

A necessidade de reconhecimento dos direitos humanos/civis das prostitutas é pauta de seus encontros desde a década de 1970, momento em que as profissionais do sexo de diversos países do mundo começaram um processo de organização da classe79.

O movimento de luta das prostitutas no Brasil foi evidenciado em 1979, através da primeira manifestação pública dessas profissionais. A situação foi motivada, conforme narra Gabriela Leite80 (importante representante da causa pelos

direitos das prostitutas), pela implantação de um toque de recolher, em tempos de ditadura, em uma zona de prostituição de São Paulo, popularmente conhecida como “Boca do Lixo”. Essa ação acarretou no aumento dos episódios de agressão dos policiais contra as prostitutas e seus clientes.

Leite81 relata:

A adesão foi imediata. Estavam todos sofrendo muito com tudo aquilo, e é nessas horas que as pessoas conseguem se mexer, nunca antes, só depois da porrada. O boca a boca correu rápido. Donos de bares, garçons, cafetinas, malandros, travestis... a Boca do Lixo e a Boca do Luxo se juntaram em nome das prostitutas.

Chegou o grande dia. É claro que a polícia já estava sabendo de tudo. Mas a manifestação foi um sucesso, os jornais todos compareceram numa brilhante atuação dos nossos assessores de imprensa improvisados. Centenas e centenas de pessoas na praça da Sé. Foi um susto na cidade. E a repressão foi ainda mais braba, a polícia imediatamente mandou fechar os prédios. Mas a imprensa e os artistas, que, apesar da vizinhança, nunca haviam se aproximado, se tornaram nossos maiores aliados.

79 BORGES, Camilla de Oliveira. A problemática da regulamentação da prostituição como

profissão no direito brasileiro: pela visibilidade dos direitos dos profissionais do sexo. 2014. 70 f. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2014, p. 15.

80 LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser

prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 63. Disponível em: <http://lelivros.love/book/download-livro-filha-mae-avo-e-puta-gabriela-leite-em-epub- mobi-e-pdf/>. Acesso em: 21 dez 2017.

81 Ibidem, p. 64. Disponível em: <http://lelivros.love/book/download-livro-filha-mae-avo-e-

Em 1987, ocorre o I Encontro Nacional de Prostitutas, no Rio de Janeiro, objetivando definir estratégias conjuntas para combater os frequentes abusos policiais.

A partir desse momento, desencadeou-se a criação e a legalização, em vários estados brasileiros, de associações e entidades representativas das prostitutas, que buscavam a aceitação pública e a consolidação da cidadania das profissionais do sexo82.

Destaca-se, aqui, o surgimento, em 1989, da Rede Brasileira de Profissionais do Sexo – hoje composta por mais de 30 organizações da classe –, que foi coordenada por Gabriela Leite. Essa instituição busca oportunizar a articulação política do movimento organizado de prostitutas e fortalecer a identidade profissional da categoria, “visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da discriminação e da melhoria da qualidade de vida na sociedade”83.

Na década de 1990, surgiram novas problemáticas e pretensões, passando- se a discutir acerca da saúde das prostitutas – o que abrange questões como a prevenção e combate de doenças sexualmente transmissíveis, a exemplo da AIDS/HIV – e da regulamentação da profissão84.

Entretanto, ainda nos dias atuais, o reconhecimento efetivo da prostituta como sujeito de direitos não é assegurado, perdurando uma lista de reivindicações.

2. 3 AS PROSTITUTAS ENQUANTO PARTE DA CLASSE TRABALHADORA

Na medida em que a prostituição não é regulamentada, existe certa dificuldade das prostitutas em se compreenderem como classe trabalhadora.

De acordo com Capela85:

82 RODRIGUES, Marlene Teixeira. A prostituição no Brasil contemporâneo: um trabalho

como outro qualquer? Revista Katálysis, Florianópolis, v. 12, n. 1, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802009000100009>. Acesso em: 21 dez 2017.

