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Ao longo das entrevistas, observamos especificamente nas escolas particulares a ausência de critério na escolha dos profissionais para quem são encaminhados os alunos com queixas escolares. Quando perguntamos para qual psicólogo costumam encaminhar esses alunos, as entrevistadas mencionaram não só psicólogos, mas também psicopedagogos ou pedagogos, não fazendo distinção entre a especificidade do atendimento de cada um:

Eu recebo a visita de algumas psicólogas, de psicopedagogas, que vêm para a educação, se apresenta, mostra o trabalho delas e a gente encaminha. Eu não tenho um ou outro em especial, não. A gente pede que faça a procura. Em primeiro momento, a gente pede que faça uma consulta com neurologista e imediatamente que se procure um psicólogo. (Marcela - Coordenadora de escola particular)

Percebe-se que, no geral, os psicopedagogos têm buscado na psicologia a formação que lhes falta, como conteúdos da Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Aprendizagem e do Ensino; porém, nem sempre o psicólogo busca na pedagogia ou em outras áreas uma ampliação de seus conhecimentos para o trabalho frente ao fracasso escolar e às dificuldades no processo de escolarização. Nas palavras de Lino de Macedo (citado por Souza, 2004),

(...) a Psicologia reclama esse privilégio, mas na prática não sabe como fazê-lo, porque reluta em superar sua visão de aprendizagem restrita àquele que aprende ou não aprende, aos processos psicológicos ou subjetivos deste processo. Como incluir, no âmbito da Psicologia, por exemplo, os conteúdos ensinados (Matemática, Língua Portuguesa, conceitos médicos ou saúde)? (p. 234).

Se incorporasse conhecimentos da pedagogia, dentre outras áreas de conhecimento, o psicólogo traria para sua atuação elementos importantes para a prática no âmbito educacional de maneira geral e, mais especificamente, no que se refere à queixa escolar.

Diante de tais constatações, cabe refletir acerca do lugar que a psicologia tem ocupado frente a esta demanda e sobre a necessidade de formação profissional para atendê-la, o que inclui uma compreensão adequada sobre a produção das queixas escolares.

Com relação à contribuição do psicólogo referente às queixas escolares, as escolas públicas demonstram resistências, embora reconhecendo as possibilidades de contribuição desse profissional. Tais resistências são atribuídas tanto às precárias condições sociais dos alunos quanto à atuação descontextualizada que muitas vezes o psicólogo pratica, como se observa no trecho a seguir.

A vida deles no dia a dia é difícil. Então, não é que não surta efeito. Então, assim, a influência lá fora é maior que o trabalho que o psicólogo faz, que o especialista faz, que o professor faz. Porque lá fora a vida é outra, o psicólogo não está lá na rua. O psicólogo pode direcionar, abrir a cabecinha, sabe, dar novas... uma injeção de ânimo, de perspectivas. Entre eles, a afetividade muito baixa ou quase nenhuma, e lá fora a hora que eles chegam, a vida deles vai esperando.

Esta diretora de escola pública compreende as questões familiares e sociais como algo maior que o trabalho que o psicólogo e a instituição escolar podem realizar. Essa visão remete dicotomia escola e sociedade, discutida anteriormente, reflete uma realidade que perpassa as questões escolares e evidencia as más condições de trabalho nas escolas públicas.

Outra diretora faz pontuações importantes sobre a relação do psicólogo com as questões escolares no atendimento psicológico às crianças:

O profissional de hoje não conhece a realidade da escola. Então, primeiro, é o contexto de um nível de crianças que convivem numa sala de aula, então não tem nada a ver com o contexto que eles convivem em casa, no consultório ou no pequeno

grupo de apoio das terapias de grupo, é completamente diferente. Então, muitas das vezes, para eles, ali naquele pequeno contexto, ele acha que está resolvido porque, muitas das vezes, eles dão a alta pra criança, porque é aquele pequeninho ainda, enquanto que a hora que ele retorna para a sala de aula, que ele está convivendo com mais de trinta colegas, dificulta. Então, você vê, eu acho que esse profissional precisava conhecer a realidade da escola. (Diretora de escola pública)

A afirmação da diretora vai ao encontro dos pressupostos e do movimento da Psicologia Histórico-Cultural, que acredita na participação, na consideração e na transformação das condições concretas em que a queixa é constituída. Infelizmente, nem sempre é isso que acontece, ficando o trabalho do psicólogo à mercê de olhares reducionistas e descontextualizados.

O trabalho psicológico que articula o aprender com as especificidades qualitativas do espaço escolar e da relação pedagógica nos quais se expressa, mas não leva em conta a história e os contextos de vida da criança, invariavelmente irá depositar no aluno um rótulo desqualificativo, que será assumido como verdade, como um fato natural.

Nesse sentido, M. P. R. Souza (2007) ressalta que a psicologia trabalha a serviço da exclusão quando concebe as causas da queixa escolar como problemas emocionais ou deficiência mental, ancorada no uso de testes psicológicos, eximindo de responsabilidade o sistema escolar que muitas vezes produz estas dificuldades. Desta forma, a psicologia não privilegia o conjunto de relações do processo de escolarização e não favorece ações que de fato possam amenizar ou modificar estas relações.

Outro ponto que caracteriza a realidade das escolas públicas pesquisadas são os inúmeros profissionais e instituições a que a escola recorre e que “acodem”, sem referencial crítico, principalmente a demanda social e de saúde do alunado e seus familiares. São instituições públicas ou não governamentais que prestam serviços gratuitos e oferecem

atendimentos, assistência médica, orientações familiares, oficinas de trabalho, proteção e prevenção da violência e da evasão escolar.

As precárias condições do sistema de saúde público são conhecidas por todos, bem como os entraves burocráticos e a enorme demanda de atendimentos que estes órgãos apresentam. Os usuários destes serviços muitas vezes se cansam da demora e dos limites postos pelos percalços burocráticos e acabam não os utilizando, ficando sem recursos para superar seus problemas. A pesquisa de Marçal (2005) faz uma abrangente leitura destes serviços por meio de entrevistas com psicólogos que trabalham na rede pública de Uberlândia. Em suas análises, a pesquisadora discorre sobre as condições de trabalho neste setor, que confirmam as reclamações dos usuários sobre a demora na espera, a burocracia e a falta de recursos materiais, de espaço e de privacidade.

A interlocução das escolas públicas com os serviços de saúde pode ser constatada nos trechos abaixo, transcritos de relatos das diretoras de escolas públicas:

No postinho19 eu ligo para a V. ali, acode fulano aí que está indo. Porque ela é

enfermeira. Porque nós temos aqui aquela parceria com a Polícia Militar, a ONG20, o coisa do município ... Programa de Integração das Entidades do Bairro do Lagoinha. É a Polícia Militar, a ONG, o Postinho do Lagoinha e (...) Conselho Tutelar, por exemplo, sou eu quem encaminha. Número de faltas, anotação de faltas sou eu, número de faltas, aí eu encaminho.

Porque é saúde pública, ele vai uma, duas, três, quatro, dez e às vezes não tem... Não consegue ser atendido (...) Então, acaba que o pai cansa, por isso, nós temos um menor número de encaminhamentos... poderíamos ter mais encaminhamentos.

19 Posto de saúde do bairro

É este tipo de coisa, saúde pública é difícil de você manter uma mesma pessoa para te dar um feedback e ver o que ele tem.

Os depoimentos evidenciam as dificuldades de acesso ao serviço público gratuito de qualidade, que respeite os direitos da sociedade e que se comprometa socialmente com as demandas diversas que lhe chegam.