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O protesto Eu Não Mereço Ser Estuprada: causas e consequências

2 M ULHERES M ARAVILHA CONTRA O MUNDO : FEMINISMO , VIOLÊNCIA E LUTA

2.1 Da unidade às multifaces: as ondas do feminismo

2.1.5 A era dos movimentos sociais na Internet

2.1.5.2 O protesto Eu Não Mereço Ser Estuprada: causas e consequências

O protesto Eu Não Mereço Ser Estuprada foi um movimento social ocorrido nas redes sociais Facebook e Twitter, principalmente, como uma reação direta à publicação, em março de 2014, do resultado da pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a respeito da percepção social dos brasileiros em relação à violência contra a mulher. A pesquisa, ainda que fortemente questionada a respeito dos seus critérios de aplicação e apuração, ofereceu respostas que inspiraram discussões nos mais variados meios de comunicação: jornais, revistas, redes sociais, e até mesmo a telenovela veiculada pela Rede Globo na época, Em Família14. Muitos dos resultados da pesquisa giravam em torno de questões sobre violência doméstica e a punibilidade dos homens agressores de suas respectivas companheiras.

Os resultados mais polêmicos, no entanto, falavam sobre a violência contra a mulher de maneira generalizada, sobretudo as respostas à afirmativa “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”, que, por um erro da publicação, contaram com um representativo de 65,1% dos entrevistados em concordância total ou parcial com a frase. A porcentagem elevada chocou a população, e diversos movimentos sociais e até pessoas desvinculadas de alianças de cunho feminista se manifestaram a respeito do assunto, demonstrando vários níveis de rejeição à suposta opinião pública. a mais contundente manifestação, no entanto, ocorreu na forma de um evento (dispositivo para organização de qualquer tipo de encontro, virtual ou real, entre usuários do Facebook; originalmente, o aparato servia ao propósito de organizar eventos como festas e outros tipos de reuniões sociais, porém seu uso para fins de organização de movimentos sociais tem crescido exponencialmente) na rede social Facebook, de nome Eu Não Mereço Ser Estuprada.

O evento, organizado pela jornalista Nana Queiroz, chamava mulheres a se manifestarem contra o resultado da pesquisa, demonstrando sua insatisfação com a realidade social de opressão às mulheres. O protesto ocorria na forma da publicação de auto-retratos, ou selfies, de mulheres (bem como aliados) levantando placas com os dizeres “Eu não mereço ser

14 Fonte: http://gshow.globo.com/novelas/em-familia/extras/noticia/2014/03/estou-perplexo-diz-maneco-apos-

51 estuprada”; era opcional, mas incentivado, que as mulheres fizessem os retratos seminuas para causar maior impacto na manifestação. Em poucas horas, o evento tomou escalas internacionais, recebendo apoio e atenção de mulheres em países como México e Estados Unidos. Portais eletrônicos de notícias como UOL15 e R716 publicaram a respeito das manifestações, que também foram foco de uma matéria no programa Fantástico17, da Rede Globo, e inclusive ganhou respaldo da presidenta Dilma Rousseff18.

Paralelamente, no entanto, houveram diversos discursos contrários ao protesto, ponderando sobre ocasiões em que mulheres se comportam de maneira a propiciar o estupro19, ao ponto de o protesto se tornar um meme (uma forma de expressão típica das redes sociais virtuais que se vale de recursos audiovisuais para reproduzir uma situação jocosa em diversos contextos) em que pessoas aplicaram a expressão “Eu não mereço” em outros contextos em forma de piada20. Blogs de mulheres que se consideram antifeministas acusaram o Ipea de manipular as pesquisas em favor de feministas21, considerando a pesquisa um “terrorismo psicológico” por supostamente provarem com uma pesquisa “falaciosa” que o estupro é um comportamento inerente a todos os homens. De maneira ainda mais agressiva, a idealizadora do protesto recebeu ameaças de estupro por sua iniciativa, de homens que afirmavam que a estuprariam se a encontrassem22. Por conta da massiva quantidade de ameaças recebidas no evento do protesto, a página do evento foi excluída, dando lugar a uma página gerenciável, ainda na rede social Facebook, para que as representantes do protesto pudessem lidar mais facilmente com possíveis atentados às participantes do evento (dentre as quais se incluíam vítimas de violência sexual)

Com a errata publicada pelo IPEA no dia 4 de abril de 201423, alegando que a

15Fonte: http://noticias.uol.com.br/album/2014/03/29/campanha-nao-mereco-ser-estuprada.htm. Acesso em

09/10/2015. 16Fonte: http://noticias.r7.com/distrito-federal/fotos/eu-nao-mereco-ser-estuprada-brasilienses-aderem-ao- movimento-e-publicam-fotos-de-protesto-no-facebook-01042014#!/foto/1. Acesso em 09/10/2015. 17Fonte: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/organizadora-de-campanha-contra-estupro-recebe- ameacas-na-web.html. Acesso em 09/10/2015. 18 Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/03/dilma-se-solidariza-com-jornalista-que-criou-campanha- contra-estupro.html. Acesso em 09/10/2015.

19Como exemplo, ver:

http://eunaomerecoserestupradadenuncia.tumblr.com/post/82119376256/httpswwwfacebookcomewertondourado 5. Acesso em 09/10/2015.

20Como exemplo, ver: https://www.facebook.com/IrmaZuleideOficial/posts/502782699845407. Acesso em

09/10/2015. 21Fonte: https://mulherescontraofeminismo.wordpress.com/2014/03/31/terrorismo-psicologico-do-estupro- feministas-usam-a-pesquisa-do-ipea-e-manipulam-dados-est/. Acesso em 09/10/2015. 22 Fonte: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/03/29/organizadora-do-eu-nao-mereco-ser- estuprada-recebe-ameacas-de-estupro/. Acesso em 09/10/2015. 23 Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/04/ipea-divulga-bcorrecaob-para-pesquisa-sobre- estupro.html. Acesso em 09/10/2015.

52 porcentagem de 65,1% se referia a uma outra questão (a de que mulheres que sofrem violência doméstica, porém não se separam de seus cônjuges, gostam de sofrer a violência), e que a proporção correta de respondentes concordantes em relação ao suposto merecimento do ataque à mulher era de 26%, o movimento perdeu sua força, uma vez que sofreu questionamentos ainda mais severos – tanto em relação à confiabilidade dos resultados quanto à relevância do movimento24. Ainda assim, o protesto ganhou manifestações físicas em algumas cidades25 e universidades brasileiras26, fixando sua posição enquanto movimento em busca de mudança social. Nas redes sociais, há várias páginas remetentes ao protesto, inclusive a página “Ninguém Merece Ser Estuprada”, resultante direta do movimento liderado por Nana Queiroz. Na descrição do protesto, as manifestantes afirmam que o protesto “Eu Não Mereço Ser Estuprada” não é um movimento por si só, e sim uma reunião de diversos movimentos sociais feministas em busca do fim das violências contra a mulher (ver Anexo 9). No entanto, seguindo o entendimento de Castells (2013) de que movimentos sociais são instrumentos de mudança social originados de ações coletivas distantes dos meios institucionais com o objetivo de alcançar autonomia social, considero este protesto um movimento social em si mesmo.

2.2 Obstáculos à frente: masculinidade hegemônica nas violências contra a mulher