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4 A BATALHA : IMPRENSA HEGEMÔNICA VS FEMINISMO DAS REDES SOCIAIS

4.2 No certame da informação: análise das notícias

4.2.3 Representação dos eventos sociais

Quanto aos eventos sociais representados nos textos, como dito anteriormente, o evento principal da notícia é a violência sexual perpetrada contra a vítima. A representação, no entanto, é indireta, uma vez que as notícias dependem de relatos para remontar o fato jornalístico. Assim, podemos entender que as representações de um evento se dão em termos de outro; no caso, o relato das autoridades, do Boletim de Ocorrências ou da própria vítima, no caso do Texto 4. Os relatos que passam pelas vozes das autoridades, todavia, proporcionam uma representação ainda mais indireta do evento da violência sexual, uma vez que se trata de um relato de um relato, configurando um segundo filtro representativo do ocorrido.

Conforme van Leeuwen (2008, p. 106), a necessidade desse segundo filtro seria o caso de uma legitimação por autorização, uma vez que, assim como constatado nos termos da intertextualidade, o discurso policial confere ao relato reportado na notícia o status de verdade inquestionável. À exceção do Texto 6, que legitima o evento do estupro coletivo a partir da autorização do outro jornal cuja notícia servira de fonte, todos os textos utilizam a autorização do evento do estupro a partir do evento da confirmação dada pela entidade policial, seja de

92 maneira pessoal – “a autoridade legitimada é confiada a pessoas por conta de seus status ou papéis em uma instituição específica” (VAN LEEUWEN, 2008, p. 106) – ou impessoal – legitimação a partir da palavra de outros textos e discursos. Nos textos em análise, podemos considerar a palavra policial direta ou em forma documental igualmente legitimadoras, uma vez que o registro dos Boletins de Ocorrências é feito por policiais; é a partir de sua palavra, direta ou indireta, que o evento se confirma. Mesmo o Texto 4, como pudemos ver anteriormente, que traz a representação da violência a partir do relato direto da vítima, traz na reportagem elementos discursivos que potencialmente colocam em dúvida a palavra da vítima.

Essa dúvida possivelmente ocorre porque tanto o Texto 4 quanto as demais notícias trazem eventos anteriores ou paralelos à violência, como forma de Contextualização do estupro, como podemos ver já nos títulos das notícias:

(35) Adolescente marca encontro e é estuprada em Pernambués, diz polícia (Texto 1)

(36) Jovem manda foto nua para foragido da prisão e sofre tentativa de

estupro (Texto 2)

(37) Mulher diz ter sido estuprada em carona com desconhecido na PB (Texto 3)

(38) Adolescente diz ter sido estuprada por DJ após sair de baile funk no Rio (Texto 4)

(39) Mulher é vítima de estupro em festa de república em Lavras (Texto 5)

(40) Jovem argentina é estuprada em festa convocada por evento no

Facebook (Texto 6)

A forma como eventos são ordenados em suas representações, segundo Fairclough (2003, p. 141) alude para uma potencial relação de sentido entre diferentes acontecimentos. No caso do exemplo (39), o evento “festa de república” é simultâneo, e contextualiza o local do evento “estupro”. No entanto, a ordenação dos eventos unida à posição passiva do ator social “mulher” poderia sugerir que a mulher estivesse em um local propício para a ocorrência de violência sexual, uma vez que festas universitárias comumente registram casos de estupro. Esta noção se amplia com a ação social da mulher de ingerir bebidas alcoólicas e dormir nua em um quarto durante uma festa, o que a teria deixado vulnerável e propensa a sofrer a violência sexual, como já vimos anteriormente.

93 Nos demais textos, os eventos possuem caráter conseguinte. No exemplo (35), título do Texto 1, bem como no lead (“Uma adolescente de 17 anos foi estuprada (...) após marcar um encontro com uma amiga”) o evento do encontro marcado se relaciona com o estupro, ainda que, na parte da Explicação da notícia, conste a informação de que a vítima não havia marcado o encontro com o(s) suposto(s) estuprador(es); ainda que fosse o caso, a relação de causa e consequência incentivada pelo título potencializa a culpabilização da vítima, pois pode levar o leitor a julgar prematuramente a vítima como alguém que teria deliberadamente ido de encontro à própria violência.

