• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – O CAMINHO PARA O FUTURO

III.V “Qué es esto? Una cruzada o algo así?”

Estados Unidos, enquanto não era necessariamente órgão dirigente nas decisões presidenciais ou congressionais, era o domínio institucional onde se manifestava com maior densidade a opinião dos governantes daquele país. Uma fábrica de “verdades”. Afinal, os responsáveis por disseminar

196 Esta percepção ou imaginário sobre a América Latina foi um tema profundamente discutido em JUNQUEIRA, Mary A. Ao sul do Rio Grande: imaginando a América Latina em Seleções: Oeste, wilderness e fronteira (1942 1970). Bragança Paulista/SP: EDUSF, 2000.

119 a imagem dos Estados Unidos deveriam ser aqueles que têm maior intimidade com todos os aspectos relevantes da nação que representavam. O alcance dos itens ou bens culturais difundidos pela USIA era mais amplo e profundo do que o escopo de ação de embaixadores e diplomatas.

O uso dos quadrinhos para alcançar as populações “campesinas” da América Latina era um recurso eficaz, como reconheceu Kermit Brown, o Diretor para América Latina da United States Information Agency, em Washington. As revistas em quadrinhos não só teriam ajudado a atenuar a simpatia dos latino-americanos por Castro como também divulgavam as iniciativas dos governos que davam assistência ao povo destes países. Essas ações eram retratadas como temas dos panfletos e revistas. Um destes temas, presente em outras revistas da USIA, era a Aliança para o Progresso.

Uma revista em quadrinhos com caráter didático destinada ao assunto tinha o título “O que é a Aliança para o Progresso?”197. Provavelmente difundida na América Latina em 1967 (menção contida no próprio conteúdo da revista), ela ensinava quais eram os princípios norteadores, os idealizadores e as formas de atuação da ação concebida na Conferência de Punta del Leste em 1961.

Com um texto simples, aforístico, a revista trazia um personagem de tipo pícaro, que estava confuso sobre a Aliança e tinha suas dúvidas sanadas por outro personagem, um “Próspero”198

197“Que es la Alianza Para El Progresso?” Documento de 1967. Apud NARA, RG 306, A1-E7, Latin American Publication Files, Box 2.

198 Alusão ao personagem Próspero da peça A Tempestade de William Shakespeare. Próspero, na verdade o Duque De Milão, era o nobre banido para uma ilha remota junto de Miranda, sua filha. Usando artifícios sobrenaturais – como a tempestade que leva ao naufrágio do navio dos usurpadores de Nápoles - Próspero promove uma restauração da ordem, maculada pela traição de seu irmão Antônio, aliado do rei de Nápoles. Essa restauração acontece com a união de Miranda e Ferdinando, filho do rei. Contando com o auxílio do espírito Ariel e do escravo deformado Caliban, Próspero é o arquétipo do sábio, do mago, personagem que é governado tanto por pulsões do ego quanto aquelas em nome da ordem social. Sobre as interpretações de Próspero e A Tempestade ver em MORSE, Richard. O Espelho de Próspero. Companhia das Letras. 2000; RODÓ, José Henrique. Ariel. Campinas:

120 simplificado. Os desenhos lembravam os traços das animações de Blake Edwards e Fritz Freleng199, e continham passagens como:

200

Além de classificar a Aliança para o Progresso como “uma cruzada” composta por pessoas de todo o mundo, o gibi também nomeia a Aliança como “um espírito”, uma disposição, um ideal sem bandeiras pois era compartilhado por pessoas de várias nacionalidades, mexicanos, bolivianos, paraguaios, americanos, chilenos, etc. Curiosamente não há menções a brasileiros entre os citados. O “Próspero” do gibi, com dedo em riste, ensina ao “Clouseu” que este “espírito” já

Editora da UNICAMP, 1991. Sobre arquétipos ver em JUNG, C.J. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. São Paulo: Vozes, s/d. pp. 119-137

199 Edwards e Freleng são os criadores das animações da Pantera Cor de Rosa, personagem criada como segmento de abertura do filme homônimo de 1964 protagonizado por Peter Sellers. Entre 1969 e 1976, a Pantera e seu antagonista, um homem de bigode e estatura baixa – uma caricatura do inspetor Clouseau, personagem de Sellers - foram retratados em uma série de psicodélicas animações produzidas pela United Artists e apresentados pela National Broadcast Company, a NBC. No Brasil, o desenho da Pantera Cor de Rosa foi apresentado pela Rede Globo e pelo SBT durante a década de 1980. Informações sobre a animação estão disponíveis em

http://www.imdb.com/title/tt0063939/ Acesso em 29/05/2015.

200No quadro esquerdo: “[...] ‘Ê! O que é isso? Uma cruzada ou algo assim?’ ‘EXATAMENTE! E você faz parte dela!’ ‘Junto com os trabalhadores, empresários, estudantes, professores, políticos,’”; No quadro direito: “[...] ‘Mas PARE! Espere um minuto! De onde vem toda essa gente?’ ‘DE TODAS AS PARTES!’” Idem.

