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União entre Linguística e Literatura

Tendo em conta que o nosso estudo envolve questões linguístico-literárias, aliás patentes no nosso corpus e cuja detalhada exposição e análise faremos em tempo próprio, torna-se pertinente, antes de estudarmos as metáforas e as isotopias, dedicarmos um certo espaço relativo a alguns aspectos sobre a necessária convergência (união) entre a Ciência Linguística e a Ciência Literária.

Por outro lado, interessará ainda expormos e analisarmos algumas questões relativas à literatura no âmbito das Ciências da Cognição não apenas porque pretendemos ““abrir caminhos”” para as referidas metáforas e isotopias, mas também para compreendermos o processo criativo nas artes literárias, em que a estilística e a estética cumprem um papel de relevo. Posto isto, comecemos então pela questão da relação entre linguística e literatura.

Efectivamente, a linguística e a literatura nem sempre funcionaram como algo integrante e convergente, pois até aos meados do século XX grande parte dos críticos literários viravam de certo modo as costas às conquistas da linguística, avanços científicos que eram importantes para a própria literatura. Acontece, contudo, que esse virar de costas era aparente e foi-se atenuando conforme nos recorda João de Freitas Ferreira:64

““O conflito era meramente aparente e não poderia anular a convergência da Linguística e da Literatura. Aliás, aceitando o parecer de Roland Barthes, ‘‘esta aproximação parece-nos bastante natural. Não será

natural que a ciência da linguagem ( e das linguagens) se interesse por aquilo que é inconstestavelmente linguagem, a saber, o texto literário? Não será natural que a literatura, técnica de certas formas de linguagem, se volte para a teoria da linguagem?””(Ferreira: 92-93)

Partindo destas afirmações e daquilo que já dissemos tratar-se do senso comum, torna-se óbvio que não podemos ler65 literatura de uma determinada língua, no seu original, sem termos competência e perfomance nessa língua. Especificando melhor estes dois termos que inserimos em itálico, citamos Aguiar e Silva (1977)66 que afirma o seguinte:

““A nível sistemático a competência é expressa (ou representada) sob a forma de modelo por uma gramática gerativa (cf. N. Chomsky, 1972a: 116, 185-186; 1972b: 14; 1974b: 268) entendendo-se por gramática

gerativa um conjunto finito de regras que a partir de um número limitado

de elementos (““vocabulário”” ou ““alfabeto””finitos) gera, isto é, enumera explicitamente todas as frases gramaticais - e só estas –– que em número infinito, constituem uma determinada língua, atribuindo a cada uma delas uma descrição estrutural, isto é, uma descrição do sistema de relações

64 Ferreira, João de Freitas (1985), a Pedagogia do Léxico, Porto, Edições Claret, pp: 92-93.

65 Como se sabe, ler não é uma simples operação de descodificação de símbolos escritos, mas uma

actividade cognitiva que envolve o concurso de muitas outras operações linguístico-cognitivas de modo a que o leitor e particularmente o leitor de literatura usufrua, em pleno, a mensagem temático-ideológica contida e se delicie ou não com o texto, sua estilística e sua estética.

mediadoras entre as representações fonéticas e as representações semânticas.

Este sistema interiorizado de regras designado por competência é que possibilita ao falante, por conseguinte, a realização de actos de fala, isto é, a actuação ou execução (perfomance) linguística, devendo a competência ser concebida como um sistema subjacente (underlying system) à prática linguística, ao comportamento verbal (language-behavior) de cada locutor”” (Aguiar e Silva: 43-44).

E Aguiar e Silva (nesta sua obra citada no nota de rodapé nº 64) faz um estudo sobre a competência linguística e a competência literária, conceptualizando-as a partir de um mesmo percurso teórico chomskyano.

Contudo, devemos desde já acrescentar que ao nível da Linguística Cognitiva a competência linguística alimenta-se também de outros pressupostos, aliás já assinalados na Primeira Parte desta dissertação, de acordo com as descobertas na Psicololgia, na Neurobiologia e na Linguística que as Ciências da Cognição efectuaram e propiciaram.

Recordamos, por exemplo, o que afirmámos, citando Fernando Garcia Murga (2002:3-9),67 sobre a competência semântica e competência lexical e nestas a necessária competência referencial, que permite relacionar as palavras com a ‘‘realidade’’, e a competência inferencial que permite estabelecer relações semânticas entre expressões de uma língua.

Por outro lado, quer a competência quer a perfomance têm de ter o suporte da memória conceptual , que permite a categorização e o gerar dos protótipos, onde também cabe a emoção cognitiva, fenómeno este que trataremos mais adiante, quando abordarmos a cognição e a literatura.

