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fílmicas e narrativas dos receptores

2.1. Somos tão jovens (2011), anos 1980 e a geração Coca-Cola

2.1.2. Punk e anarquismo

Em 1976, pouco depois da explosão dos Sex Pistols, nasce nos bairros a sudoeste de Londres e em torno de Kings Road um novo estilo batizado com o significativo nome de punk (literalmente: imundice, merda) [...] o êxito do estilo punk se deveu, em parte, a sua capacidade para retratar com cores fortes o movimento histórico que começavam a viver as sociedades ocidentais (em 1873 explodira a crise do petróleo) (Feixa, 2004:313).

A adesão de jovens brasilienses ao punk é um acontecimento ilustrativo das trocas entre culturas e sociedades diferentes que contribuíram para o processo de mundialização da cultura; trata-se também de um movimento em que houve troca de informações e valores, mas em que o internacional foi apropriado, em certa medida, antropofagicamente pelo nacional. O punk chegou ao Brasil pouco tempo depois de efervescer em Londres e, aqui, tornou-se uma forma de resistência ao governo militar. Enquanto, na Inglaterra, o punk surgiu como manifestação de revolta e expressão da insatisfação de garotos operários e das camadas populares, no Brasil, foi apropriado, principalmente, pela classe média, a qual realizava viagens internacionais de férias ou de estudo. Os filhos de generais ou das camadas média e alta tinham contato com os movimentos contraculturais europeus e norte-americanos, além de trazerem de suas visitas ao exterior magazines sobre música, discos e fitas de bandas estrangeiras.

O punk se transformou em uma identidade global que significou muitas coisas diferentes para muitas pessoas diferentes. Podia ser uma moda, ou um estilo musical desprovido de conteúdo. Mesmo jovens politicamente conservadores se juntaram às fileiras de fãs e músicos punks (hoje há bandas punks cristãs de direita). Por outro lado, o que o punk moldou foi uma postura Faça Você Mesmo (Do It Yourself – DIY). Em vez de ficar sentado idolatrando astros do rock ou gurus que supriam as pessoas com doses de uma ou outra viagem grátis, os fãs do punk eram encorajados a pegar suas próprias guitarras, um mimeógrafo ou algumas roupas velhas – ou o que quer que estivesse disponível e fosse barato – e se expressar. À medida que os anos 1970 desaguaram nos anos 1980, um

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núcleo de grupos punks sérios e insubordinados de orientação anarquista desenvolveu instituições alternativas coerentes, hábeis e resistentes com as quais a esquerda hip só poderia sonhar. Selos musicais alternativos, clubes para apresentações, fanzines, clubes de troca de fitas cassete, vídeos e filmes independentes surgiram da estética punk. Coletivos políticos punk e ocupações ajudaram os jovens de inclinação contracultural a sobreviver à era Reagan/Thatcher e abasteceram as tropas com várias manifestações contra o sistema durante aquela época. E comunas anarco-punks rapidamente podiam ser encontradas praticamente por toda parte: no México, na Europa Oriental no exato momento em que os muros stalinistas estavam caindo, nos Balcãs, ao longo de todos os problemas da região. (Goffman, 2007: 361).

Essa atitude Faça Você Mesmo do punk foi o que revelou sua íntima relação com as ideias anarquistas baseadas na ação direta, no poder de ação e decisão do indivíduo. Não foi à toa que Renato Russo, partilhando de ideias anarquistas, montou uma banda punk. O imperativo Faça Você Mesmo foi o que permitiu àqueles jovens brasilienses da década de 80 formarem suas bandas e consolidarem suas carreiras de músicos mesmo se mantendo afastados da indústria da música e, por conseguinte, da cultura de massa. Eles não tinham apoio de grandes patrocinadores; improvisavam shows, nos quais podiam tocar e se expressar livres das concessões que muitos artistas se veem obrigados a fazer a suas produtoras. Eles podiam falar e cantar o que bem quisessem! No fundo, as bandas de Brasília – Aborto Elétrico, Plebe Rude, Legião Urbana e Capital Inicial –, por um curto período de tempo, conseguiram realizar a tão sonhada “arte livre”, conseguiram gritar para os outros suas ideias e sentimentos. Eles inovaram e experimentaram diferentes modos de fazer música e de viver dentro de um regime autoritário e repressivo, em que não havia liberdade de expressão. Conseguiram viver uma vida emocionante, pelo menos por alguns momentos; estavam no comando da própria vida, fazendo o que queriam, mesmo diante de tantas adversidades.

A radicalidade punk de tendência anarquista demonstrou-se crítica, inclusive aos movimentos contraculturais que surgiram por volta de 1960 – como, por exemplo, o movimento hippie – e aos astros do rock – entre eles, os integrantes das bandas Beatles e Rolling Stones –, que haviam escandalizado os defensores dos “bons costumes”, alguns anos antes, propagando a utilização de drogas e a liberdade sexual, mas que começavam a se acomodar à fama e ao dinheiro (Goffman, 2007).

No entanto, vale lembrar – e, no filme, o próprio Renato percebe – que o punk tinha seus limites, que poderia facilmente virar moda e que muitos dos integrantes de bandas punks pouco se importavam em manter uma atitude de contestação dos rumos da sociedade

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brasileira. Os primeiros atos punks foram importantíssimas formas de radical contestação dos princípios da sociedade burguesa, mas não foi à toa que o Sex Pistols se diluiu rapidamente. A radicalidade não suporta a permanência. As coisas mudam. A radicalidade contestatória não permitiria aos anarco-punks participarem plenamente do mercado musical ou estabelecerem- se, instituírem-se, permanecendo com a mesma formação por muito tempo.

Renato Russo não se desvinculou por completo do punk-rock, mas, no decorrer de sua carreira, experimentou diferentes e diversos estilos de fazer música, deixando transparecer um cuidado maior com a composição de letras do que com a fidelidade a um estilo musical. Foi por meio de suas letras que manteve vivo seu espírito crítico e de contestação, independentemente de estar ou não associado a um movimento ou a um grupo.