121 estava na mente de homens de visão até ser chamado à realidade por um homem, “[...] que era seu amigo... e meu”201, John F. Kennedy. O “Clouseu” da história reage. Trata-se simplesmente de ajuda financeira norte-americana? “De maneira nenhuma” – diz “Próspero”, e esclarece:

202

Segundo ensinava a revista em quadrinhos, o mais importante era o trabalho, não dinheiro, tampouco sua origem, se era de um país ou outro. O esforço do trabalho de todos juntos promoveria uma vida melhor através da construção de represas para produção de eletricidade, de mercados, acordos multilaterais sobre comércio, educação e cultura. Era um empenho que, a revista mostrava em cifras, já tinha resultado em “[...] 28.000 salas de aula construídas, 300.000 fazendas

201“[...] que era amigo tuyo... e mío”. Idem.

202“Os Estados Unidos e diversas fontes internacionais contribuíram para os projetos mútuos da Aliança, apenas 20% (ou menos) do dinheiro. A maior parte do dinheiro – aproximadamente 80% será proporcionado pelos próprios países latino-americanos. Ademais, o dinheiro não é o mais IMPORTANTE’” Idem.

122

terminadas, 1.200 hospitais e postos de saúde estabelecidos, 682.000 empréstimos para produção agrícola, 14.000 quilômetros de estradas construídas e reformadas, 14 milhões de libras de livros distribuídos.”203

A peroração do “Próspero” no panfleto da USIA sobre a Aliança para o Progresso seguia também o modelo narrativo aristotélico e levava a uma conclusão catártica. O personagem aqui chamado de “Próspero”, intercalando suas frases com as de “Clouseu”, assinalando ideias que agora eram mútuas, elabora: seja o paraguaio, o chileno, mexicano, guatemalteco, ou uma pessoa, um grupo, uma nação, ou um grupo de nações, “[...] quando faz algo para si mesmo ou para ajudar que outro se ajude, está fazendo o mesmo por todos nós. ENTÃO... A ALIANÇA PARA O PROGRESSO É VOCÊ MESMO” 204 A Aliança, segundo o panfleto, era uma exortação universal, e dela faziam parte todos os habitantes da América unidos por uma mesma “fé”.

Durante o Concílio de Clermont, em 1095, o papa Urbano II conclamava os fiéis ali reunidos:

“[...] Os turcos e os árabes atacaram e avançaram pelo território da România até a parte do Mediterrâneo chamada o Braço de São Jorge e penetram mais a cada dia nos países dos cristãos; eles o venceram sete vezes em batalha, matando e fazendo grande número de cativos, destruindo as igrejas e devastando o reino. Se vós deixardes isto sem resistência, estenderão os seus exércitos ainda mais sobre os fiéis servidores de Deus. Por isso eu vos apregôo e exorto, tanto aos pobres como aos ricos – e não eu, mas o Senhor vos apregoa e exorta – que como arautos de Cristo vos apresseis a expulsar esta vil ralé das regiões habitadas por nossos irmãos, levando uma ajuda oportuna aos adoradores de Cristo.”205

203“28.000 aulas construídas, 300.000 viviendas terminadas, 1.200 hospitales y centros de salubridad estabelecidos, 682.000 préstimos para la produción agrícola, 14.000 kilómetros de carretera construídos e mejorados, 14 millones de libras de libros de texto distribuídos.” Idem.

204 I“[...] cuando haces algo para ti mismo o para ayudar a outro a que se ayude, estás haciendo para todos nosostros. ENCONTECES... LA ALIANZA PARA EL PROGRESO ERES TU MISMO.” Idem.

205 Apud PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – Textos e testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 83

123 Aquela era a exortação papal da 1ª Cruzada, que culminaria com a vitória cristã em Jerusalém em 1099 e a expulsão dos exércitos islâmicos pelas forças de Godefroy de Bouillon, Duque Protetor do Santo Sepulcro. Era uma retórica alarmista, que acentuava a ameaça representada na violência dos infiéis, que avançavam sobre terras cristãs. Cabia aos Cristãos, tocados pelo chamado - não do papa, mas pelo Senhor – tomarem armas e lutar contra aquela terrível ameaça.

Guardada a tentação que a analogia histórica provocaria no historiador, o silogismo entre as Cruzadas e a Aliança para o Progresso não foi evitada pelo panfleto da USIA. Ao contrário, foi evocada e abraçada como modelo referencial. Os usos e as manipulações dos mitos, do passado e da História como um cabedal de experiências (Historia magistrae vitae)206 teve repercussões catastróficas no século XX. Isso aconteceu especialmente entre aqueles governos ou partidos políticos que, por meio da História, articulavam passados imemoriais a projetos de futuro. Haja vista a ascensão do Nacional Socialismo na Alemanha, que evocava a restauração da glória de um Reich medieval num porvir livre de “impurezas” sociais e que derivou na Shoah207.