De qualquer modo, Aguiar e Silva, na mesma obra, ao referir-se à competência literária refere-se a um percursor deste tipo de estudo, melhor dito, a um cidadão da antiga República Democrática Alemã, Manfred Bierrwisch68 que, segundo aquele Professor português, fez ““a primeira tentativa importante de transferir o conceito de competência linguística para o domínio da poética, logo no ano da publicação da obra capital de Chomsky, Aspects of the Theory of Syntax”” (Aguiar e Silva: 106). A propósito, Aguiar e Silva acrescenta:

““Adoptando o modelo proposto pela linguística gerativa chomskyana, Bierwisch postula a existência de uma específica capacidade humana (human ability) que possibilita ‘‘to produce poetic structures and understand their efect’’ (cf. 1970: 98) –– extensiva, portanto, aos agentes (autor e leitor) que, no plano da comunicação poética, são equivalentes ao

speaker-bearer de Chomsky –– designando tal capacidade por competência poética”” (Aguiar e Silva: 107)

67 Murga, Fernando Garcia (2002), El Significado – Una Introducción a la Semântica, Muechen, Licon

Europa, pp: 3-7.

68 Bierwisch, Manfred (1970), ““Poetics and Linguistics””in Freeman, Donald c. Ed. (1970) [título original:

““Poetik und Linguistik”” in H. Kreuzer & R. Gunzenhäuser (eds) Mathematik und Dichtung Munchen. Estudo citado por Aguiar e Silva em Competência Linguística e Competência Literária, p: 142 e também em Estiloso Craveirinha de Calane da Silva, Maputo, ed. Imprensa Universitária, p: 28.

E esta questão teórica também nos chama a atenção para uma outra, ou melhor, não deixa de estar relacionada com o que já no início dos anos 20 e 30 e depois no início dos anos 60 do século XX, Roman Jacobson69 afirmou ser a ““função poética da linguagem”” e que também abordámos na nossa obra O Estiloso Craveirinha,70 na qual nos debruçámos sobre a Pedagogia do Léxico e a função estilística e estética dos lexemas bantus e dos neologismos luso-rongas na obra daquele vate moçambicano e que constituiu a nossa dissertação de Mestrado.

Sabendo que a Linguística é uma ciência que estuda a língua e a linguagem nas seus variados campos e áreas, seja, por exemplo, na sociolinguística, na linguística histórica, na psicolinguística, na linguística computacional, e respectivas disciplinas, que são suportes qualificados para se poder descodificar linguagens e discursos, oralidades e textos nas suas várias funções, relações, interacções e sistemas, torna-se evidente que sem o conhecimento linguístico seria praticamente impossível a descodificação de um texto literário.

Aliás, Aguiar e Silva conclui o seguinte, a propósito desta relação: ““Em virtude da necessária relação ontológica entre linguagem verbal e literatura, da fundamental implicação ôntica do texto linguístico no texto literário, há razões substantivas para que entre a linguística geral e a poética se institua uma interdisplinaridade privilegiada”” (Aguiar e Silva: 149-150)

Esta conclusão acaba também por estar de acordo com o que afirmámos no nosso ponto sobre a metodologia relativamente ao novo paradigma emergente tendente mais para a interdisciplinaridade do que para a fragmentação das e nas ciências.

Antes de tecermos algumas considerações agora do ponto de vista da Linguística Cognitiva sobre esta indissolúvel ligação entre língua e literatura, isto de acordo com os objectivos desta dissertação, vamos ainda citar o Professor da Universidade de Coimbra, Júlio Taborda Nogueira71 que a certo passo do seu estudo, precisamente intitulado ““Sobre o Ensino da Literatura ou da União de Gramática com Poesia””, diz o seguinte:

““Linguagem, língua, discurso e texto constituem, portanto, o esquema conceptual-base, o suporte da coerência dos projectos e programas de formação do ensino da língua e da literatura (v., a propósito, ‘‘Sinfonia da Palavra’’ de Aguiar e Silva, síntese brilhante e exemplar, que todos os professores deviam conhecer).

Importa, então, reafirmar que o carácter fundamentante deste esquema vale simultaneamente para a língua e para a literatura, para o discurso e o texto literário. Porque se é verdade ser a língua, segundo Lotman, um sistema modelizante primário, também é verdade que a

69 Roman Jacobson linguista russo, oriundo do Círculo de Moscovo e que depois também pertenceu ao

Círculo Linguístico de Praga. Num estudo que se tornou famoso intitulado ““Linguistics and Poetics”” e publicado em 1960, ““Roman Jacobson retomou as suas teorias dos anos 20 sobre a função estética da linguagem”” conforme afirmou Aguiar e Silva (1991) em Teoria da Literatura, 8ª edição, Coimbra, Almedina.

