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Protótipo de Formação de um C.I.L

1.11. Possibilidade de Formação de Campos Isotópicos

1.11.1. Protótipo de Formação de um C.I.L

reduzida a formação de um Campo Isotópico Literário através de uma das isotopias temáticas que marcam a obra de Craveirinha, ou seja, a negritude na perspectiva anti- colonial, de identidade, de resistência e afirmação cultural.

Contudo, é preciso chamar desde já a atenção para o facto de ainda não termos teorizado sobre o conceito de negritude e das respectivas marcas num texto literário, assim como a questão dos neologismos luso-rongas e dos lexemas de origem bantu, o que só faremos e aprofundaremos no próximo capítulo referente à vida e obra de José Craveirinha.

De qualquer modo, e para que possamos estar mais à vontade, sobretudo, com a questão da negritude podemos adiantar, muito sucintamente, que se trata de um movimento socio-cultural, ou corrente literária, e que tem como marcas mais evidentes a valorização do Homem negro, da sua cultura ancestral e da sua história, da sua identidade, dos seus nomes próprios e das suas terras, do seu continente original, a África, a quem, tal como acontece com o movimento ou corrente do pan-africanismo, os escritores chamam Mãe, da fraternidade negro-africana (os homens são irmãos), assim como o respeito e o sentimento de fraternidade pela natureza, pelo meio ambiente.

Se nos lembrarmos que a negritude surgiu entre 1936-1938, quando o continente africano estava quase totalmente sob o jogo colonial dos países europeus e o racismo anti-negro campeava no mundo inteiro, podemos entender que este movimento teve nos seus primórdios também como finalidade a luta de resistência contra o colonialismo, pelo que a negritude acaba, igualmente, por estar marcada por uma componente de resistência cultural, nacionalista anti-colonial.

Assim, para este pequeno ensaio sobre um C.I.L., escolhemos o primeiro poema da obra Xigubo e que , aliás, tem o mesmo nome do título. Começaremos a nossa construção através dos lexemas de origem bantu e em português, sejam nomes, verbos ou adjectivos para verificar se pela sua realização simples ou metafórica se forma uma isotopia conotada com a negritude. Analisemos.

Este poema tem lexemas de origem bantu apenas de base nominal, como sejam, Xigubo (dança guerreira, de preparação para a guerra); Culucumba (grande espírito); Xipalapala (instrumento musical feito de um corno da pala-pala - antílope africano –– com o qual se convocam as grandes reuniões populares); Micaia (árvore muito espinhosa e que serve para fazer carvão) e Maiela (nome próprio masculino). Mais pormenores semânticos e etimológicos podem ser consultados no nosso corpus.

Ora, o poema, ou melhor, o poeta começa por escolher para abertura da sua obra um poema intitulado ‘‘Xigubo’’, querendo desde logo situar que vai cantar algo relacionado com a guerra, com a preparação para a luta, aliás, facto bem simbolizado pela evoção gritada logo na primeira instância com os versos: ““Minha mãe África/ meu irmão Zambeze/ Culucumba! Culucumba!””

Culucumba é o grande espírito (deus) que é evocado para dar força ao xigubo dos negros que foram convocados pelo som da xipalapala bem cantada metaforicamente neste verso ““os negros fundem-se ao sopro da xipalapala””. Repare-se agora como aparece em metáfora bem plurissignificativa o lexema micaia: ““Tantã!/ E os negros

dançam o ritmo da Lua Nova/ rangem os dentes na volúptia do xigubo/ e provam o aço ardente das catanas ferozes/ na carne sangrenta da micaia grande””.

Aqui, claramente, se pode conotar a micaia (ou carne sangrenta da micaia) como simbolizando o corpo agreste do inimigo que se irá defrontar e sobre o qual cairão impiedosas as catanas ferozes, constituindo, de facto, um nítido indício das intenções do poeta neste poema apelativo para a luta anti-colonial.

É uma marca de negritude bem acompanhada por outras como a valorização de uma dança guerreira, o xigubo, de um instrumento musical tradicional, a xipalapala, culturalmente muito simbólicos, assim como a própria utilização dos lexemas bantu valorativos da cultura linguística (bantu) muito desvalorizada pelos colonialistas. Sobre esta questão língua-cultura iremos analisá-la melhor no ponto referente aos lexemas bantu e neologismos luso-rongas.