No contexto da Aliança para o Progresso, no lugar dos “turcos” e “árabes”, por analogia, havia a pobreza, a falta de infra-estrutura, a falta de hospitais, de educação e de cultura. Estas lacunas – indicadoras de pobreza – eram as frestas por onde poderiam ser disseminadas as ideias

206 A propósito do uso –por vezes de má fé – da História, ensina Koselleck que “[...] Cícero, referindo-se a modelos helenísticos, cunhou o emprego da expressão história magistral vitae. A expressão pertence ao contexto da oratória; a diferença é que, nesse caso, o orador é capaz de emprestar um sentido de imortalidade à história como instrução para a vida, de modo a tornar perene o seu valioso conteúdo de experiência.” A discussão indicada na citação, sumamente relevante para esta tese, está presente em KOSSELECK, Reinhardt. O Futuro Passado – Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. p. 43

207 Sobre o uso do passado por partidos políticos no século XX ver em CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. São Paulo: Codex, 2003. Pp. 225-341. Sobre a Shoah, o Holocausto promovido pelos Nazistas, ver em GUTERMAN, Marcos. A moral nazista – Uma análise do processo que transformou crime em virtude na Alemanha de Hitler. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo: USP, 2013.

124 comunistas. O panfleto transformava uma causa político/militar dos Estados Unidos (ou no máximo, dos países membros da OTAN) numa razão comum a todos os habitantes da América. A “nova Cruzada” da Aliança, tornada realidade pela liderança dos Estados Unidos, tinha um objetivo claro. No lugar dos “infiéis” do século XI, havia o comunismo.

Além do significado do conteúdo do panfleto, é importante também assinalar a forma como ele foi incorporado às operações da United States Information Agency. Um memorando de operações emitido em 27 de abril de 1967 pelo posto RSC do México era endereçado a todos os postos da América Latina. Seu conteúdo dizia o seguinte:

“[...] Em anexo está uma cópia [semi-impressa] de um panfleto em forma de revista em quadrinhos cujo propósito é definir o significado da Aliança para o Progresso por um meio popular. Originalmente produzido pelo USIS Santiago, ele foi adaptado num formato mais compacto e com uma mensagem mais atemporal. [...] Pedidos do produto terminam em 9 de Junho. Os postos devem avisar o RSC do México antes da data de término indicando as quantidades mínimas e máximas desejadas.” 208

O fragmento revela uma série de elementos operacionais importantes sobre a USIA. Em primeiro lugar é preciso dizer que RSC significa Regional Service Centers e há menções em diversos documentos a diferentes RSCs em diferentes cidades da América Latina. É possível que o RSC México fosse o responsável por impressões de panfletos com características particulares, como os quadrinhos. Em segundo lugar, mostra que o panfleto foi produzido originalmente no posto USIS no Chile. Como mencionado, USIS é sigla para United States Information Services, os postos da USIA espalhados por todos os países com quem os Estados Unidos tinham relações

208“[...] Enclosed is a brownprint of a cartoon-book style pamphlet whose purpose is do define the meaning of the Alliance for Progress in a popular medium. Originally produced by USIS Santiago, it has been adapted to a more compact format and a more timeless message. […] Orders for the product close on June 9. Posts should advise RSC Mexico before the closing date as to minimum and maximum quantities desired.” “Unclassified Operation Memorandum to All IAL Posts from RSC Mexico”. Documento de 27 de abril de 1967. Apud NARA, RG 306, A1-E7, Latin American Publication Files, Box 2.

125 diplomáticas. Eram as “subsidiárias” da USIA, mesmo que já existissem antes da criação formal da USIA em 1953. Os USIS eram parte das missões diplomáticas americanas, assim como outros serviços e funcionários, como adidos militares, culturais, assessores de imprensa, e sem dúvida, dos serviços de inteligência da CIA e da NSA. Em terceiro lugar, o memorando evidencia uma interdependência dos postos da USIS espalhados pela América Latina. Eles agiam juntos, contando com o auxílio de outros postos e compartilhando materiais que pudessem ser usados de forma homogênea. Os interessados em difundir o panfleto Que es la Alianza para El Progresso? deviam enviar seus pedidos ao RSC Mexico até 9 de junho de 1967. Aquele posto ainda ressalta que o USIS Santiago teve o cuidado de colocar o panfleto num formato mais “compacto” e “atemporal” para melhor atingir as massas.

Acima de tudo, chama a atenção a naturalidade com que o memorando se refere ao material: o panfleto atendia ao propósito de definir o que era a Aliança para o Progresso. Os fatos não estavam mais nas mãos de presidentes e autoridades de governo. A profundidade das ideologias, estavam simplificadas ao seu mínimo denominador comum. A verdade estava nos panfletos. A memória pertencia à propaganda.

III.VI – VOA, exibições, bibliotecas