70 Silva, Calane (2002), O Estiloso Craveirinha, Maputo, Imprensa Universitária.

71 Nogueira, Júlio Taborda (2000), ““Sobre o Ensino da Língua e da Literatura ou da União de Gramática

literatura, ou melhor, o texto artístico (de que o literário é uma das manifestações), apesar da autonomia resultante da sua vinculação a códigos não estritamente linguísticos, terá que ser sempre visto como expressão, ainda que mais complexa e mais elaborada, da mesma

competência que está na origem de qualquer outro texto””(Nogueira, vol. II:

852-853)

Obtidas que foram estas certezas sobre a estreita ligação entre Linguística e Literatura, o que nos permite, portanto, um maior à vontade no tratamento da duas obras de Craveirinha, precisamente, Xigubo e Karingana wa Karingana, do ponto de vista linguístico-literário, semântico-estilístico, é, no entanto, importante fazermos ainda algumas incursões sobre a mesma questão, mas agora, sob o ponto de vista Cognitivo.

Na Primeira Parte destes Pressupostos Teóricos, expusemos e analisámos o processo de formação de estruturas e conteúdos significativos na nossa mente, dos vários fenómenos cognitivos decorrentes.

Efectivamente, apresentámos a inata capacidade de categorização, a nossa memória conceptual e sobre a qual podemos acrescentar, parafraseando Patrick Hogan,72 poder ser de Memória de Longo Termo ou Memória de Longa Duração, assim como definimos o léxico, os protótipos, a semântica lexical cognitiva e também os ““frames”” e os ““scripts””, uma espécie de ““janelas”” cognitivas abertas e de certo modo ‘‘enquadradoras’’ da semântica lexical, de modo que toda esta informação nos dá já uma ampla visão sobre o enciclopédico estrutural mas também sobre o conceptual verbal e escrito que processamos, utilizando-os tanto para a função normal de comunicação, exposição e argumentação, como para a confecção artística da palavra.

Na verdade, todos estes fenómenos e processos ligados directamente ao processo de comunicação (discurso oral ou escrito) estão necessariamente conectados com o processo de produção artístico-literário. Obviamente não há oratura nem literatura sem competência lexical, sem perfomance linguística.

Hogan, por exemplo, que compartilha cientificamente todo o processo linguístico- cognitivo, especificando melhor, que compartilha com o que já citámos e afirmaram Rastier, Lakoff, Kleiber e Vilela sobre o significante, a categorização, os protótipos, os ““frames”” e ““scripts””, enfatiza a questão dos protótipos e ““scripts”” no que toca à literatura.

Começando por afirmar que ““os ‘‘scripts’’ são importantes não só para guiar a nossa própria acção, mas também para a compreensão das acções de outras pessoas, assim como o relato de acções, incluindo os relatos que aparecem na literatura””(Hogan: 45 –– a tradução do inglês é da nossa responsabilidade), este investigador e professor norte-americano aborda, igualmente, a questão dos protótipos na generalidade e sobre os géneros e textos literários, dizendo sobre eles (incluindo nisto ainda os ‘‘scripts’’), o seguinte:

““We tacitly define genres by feature hierarchies, usually with no clear point at which features shift from definitional to empirically likely. We have contrastive prototypes for literary periods, prototypes that guide us in understanding and evaluating particular words and broader tendencies. When we write literary or art criticism, we rely on scripts; indeed, literary theory could be understood in part as a set of diverse

scripts for producing literary analyses. Moreover, not only is our thought about literature pervaded by these lexical structures, so too is the production of literature. Thus, for example, when authors set out to write in a particular genre, they themselves draw on feature hierarchies and contrastive prototypes, as well as salient exemplars. Authors also follow scripts. Both authors and readers rely on procedural schemas, including schemas particular to literature (e.g. schemas regarding certain sorts of narrative inference). In short, the particular nature and varieties of lexical structures have significant implications for a wide range of issues in literature and arts”” (Hogan: 47)

Depois de se referir sobre o que de igual modo já tinham afirmado outros investigadores por nós antes citados, relativamente ao processo lexical nas nossas mentes, a significação, a identificação e o conexionismo, Hogan73 considera, e nós parafraseamos, que se as palavras fossem sempre acessíveis ou inacessíveis num mesmo grau, então isso poderia levar a mesma quantidade de tempo para identificar, para dizer, por exemplo, rio como uma palavra.