Continuando, salientamos que o nome próprio Maiela serve para enaltecer a identidade, a origem do nome, sua origem bantu-negra, e da bravura que o caracteriza como homem, como guerreiro e dançarino, tal como os versos cantam: ““E negro Maiela/ músculos tensos na azagaia rubra/.

Assim, todos estes lexemas de origem bantu (ronga) nos conduzem para as marcas de negritude já referidas com ênfase para a valorização da cultura ancestral dos negros, de identidade, de preparação para uma luta contra alguma coisa, que já sabemos tratar-se do sistema colonial, por conseguinte, fazem parte, melhor dito, constituem uma isotopia, no caso, de negritude.

Relativamente aos lexemas em língua portuguesa e as respectivas metáforas de base nominal, verbal e adjectival vamos ver como é que eles se concentram e de que modo se expandem significativamente para formar ou, melhor continuar a formar a isotopia de negritude.

No que concerne aos nomes temos os seguintes lexemas em língua portuguesa relacionados com o continente, com a terra do poeta, com o ambiente regional e local (cultural, humano e animal) e mesmo sideral utilizados pelo sujeito poético como: Mãe, África, irmão, rio (Zambeze), margem, terra (2 vezes), azagaia, catanas, feitiço, tambor(3 vezes), ritmo, leopardo, olhos, Lua, noite, fogo, fogueira, guerra, ritmo, tribo, ecos, planície.

Mesmo sem analisarmos a respectiva ligação com os verbos que accionam mais o sentido dos nomes e com os adjectivos que qualificam melhor esses nomes, mas de acordo com o que já afirmámos sobre as marcas de negritude na análise dos nomes bantu, podemos verificar que a invocação de África como Mãe, o rio Zambeze como irmão, e que depois quando os homens negros ““levantam os braços para o lume da irmã Lua/ e dançam as danças do tempo da guerra””, alimentado metaforicamente pela ““azagaia rubra”” pelo ““feitiço das catanas”” e tudo isto fazendo vibrar ““ ecos milenários”” da tribo na noite, na planície, podemos afirmar que, no poema, os nomes (lexemas nominais em português) estão também marcados por forte cunho de negritude. Os nomes continuam, em conexão, a formar a referida isotopia de negritude.

Reparemos agora como se concentram e se multipilicam de sentidos metafóricos os lexemas verbais, em sequência, no poema e nas respectivas estrofes (conforme podemos, igualmente, acompanhar graficamente no nosso corpus).

Se estivermos atentos verificaremos que todos os verbos não se ligam, propriamente, a sentimentos ou a contemplações passivas, mas a vibrações e acções de

muito movimento, de agressividade, de luta, de labor activo dos sentidos humanos. Senão, repara-se: estremece, fundem-se, levantam, fugiu, brilham, salta, dança, abre, arde, rangem, provam, rogam, batem (2x), vibram, dançam.

O xigubo estremece a terra do mato e os negros fundem-se ao sopro da xipalapala, ou seja, fundem-se com o chamamento para a guerra, e levantam os braços evocativos para a Lua das velhas tribos (metaforicamente buscam a força nos elementos da natureza e nos antepassados da tribo) e a força é tal que até o leopardo fugiu e os olhos dos homens brilham vermelhos e alucinados (como que em fogo para a guerra) e de tal modo que a planície arde com as catanas (simbolicamente-metaforicamente) já em fogo, e, enquanto os pés batem e os tambores batem, os guerreiros-dançarinos rangem os dentes e provam o sangue (antecipado) dos inimigos metaforizado na carne sangrenta das micaias.

Como vimos, os lexemas verbais em conexão significativa com os nomes ostentam também as já referidas marcas de negritude, isto é, ajudam a formar a isotopia da negritude. E os lexemas adjectivais? Reparemos na sua sequência qualificativa e modificadora destes nomes, pois não nos podemos esquecer que, linguisticamente, os adjectivos são nomes, pois há ““nomes substantivos e nomes adjectivos”” (Cunha & Cintra: 248).128 Vejamos a sequência e a concentração significativa dos lexemas adjectivais.