83 REDE BRASILEIRA DE PROSTITUTAS. Disponível em:

<http://www.redeprostitutas.org.br/>. Acesso em: 22 dez 2017.

84 BORGES, Camilla de Oliveira. A problemática da regulamentação da prostituição como

profissão no direito brasileiro: pela visibilidade dos direitos dos profissionais do sexo. 2014. 70 f. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2014, p. 16.

[…] a ausência de uma regulação hoje reverbera de certa forma no entendimento das prostitutas que se veem prestando serviços por dinheiro sem entender que aquela troca advém de trabalho. Instada a me responder o que era, então, o que elas faziam, muitas respondiam que não sabiam, ou faziam brincadeiras dizendo que não podiam requerer direitos trabalhistas quando faziam sexo por dinheiro. É relevante, pois, para o entendimento próprio, para a criação de uma identidade da prostituta enquanto classe trabalhadora, essa regulação. Ora, a regulação tem uma importância simbólica por reafirmar a possibilidade do acesso a direitos como à previdência, à férias, à licença-maternidade, dentre outros.

As prostitutas, ao negarem uma identidade comum com as demais, criam um entrave à união em favor de uma causa.

Capela86 entende:

[...] uma coisa que sempre notei é que as prostitutas sempre se referem às “meninas” como se não fossem elas. Elas sempre dizem que as outras agem de uma forma diferente, nitidamente querendo se diferenciar. Apesar de falarem dos problemas da prostituição como um todo, quase sempre entendem que as outras garotas de programa são diferentes delas, dificultando, talvez, uma maior unidade entre si e no próprio discurso.

O estigma projetado sobre as prostitutas é reproduzido no próprio imaginário dessas mulheres, que percebem suas colegas de profissão, e portanto suas próprias práticas laborais, como menos dignas.

Verifica-se, pois, que não apenas a sociedade e o Estado concebem a prostituta como uma pessoa de valores falhos, mas as próprias prostitutas repercutem esse entendimento.

Em sua narrativa, Capela87 assinala:

Pelos estudos que desempenhei, pareceu-me que a profissão é muito solitária. A confiança na rua é escassa e quase sempre bem restrita a situações específicas. Fernanda, que, durante os meses que eu a visitava com frequência, estava diariamente com 3 outras meninas, elas eram quase sempre as mesmas, e, ainda assim, ela não tinha pudor algum em me dizer, na frente delas: eu não tenho amigas.

A compreensão da prostituição como algo inadequado, mesmo que lícito – dado que, no país, a prática não é criminalizada –, obsta a inserção participava de grande parcela das profissionais do sexo na luta por seus direitos.

85 CAPELA, Gustavo Moreira. O direito à prostituição: aspectos de cidadania. 2013. 252 f.

Tese (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília. Brasília: 2013, pp. 117-118.

86 Ibidem, p. 11. 87 Ibidem, p. 10.

Gabriela Leite88 expõe sua dificuldade na criação de um movimento das

prostitutas contra a repressão policial:

Eu tinha certeza de que a gente devia fazer alguma coisa, que a sociedade paulistana tinha que saber o que estava se passando ali. Mas por causa de sua baixíssima auto-estima, as prostitutas achavam aquilo razoavelmente normal. Fazer o quê? Nós somos prostitutas mesmo.

Uma atuação incisiva do Estado, no sentido de regulamentar a profissão, garantiria a possibilidade de um grande quantitativo de prostitutas, ao se perceber como classe trabalhadora, buscar se organizar coletivamente, aderindo a movimentos e associações.

A voz das prostitutas, talvez pelas dificuldades de engajamento de muitas delas, ainda não é satisfatoriamente ouvida, o que faz com que seus anseios e interesses não sejam suficientemente atendidos.

2.4 AS DIFERENTES VISÕES DOS FEMINISMOS

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