Porém, na verdade, de acordo com Patrick Hogan, leva mais tempo para identificar rio quando se segue à palavra cão do que quando se segue à palavra margem ou barco. O termo prioritário margem ou barco serve para despoletar primeiramente (activar primeiramente na nossa Memória de Longo Termo) a entrada lexical de rio juntamente com outras entradas referidas.

Este ponto, segundo aquele estudioso e investigador, tem consequências significativas para o nosso entendimento sobre a sugestividade e impacto emotivo das palavras literárias. Isto abrirá também, de acordo com Hogan, a transição para o conexionismo, para o circuito conexionista.74

Antes de aprofundarmos a imperiosa questão referente ao processo emotivo lexical uma vez que este também se relaciona com a criação literária, no caso com a criação poética, e depois com a estilística e estética, importa analisar o que afirmou Hogan e que está conectado com o objectivo da nossa investigação.

Quando Patrick Hogan afirma que ““we have prototypes for literaty periods, prototypes that guide us in understanding and evaluating particular words and broader tendencies””(Hogan: 47), significa, efectivamente, que quando utilizamos, por exemplo, os lexemas romantismo, modernismo ou neo-realismo, eles correspondem a protótipos contrastivos na sua realidade periodística e esquemas conceptuais temático-ideológicos relativos a cada um daqueles períodos e/ou movimentos/correntes literárias.

Efectivamente, e puxando agora a questão para o tema da nossa dissertação, quando, prototipicamente, nos referimos, teórica e literariamente, a romanstismo, os ‘‘scripts’’ ou, por outras palavras, as ““marcas”” expressivas e significativas que enquadram

73 Hogan, Patrick Colm (2003), Cognitive Science, Literature, and Arts, New York, Routledge.

74 Circuito conexionista: embora já tivéssemos tratado com Babin (1998) os vários modelos de

processamento do léxico mental, entre os quais o modelo de activação-interactiva (conexionista), interessa- nos apenas recordar que Hogan explica o conexão neurónica, melhor dito, o processo sináptico. Há uma arquitectura neurobiológica de que fazem parte os neurões e onde se incluem os axões (axons) e dendrites que enviam e recebem impulsos eléctricos, havendo aqui um processo de passagem ou inibição dessas entradas e saídas que conectam esses vastos circuitos que abragem todo o sistema neurológico, especialmente o cérebro, e que em última análise ajudam a alimentar o nosso sistema cognitivo e, também, obviamente, ajudam a potenciar o processo criativo (Hogan: 47-58).

o romantismo, ou que o fazem contrastar com outros períodos e movimentos/correntes literárias, são, por exemplo, a relevância do eu subjectivo, a rebeldia, o nacionalismo entre muitas outras marcas diferenciadoras.

Ora, sabendo-se que os protótipos literários e respectivas ““marcas”” de um certo período não constituem compartimentos estanques e que vão por sua vez atravessando outros períodos e influenciando outras correntes, podemos verificar, por exemplo, que o nacionalismo do romantismo de certo modo também se manifesta no modernismo e no neo-realismo, pelo que a obra do escritor africano, modernista e neo-realista, pan- africanista e negritudista que foi José Craveirinha (conheceremos melhor esta realidade sócio-cultural e estética quando tratarmos da vida e obra de José Craveirinha e as marcas das correntes que o influenciaram) é atravessada temática e ideologicamente, emocional, léxica e metaforicamente pelo nacionalismo.

Por outro lado, quando Hogan no final da citação, enfatiza dizendo que ““authors also follow scripts. Both authors and readers rely on procedural schemas, including schemas particular to literature””, estamos perante esquemas pré-textuais e códigos de recepção literária.

De facto, o autor-escritor experiente ou erudito sobre determinadas situações, temas ou ideologias, ou, no caso, correntes literárias que conhece, quer e deseja seguir ou basear-se (lá está o enciclopédico e o conceptual prototípico a funcionar), o autor- escritor, dizíamos, assim o faz, pelo que o seu texto narrativo ou poético terá marcas dessa escolha, seja no léxico, nas metáforas, nas frases. Não estará também aqui implícita a confecção-criação de isotopias literárias, sejam elas temático-ideológicas ou semântico- estilísticas?

O mesmo acontece com o leitor que, de acordo com a respectiva erudição, conhecimento, desejo e estética de recepção, fará uma leitura com melhor, maior ou menor capacidade de descodificação do texto literário e com melhor, maior ou menor grau de prazer estético-emocional.

Já que chegámos ao estético e emocional, entremos então por esse portal que nos levará também à estilística, às metáforas e isotopias em Xigubo e Karingana wa Karingana de José Craveirinha.

1.6. – SEMÂNTICA EMOCIONOLÓGICA: O LÉXICO EMOCIONAL E A