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fílmicas e narrativas dos receptores

2.3. Narrativas imagéticas sobre juventude:

2.3.2. Tensões Geracionais

Os dois filmes, Somos tão Jovens e Confissões de Adolescentes, indiretamente, abordam a tensão geracional. É possível perceber certo de desentendimento ou distância entre pais e filhos nas duas narrativas, tornando visível que, apesar de os personagens sentirem afeto uns pelos outros, eles parecem não falar a mesma língua; existe uma série de ruídos próprios da diferença geracional que impede um entendimento completo ou mesmo o compartilhamento de alguns sentidos, sentimentos e pensamentos, ainda mais considerando que as experiências, em sua grande maioria, não são compartilhadas.

Em Somos tão Jovens, os pais de Renato Russo não entendem o estilo punk, não enxergam o punk e as músicas da banda do filho da mesma maneira que Renato e seus amigos. Isso fica explícito em uma cena na qual os pais, Carminha e Renato, estão na plateia de uma das apresentações do filho e não entendem nada do que a banda que se apresentava antes, a Plebe Rude, estava cantando. Aquela apresentação não fazia sentido para eles. Aplaudem por educação, não porque tivessem vivido uma experiência emocionante igual aos jovens que também estavam na plateia e transbordam alegria, cantam junto, pulam e gritam.

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Outra cena em que fica claro que as concepções de vida de Renato e de seus pais são divergentes é aquela em que Carminha e Renato entram no quarto do filho preocupados com a notícia de que este havia abandonado as aulas que ministrava num curso de inglês e comentam que se tornar músico não é uma opção segura; seria melhor que Renato trabalhasse no Itamaraty.

Mas a incompreensão não se dá apenas por parte dos pais em relação às escolhas e ao estilo de vida de Renato. Também existem as cobranças de Renato em relação aos pais, principalmente quanto às atitudes diante do governo militar. Renato Russo e seus pais, visivelmente, não partilhavam uma mesma visão de mundo, expectativas para o futuro, estilo e valores: enquanto Renato valorizava uma vida emocionante em que pudesse fazer aquilo de que gostava – compor, cantar e tocar – e expressar suas ideias, fazer a diferença no mundo, os pais estavam mais acomodados e valorizavam a segurança e o conforto, queriam que o filho seguisse passos mais calmos e seguros e tivesse um emprego estável no Itamaraty. Além disso, assustavam-se com o estilo de vida “perigoso” de Renato, sempre envolvido com o uso de drogas e com a polícia.

Em Confissões de Adolescentes, o pai cumpre o papel de lembrar às filhas que suas escolhas têm consequências com as quais terão que lidar pelo resto da vida. Ele repete várias vezes, no decorrer do filme, as frases: “cuidado com os impulsos, eles são como bolhas de sabão, explodem na sua cara” e “a vida é uma coisa séria”, frases que parecem não fazer muito sentido para elas, mesmo porque, inevitavelmente, elas não têm como entender plenamente aquilo que ainda não viveram. Ou seja, a questão não é apenas geracional, que implica um contexto histórico, mas está também relacionada ao tempo do indivíduo e à experiência de cada um. Mais do que divergências advindas de épocas distintas de socialização, a distância entre pais e filhos também tem a ver com as diferenças de experiência e de vivência subjetivas.

Tendo em vista que o enfoque do filme são as confissões dos adolescentes, é de se esperar que os personagens adultos não sejam muito aprofundados. E mais, os pais são, praticamente, vistos pela perspectiva dos filhos. Paulo aparece pouco e sempre como um sujeito mais ou menos bravo, sério e preocupado com o bem-estar de suas filhas; sempre fazendo cobranças. Ele levanta as questões da necessidade de reduzir o custo de vida e de

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evitar despesas inúteis e desperdícios; cobra juízo de suas filhas quanto à forma de conduzir seus relacionamentos; pede que se previnam de uma gravidez ou de doenças sexualmente transmissíveis, pede que usem camisinha. Além disso, exerce certa pressão sobre Bianca em relação à escolha da faculdade a ser cursada por ela, que está no último ano do ensino médio e se vê obrigada, pelo pai, a prestar vestibular.

