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1. As particularidades da recepção crítica do teatro de Qorpo-Santo

1.2. E Qorpo-Santo se fez naquele maio

O momento de resgate da obra de Qorpo-Santo está envolto por algumas urgências e orientações artísticas que parecem ter sido determinantes para a habilitação desse autor provinciano do século XIX ao conturbado Brasil da segunda metade do século XX. Por um lado, havia na década de 1960 uma franca euforia diante da modernização da cultura e revigoramento do espírito de vanguarda. Já por outro, notava-se uma necessidade de revestir a arte de uma função participante diante da sociedade, que, naquele momento, inclinava-se à resistência, à opressão e à afronta aos costumes conservadores29. Com efeito, tanto o espírito modernizador quanto a busca pela oposição ao status quo parecem ter delineado a identidade de Qorpo-Santo para o público e a crítica dos anos de 1960, justificando desde a seleção daquelas peças que dariam visibilidade a esse autor revisitado, até a orientação sob a qual sua obra seria vista.

Tal período é marcado por significativas mudanças das práticas teatrais, em que havia discussões sobre a quebra de espaço cênico, o surgimento novos métodos de interpretação e a criação de uma dramaturgia mais próxima à realidade nacional. Ou seja, época em que o fazer teatral como um todo estava sendo discutido por intelectuais, a fim de estruturar e entender as várias reformulações estéticas que estavam ocorrendo no teatro brasileiro daquele período. Além disso, o cenário político do país vivia a fase inicial da ditadura militar, com o governo de Castelo Branco e depois o de Costa e Silva. Este último, marcado pelo decreto do AI-5 (Ato Institucional Número Cinco), fase em que se estabelece plenos poderes aos governantes para punir, arbitrariamente, os que se posicionam contra o regime:

As perspectivas de transformação, em consonância com a luta contra a ditadura militar, motivaram as criações artísticas e os debates por elas suscitados. A urgência em forjar condições para o processo de mudança radical foi acompanhada por uma cena que, ao refletir sobre o Brasil daquele momento, foi identificada como revolucionária por seus realizadores e assim reconhecida por seus estudiosos (GUINSBURG; PATRIOTA, 2012, p. 162).

29 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Avenir

Em meio a esses acontecimentos, no ano de 1968, Antonio Carlos de Sena inscreve a encenação do teatro de Qorpo-Santo que havia realizado em Porto Alegre, no V Festival de Teatros de Estudantes, na cidade do Rio de Janeiro30. A crítica dessa montagem foi realizada por Yan Michalski31,que mantinha, no Jornal do Brasil, desde 1963, uma coluna especializada em artes cênicas. O texto de Michalski, sem dúvida, auxiliou a divulgação da dramaturgia qorpo-santense no restante do país. O artigo intitulado “O Sensacional Qorpo-Santo”32 ilustra a recepção e a leitura feita da dramaturgia qorpo-santense pela classe teatral da época, a saber, marcada pela ideia de inovação e tentativa de aproximação com as referências fornecidas pelo teatro de vanguarda:

A julgar pela amostra apresentada a descoberta de Qorpo-Santo é um acontecimento de notável importância, que não só torna obsoleto todos os livros de história da dramaturgia brasileira que não mencionaram sua obra, como também transcende as fronteiras do Brasil e merece ser estudado dentro de um contexto internacional: o escritor gaúcho é muito provavelmente o precursor mundial do teatro do absurdo, uma vez que algumas décadas antes de Alfred Jarry, ele colocava em prática ideias de

antiteatro baseado no mais violento nonsense algumas das quais dignas de

fazer inveja a Ionesco e a seus seguidores (MICHALSKI, 1968, p. 2, grifos do autor).

O jornalista também fará uma breve apresentação biográfica de Qorpo- Santo, com ênfase na descrição da doença mental e da escrita ágil, além de ressaltar o viés cômico da dramaturgia qorpo-santense. Já a montagem de Sena parece não ter agradado o crítico, que a classificou como “precária”, cuja única finalidade era “demonstrar o valor do texto”.