Velhas, traiçoeiro, vermelho, azul, tensos, rubra, amarela, velhas (2x), cheias, viril, nova, ardente, grande, ferozes, sangrentas e milenário. Efectivamente, a força buscada também na evocação das velhas tribos fazendo fugir até o leopardo traiçoeiro (metáfora do inimigo que ataca por de trás) e fazendo alucinar de ardor os olhos vermelhos dos guerreiros e fazendo brilhar ainda mais o azul do aço das catanas, enquanto os músculos tensos faz Maiela (o guerreiro-dançarino) saltar o fogo amarelo da fogueira, caracteriza e qualificam de maneira singular os traços mais (+) ou menos (-) humanos dos nomes já marcados pelos traços de negritude, ajudando, assim, a alargar esta isotopia.

O mesmo acontece com os restantes nomes adjectivais em que a noite (o oculto, o sombrio, metaforizando também o sistema opressor) é desflorada pela força do bater dos pés e tambores ao ritmo de guerra fazendo até arder todas as Luas cheias num feitiço viril para que a Lua Nova (nova vida) surja da volúpia do Xigubo (da guerra) do resultado das catanas ferozes na carne sagrenta da micaia grande (inimigo grande e espinhoso) para que a planície (a terra) volte a ver as velhas tribos dançando ““todas juntas””.

Conhecedores que já somos das diversas marcas socio-culturais, histórico- ideológicas que caracterizam a negritude podemos sem dificuldade verificar que estes restantes lexemas adjectivais no seu conjunto sequencial fazem parte dessa constituição isotópica de negritude.

Aqui chegados, podemos afirmar que os lexemas de origem bantu (rongas), os lexemas em língua portuguesa de base nominal, verbal e adjectival constituiem uma rede significativa e plurissignificativa cujos fios se entrelaçam, organizando uma isotopia, neste caso, uma isotopia temática de negritude. Podemos também dizer, ou melhor, configurar esta situação dizendo que a isotopia de negritude é um eixo à volta do qual giram os diversas tipos de lexemas analisados, significativa e centripetamente girando interligados como um pequeno mundo isotópico.

128 Cunha, Celso e Cintra, Lindley (1998), Nova Gramática do Português Contemporâneo, 14ª edição,

Portanto, tendo em mente o nosso modelo (Fig 2), todo este conjunto de lexemas de origem bantu, de lexemas em português de base nominal, verbal e adjectival a partir da sua categorização conceptual, das ideias e sentimentos que representam, das emoções e sentimentos de que estão impregnados e que manifestam, das categorias cognitivas (polissémicas e metafóricas) que representam e figuram textualmente, e que melhor se entendem na sua plurissignificação no contexto dos versos do poema (““frames””) e nos cenários (““scripts””) de vivência do quotidiano do poeta e dos leitores, podemos afirmar que no todo deste discurso poético configura-se um processo isotópico, formando, nitidamente, um Campo Isotópico Literário (C.I.L.), no caso, de negritude.

Torna-se, no entanto, necessário acrescentar desde já que quando apresentarmos o nosso corpus e expusermos e analisarmos os dados de modo a configurarmos os Campos Isotópicos Literários de pan-africanismo, negritude e nacionalismo na perspectiva anti- colonial, de identidade, de resistência e afirmação cultural nas obras Xigubo e Karingana wa Karingana de José Craveirinha, teremos de nos socorrer da lexicometria textual para melhor trabalharmos as concentrações léxicas nas suas várias categorias.

Posto isto, passemos à Segunda Parte desta dissertação em que analisaremos a vida e obra de José Craveirinha, abordando também a questão do pan-africanismo, negritude e nacionalismo e as suas marcas ou traços identificadores destes movimentos socio-culturais e ideológico-literários, assim como a importância e a função dos lexemas bantu e dos neologismos luso-rongas nas duas obras de Craveirinha.

II PARTE

O POETA, A SUA OBRA

E AS SIGNIFICATIVAS MARCAS

IDEOLÓGICO-CULTURAIS

CAPÍTULO II

VIDA E OBRA

DE

JOSÉ CRAVEIRINHA