Em uma das cenas de discussão entre Paulo e Bianca, a garota chega até a dar uma definição própria da personagem Paulo vista pelo ângulo de um adolescente. Ela afirma que não quer ser como ele: não quer prestar vestibular para direito e tornar-se uma advogada para, então, passar horas sentada num escritório lendo sobre os problemas dos outros, chegar tarde em casa e continuar pensando nos problemas dos outros e “encher o saco das filhas”31. Essa

fala de Bianca traduz muito a visão que os jovens têm sobre o que é ser adulto na sociedade de hoje. Ser adulto parece ser alguém confinado ao trabalho e às obrigações burocráticas da vida, alguém estressado, preocupado e cheio de problemas, que não sabe aproveitar a vida. Não é à toa que muitos jovens não gostam de pensar no futuro e nem querem crescer. Isso não necessariamente implica em não assumir responsabilidades ou as consequências dos próprios atos. O que remete a uma dúvida: o que chamam de síndrome de Peter Pan (jovens que não desejam assumir responsabilidades ou não amadurecem) seria uma fuga das responsabilidades ou uma fuga de um modo de vida opressor? Ou seja, o fato de um jovem não desejar participar do mundo adulto não significa que ele seja um hedonista irresponsável. Talvez o problema esteja na própria configuração do que é ser um adulto em nossa sociedade. Essa questão será desenvolvida no terceiro capítulo ao abordar a mediação geracional.

As pressões sociais exercidas sobre os jovens – normalmente feitas pelos pais, já que eles cumprem o papel de adequar seus filhos para a vida em sociedade – são diferentes conforme a classe social e o gênero. A pressão para prestar vestibular e escolher uma carreira é mais comum sobre jovens de classe média e alta, tendo em vista que muitos dos jovens das camadas populares, até há poucos anos, não tinham muitas esperanças na formação escolar e acadêmica, além de, muitas vezes, terem que começar a trabalhar cedo para contribuir para as despesas da casa. Apresentar-se para o serviço militar, por exemplo, é uma das pressões pelas quais passam alguns meninos. Já as meninas, normalmente, são mais controladas pelos pais e

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incentivadas a ficar em casa, a sair menos, a beber menos; existe, de maneira geral, um cuidado maior com os namoros e relacionamentos das filhas do que com as relações dos filhos. Muitas convenções acerca da sexualidade e da virgindade feminina mudaram nas últimas décadas, entretanto, ainda não se vive um momento totalmente liberado de princípios patriarcais.

É possível perceber, nos filmes, a existência de um cuidado maior com as filhas mulheres. Isso fica evidente tanto pela comparação entre a vida de Renato Russo, retratada em Somos tão Jovens, e o universo das quatro irmãs, abordado em Confissões de adolescentes, quanto pela comparação entre a própria atitude de Paulo para com suas filhas, em Confissões de Adolescentes, e a forma como a mãe de Felipe (colega de classe e namorado de Clara) tenta ajudá-lo a perder a virgindade, propondo-se, inclusive, a pagar uma profissional para ele. Enquanto Paulo deixa claro que prefere que suas filhas esperassem mais para iniciar a vida sexual, a mãe de Felipe preocupa-se com o fato de o filho ainda não ter utilizado as camisinhas que encontrou em sua carteira. O tempo socialmente construído para a experimentação sexual apresenta diferenças conforme o gênero: enquanto um garoto de 14 anos já é incentivado, pela mãe, a iniciar sua vida sexual, uma menina da mesma idade, na concepção do pai, não deveria nem pensar no assunto.

Essa diferenciação entre meninos e meninas está diretamente relacionada à questão geracional, pois, até a geração de 1960, era, praticamente, inquestionável o fato de as mulheres serem destinadas ao espaço doméstico e os homens projetados para a rua, para o convívio social. Desde então, questiona-se a estrutura patriarcal e muitas coisas mudaram: as mulheres conseguiram se fazer mais independentes e ativas política e socialmente. Entretanto, a educação vem mudando lentamente, os resquícios da sociedade patriarcal ainda se fazem presentes.

A tensão geracional não tem a ver apenas com as divergências entre pais e filhos; tem a ver com as divergências entre as concepções de mundo de momentos históricos distintos, que, normalmente, se expressam nas relações sociais, sendo mais visíveis nas relações entre pais e filhos (vale ressaltar, que não, necessariamente, pais e filhos pertençam a gerações distintas). Muitos dos pais dos adolescentes de hoje são filhos de pessoas que cresceram num mundo em que as mulheres eram donas de casa e os homens os provedores. Então, por mais

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que já sejam adultos pós-revolução sexual e movimentos feministas, não se desvincularam por completo dos valores e princípios transmitidos por seus pais. E, por sua vez, com menos força, irão “transmitir” (essa transmissão não é um processo espontâneo, pacífico e linear) aquilo que herdaram a seus filhos. Existe uma convivência de tempos distintos, existem diferentes gerações convivendo e se comunicando, promovendo intercâmbios, num movimento que comporta aproximações e afastamentos. Essa discussão será aprofundada no item 3.3. Mediação geracional.