A partir desse momento, Qorpo-Santo passa a ser lido como um escritor genial, com ares de vanguarda e enredos revolucionários. Criador, dentro dos limites do horizonte cultural do século XIX brasileiro, de um teatro surpreendentemente inovador. A crítica de Michalski atesta essa perspectiva ao associar Qorpo-Santo a Jarry,

30 Apesar de a primeira encenação de Qorpo-Santo no Rio de Janeiro, que é de conhecimento geral, ter

sido dirigida por Antonio Carlos de Sena, no ano de 1967 há uma nota no Jornal do Brasil afirmando que o “Teatro Carioca de Arte”, formado por Beth Faria, Cláudio Marzo e Antônio Pedro, tinha interesse em montar “textos do Qorpo-Santo, autor gaúcho inédito do século passado”. Contudo, não há indícios de que essa montagem tenha sido realizada. (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, fascículo 83, 13 de jul. 1967, Caderno B, p. 03).

31 Yan Michalski (Częstochowa-Polônia, 1932 — Rio de Janeiro-RJ, 1990) foi um crítico teatral,

professor, ensaísta e tradutor. Assinou a coluna sobre teatro no Jornal do Brasil, entre 1963 e 1982. Foi professor no Conservatório Nacional de Teatro (atual Escola de Teatro da Unirio) e fundou, em 1982, a Casa de Artes de Laranjeiras (CAL). Escreveu livros sobre teatro brasileiro, como Teatro e Estado: as

Companhias Oficiais de Teatro no Brasil (1992) e Ziembinski e o Teatro Brasileiro (1990).

32 MICHALSKI, Yan. “O Sensacional Qorpo-Santo”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, fascículo 263, 08

aproximando-os sob a justificativa da técnica do “antiteatro”33,, além de destacar o escritor gaúcho como o precursor do teatro do Absurdo34, configurando uma linha de pensamento que o compara a Ionesco35. Tais afirmações aumentavam o interesse sobre Qorpo-Santo pela classe artística e pela crítica.

A encenação das comédias de Qorpo-Santo em um dos lugares de maior visibilidade artística do país, o Rio de Janeiro, junto com o entusiasmo36que provocou em Michalski, marcaram o início da validação da dramaturgia qorpo-santense37. Contudo, José Joaquim de Campos Leão não estava vivo para ver seu teatro sendo encenado no Rio de Janeiro e seu nome estampado nos principais jornais. Ironicamente, o reconhecimento que tanto almejou em vida ocorria cerca de cem anos após a feitura dos textos.

O encenador polonês Ziembinski animou-se com o convite feito pelo grupo “Teatro de Ação”, de São Paulo, para realizar uma montagem das três peças já encenadas38; já o grupo de teatro “Oficina” se interessou em produzir uma peça do dramaturgo após o sucesso da encenação O Rei da Vela, de Oswald de Andrade39. O jornalista Prudente de Moraes Neto aumentou o coro dos entusiastas de Qorpo-Santo, escrevendo artigos na Folha de São Paulo, entre 1968 e 1969, nos quais exalta toda sua

33 Alfred Jarry (1873-1907), com sua peça Ubu Rei (1896), inaugura uma nova proposta de concepção

cênica do teatro moderno, abrindo mão da precisão mimética em favor do signo teatral, ou seja, o palco deverá trazer a teatralidade não de uma maneira realista, e sim buscando a teoria sugestionista da corrente simbolista: “a palavra escrita, embora não figurativa, tem o mesmo poder de evocação que qualquer tela pintada”. ROUBINE, Jean- Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução de Yan Michalski. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 37.

34 Segundo o estudioso Martin Esslin, que cunhou o termo teatro do Absurdo, tal definição é aplicada “a

um grupo de dramaturgos europeus dos anos 50” que partilhavam o mesmo olhar sobre a condição humana, sendo que para eles a existência do homem está em desarmonia com tudo que o cerca, não havendo sentido nas relações. Essa inadequação “produz um estado de angústia” que será o tema central dos escritores do Absurdo. (Cf. ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968). Tais ideias moldaram a forma desse estilo teatral, criando um “antiteatro”, já que se recusa, conscientemente, a fixar o texto em uma ação tradicional (trama, caracterização psicológica das personagens, progressão da ação visando a atingir um clímax, identificação dos espectadores com o que se passa em cena) e extrai da ação o conflito, no sentido de choque de vontades. (Cf. FRAGA, Eudinyr. Qorpo-Santo: surrealismo ou absurdo? São Paulo: Editora Perspectiva, 1988).