O título do Texto 2, exemplo (36), segue o mesmo padrão; o foco no evento “jovem manda foto nua para foragido da prisão” leva à uma potencial relação de causa e consequência, não apenas pelas representações dos atores sociais “jovem” e “foragido da prisão”, mas pelo ato do envio das fotos em si, que configuraria uma possível motivação para o estupro. No decorrer da Contextualização, o evento do envio das fotos volta a ser repetido, detalhando o conhecimento do agressor pela vítima e os antecedentes de seu relacionamento. Mais uma vez, o ordenamento dos eventos possibilita a culpabilização da vítima, uma vez que evoca a ideia de que a vítima não teria sofrido a agressão se não tivesse mantido contato íntimo com um foragido da prisão, configurando um pré-julgamento das ações da vítima perante o agressor.

No exemplo (37), podemos encontrar uma relação de causa e consequência na sobreposição dos eventos do estupro e da “carona com desconhecido”. É importante salientar que, no caso do Texto 3, o evento estupro só é citado uma vez no corpo do texto, sem ação social ou detalhamento do ocorrido (não há, por exemplo, informações sobre como ou quando a vítima teria conseguido acionar a polícia), enquanto o evento “carona” é detalhado duas vezes, no lead e na Explicação, enaltecendo a ação social da vítima. Essa evidenciação chama atenção para o possível julgamento da suposta “imprudência” da vítima, que não deveria ter pedido carona a um homem desconhecido, sob risco de sofrer violência sexual.

No exemplo (38), o evento “baile funk”, ainda que seja informação pertinente para o lead por informar o local onde o crime se iniciou, poderia ocasionar em um pré-julgamento da vítima por conta do valor social atribuído a este tipo de evento social (um local propenso a supostos “atos libidinosos”, como veremos também na análise do Texto 8). Além disso, há a especificação de que a vítima teria ido à festa sem o consentimento ou conhecimento dos pais, amplificando a sua possível culpa, uma vez que não possui a autorização parental para legitimar sua ação social. A culpabilização da vítima, entretanto, poderia estar mais associada ao evento “carona”, em que a vítima, ainda que pressionada por suas amigas, aceita o convite do futuro

94 agressor. Mais uma vez, o ordenamento dos eventos leva a uma potencial culpabilização de uma vítima que não deveria confiar em estranhos.

No exemplo (39), podemos questionar a relevância da informação de que a festa teria sido convocada por meio da rede social Facebook, uma vez que o dado não é determinante para o evento do estupro. Aqui, então, podemos entender na ordenação dos eventos um pré- julgamento das condições em que o crime ocorreu, pois supostamente se trataria de um evento não recomendável. Conforme já constatado anteriormente, entendemos que há uma eufemização no evento do estupro, a partir de termos que potencialmente abrandariam a violência sexual, trazendo à tona a suposta “sedução” sofrida pela vítima em relação ao seu agressor. Esta colocação também poderia configurar um pré-julgamento da vítima, que teria se “deixado levar” por um homem desconhecido “de olhos claros”, que a teria agredido sexualmente em seguida. Também é importante salientar que a fotografia inserida no corpo do texto retrata a cena onde o crime teria ocorrido. Essa fotografia poderia se tratar de uma legitimação multimodal, que, de acordo com van Leeuwen (2008, p. 119-120), é uma maneira de utilizar recursos visuais ou auditivos para representar determinado evento, com a finalidade de reiterar o que é expressado discursivamente em texto. Na legenda, encontramos a informação de que “Durante a festa, o ambiente estava escuro e iluminado apenas por um globo”; podemos, assim, entender que a fotografia foi utilizada como uma maneira de explicar por que o crime teria ocorrido – não pela ação dos agressores, e sim porque o ambiente estava escuro, facilitando o estupro.

Em todos os textos, podemos encontrar potencial linguístico-discursivo para legitimações por racionalização voltadas para o meio. Segundo van Leeuwen (2008, p. 114), essas legitimações constroem o propósito da ação como um meio voltado para o fim, em um sentido que não acentua a agência dos atores sociais, e sim trata o evento como uma fórmula circunstancial, do tipo “Chegar a x por meio de y”. No caso das notícias, pois, a ação anterior da vítima legitima o estupro sofrido, ignorando a agência do agressor. No Texto 1, a vítima teria sido estuprada por meio do encontro marcado; no Texto 2, pela foto íntima enviada ao agressor; no Texto 3, pela carona pedida a um desconhecido; no Texto 4, por aceitar a carona do DJ (e por sair de casa sem a autorização dos pais para ir a uma festa, o que também poderia configurar com uma espécie de avaliação moral da conduta da vítima); no Texto 5, pela ingestão de álcool e por dormir nua em uma festa; no Texto 6, por ser “seduzida” por um homem desconhecido.