35 O romeno Eugène Ionesco (1912-1994) foi um dos maiores autores do Teatro do Absurdo ao lado do

irlandês Samuel Beckett (1906-1989).

36 Alguns anos mais tarde, Michalski dirá que foi precipitado ao dizer que “tornam parcialmente obsoletos

todos os livros de história da dramaturgia brasileira”, mas ressalta a dificuldade que os diretores ainda encontram ao montar as peças de Qorpo-Santo devido à composição fragmentária de alguns textos. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

37 Logo após a crítica de Yan Michalski, o jornal Folha de São Paulo, do dia 10/02/1968, informa que um

novo grupo teatral de São Paulo, chamado “Teatro Ação” montará, em março, peças de Qorpo-Santo e terá como diretor Antônio Carlos de Sena.

38 O Estado de São Paulo. São Paulo, p. 10, 16 abr. 1968.

admiração pelo recém-descoberto dramaturgo, afirmando que “a loucura desse louco tem matizes e reflexos de gênio”40.

Apesar de a dramaturgia de Qorpo-Santo ter-se tornado popular na cena teatral brasileira, as comédias não haviam sido impressas. Por isso, a circulação dos textos ocorria no meio teatral mais restrito e especializado, não entre o público geral. Mesmo sem uma ampla circulação das comédias, houve no ano de 1968 inúmeras encenações de suas peças. A montagem mais expressiva foi realizada pelo diretor Luis Carlos Maciel, que encenou a comédia As Relações Naturais com um elenco de atores profissionais. Criou-se uma expectativa por parte dos críticos por ser aquela a primeira vez que um grupo profissional encenava as peças de Qorpo-Santo.

As primeiras notícias dessa encenação datam de 20 de abril de 1968. A partir do dia 07 de maio, o anúncio constaria diariamente nas páginas do Jornal do

Brasil, figurando ao lado de outras peças importantes do período, como Roda Viva, de

Francisco Buarque de Hollanda e Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos. A estreia ocorre em 14 de maio no Teatro Nacional de Comédia. No dia seguinte, a crítica de Michalski é publicada no Jornal do Brasil:

... O espetáculo que estreou ontem no TNC dirigido por Luis Carlos Maciel, diminui e amesquinha singularmente a obra de Qorpo-Santo. Da genial loucura criadora, sobrou apenas a histeria e debilidade mental. Da feroz agressão sobre a mentalidade burguesa, sobrou apenas grossura. E claro que numa peça desse tipo não se pode esperar uma fidelidade convencional ao texto – mas a infidelidade formal só é aceita num clima de respeito. ... Fazendo de Qorpo-Santo um menino malcriado que faz pequenas travessuras, Luis Carlos Maciel cortou lhe as asas e impediu seu gênio de levantar vôo. O seu espetáculo não é nem inventivo, nem original, nem corajoso, nem chocante – é apenas incrivelmente infantil e, sobretudo, sumamente chato.41 A encenação não agradou o crítico, que esperava algo à altura do “genial escritor”. Porém, mesmo Michalski tendo classificado o espetáculo como “infantil”, a censura não viu com os mesmos olhos a montagem de Luis Carlos Maciel. No dia 22 de maio, era noticiada a censura da peça, sob a alegação de que o “texto e a encenação foram totalmente modificados”. Segundo a chefe do departamento de censura, D. Marina Melo Ferreira, “a realização do espetáculo não correspondeu em absoluto com o texto apresentado para ser apreciado pela Censura, que foi totalmente modificado”. O diretor Maciel questionou tal decisão, alegando que “nenhum censor foi assistir ao

40 MORAES, Prudente. O Estado de São Paulo. São Paulo, 25 dez. 1968; 03 jan. 1969; 05 jan. 1969. 48 Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20 mai. 1968. Caderno B, p. 03.

ensaio geral, onde poderiam constatar que peça deveria ou não ser censurada”42.Alguns dias depois, em 01 de junho, o produtor do espetáculo, Ginaldo Sousa, assina um termo em que se compromete a não modificar o texto e a comédia é liberada junto a outra peça censurada, Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues.