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CAPÍTULO III – O CAMINHO PARA O FUTURO

III.II “Ria, camarada, ria”

comunicação, como os trabalhos de Marshal McLuhan140, Roland Barthes141 ou Edgar Morin142.

139 A despeito de seus possíveis excessos há uma obra que detalha com informações instigantes como se procedeu o treinamento dos contra-revolucionários pela CIA e a tentativa de invasão na Baía dos Porcos, a obra de WISE, David & ROSS, Thomas. O governo invisível. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1965. Pp. 6-94

140 McLUHAN (Op.Cit.)

141 Em especial, BARTHES, Roland. A mensagem Fotográfica. IN LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 325-340.

95 Além deles, reconhece-se maior base referencial nas elaborações da Escola de Frankfurt143, especialmente nos trabalhos de Walter Benjamin144, Herbert Marcuse145, Theodor Adorno e Max Horkheimer146. A partir deles, de uma forma quase derivativa, pois posterior aos trabalhos dos autores da Escola de Frankfurt, evocam-se aqui as interpretações de Umberto Eco.

Em obra clássica147, o autor estabeleceu uma taxionomia entre os aspectos positivos e negativos da cultura de massa, ou como ele se refere, “mass media”. A digressão de Eco, não definitiva, mas esclarecedora destas referências, elucidam a forma como são percebidos os recursos utilizados pela USIA. Esta digressão permite apreender o uso e impacto daqueles, “bens culturais” concebidos e difundidos pela Agência durante a Guerra Fria, como os panfletos, cartazes, revistas, libretos e programas de rádio.

Parte-se da concepção de que existe uma complementaridade entre aqueles dois pólos, negativos e positivos. Estes correspondem aos “apocalípticos” e “integrados” que intitulam a obra de Umberto Eco. Os apocalípticos seriam aqueles que denunciam desesperadamente a perda ou degeneração de uma alta cultura, indicadora de status superior e senhorial dos seus criadores, ao serem apropriadas pela indústria das comunicações e, por conseguinte, pelas massas. Para os apocalípticos, a arte e a “alta cultura”, bens de aquilatado valor, deveriam manter-se restritos a poucos eleitos, curadores dotados de uma sensibilidade heráldica ou elevado status social. Os integrados, por outro lado, eram aqueles que celebrariam a propagação e assimilação dos ícones

143 Ver em WIGGERSHUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

144 Em especial, A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica. IN BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996.pp. 165-196

145 MARCUSE (Op.Cit.)

146 Em especial, A Indústria Cultural – O Iluminismo como Mistificação da Massa. IN ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

96 da alta cultura entre os que historicamente jamais teriam acesso a ela. Diz Eco, os integrados são os herdeiros de uma tradição de vivência da cultura sendo Suger, abade da igreja de Saint-Denis do século XII, o patrono dessa atitude.148

Uma vez que os bens produzidos pela USIA não foram feitos pelos mesmos autores, nem seguiam uma linha procedimental definitiva ao longo de mais de 40 anos que a agência existiu, seria incorreto atribuir características estritas àqueles materiais. O único critério comum é de pertencerem à “cepa” dos meios de comunicação. Portanto opta-se por reconhecer nos produtos da USIA uma característica apocalíptica e também integrada, simultaneamente. Sem dúvida que as comunicações de massas eram um instrumento de valor reconhecido pelo governo americano. Afinal elas já eram usadas antes mesmo da criação oficial da USIA, difundidas pelos postos do United States Information Service desde a década de 1910. Naturalmente que as agências de informação americanas eram “integradas” na acepção definida por Eco. Mas ao mesmo tempo, é difícil rejeitar a ideia de que aqueles operadores de cultura na USIA/USIS não vissem a si próprios como membros de uma “elite” e para todos os efeitos, “apocalípticos”. Seguindo a evolução das comunicações de massa, estavam “dilapidando” itens culturais de valor inestimável e os formatando para o alcance das massas. O diferencial aqui é que os itens culturais submetidos a esse processo eram caracteristicamente americanos, de forma a “promover um melhor entendimento sobre os Estados Unidos diante dos povos do mundo e para fortalecer relações

148Suger, o pai da “Teologia da Luz”, teria tido duas ambições na vida, engrandecer sua abadia e fortalecer a Coroa francesa. Eleito abade de Saint Denis em 1123, fez uma reforma naquela catedral que é considerada um dos primeiros exemplares do estilo gótico na arte e arquitetura. A principal caraterística seria o dogma da “vivência” da experiência cristã ao adentrar a igreja. Adornada com vitrais que modulavam os tons, cores e a posição da luz no interior da igreja, essa arquitetura era composta de forma a estimular uma experiência sensorial dos temas sagrados do cristianismo por parte dos fiéis. Quando Luis VII partiu na Segunda Cruzada em 1147, nomeou Suger como regente, o que resultou numa excelente administração financeira e tornou Luis VII o mais poderoso governante da França. Ver o verbete sobre o abade em Suger (verbete) IN LOYN, H.R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 339.

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cooperativas internacionais”, segundo rezava os termos do Smith-Mundt Act, aprovado pelo Congresso em 1948. Aos apocalípticos mais resistentes era necessário assumir uma atitude integrada tendo em vista o bem maior – a contenção do comunismo - do que se permitir o pior dos males – a revolução comunista em vários países ou pior, o horizonte inescapável da aniquilação nuclear.

Nesse sentido talvez pensasse um funcionário da USIA, fluente nos recursos da comunicação de massas149, que teria evitado a primeira de todas as guerras aquele que contou uma piada ao invés de lutar. Tentando atingir as massas, em tempos de Guerra Fria, ele poderia aventar algo como:

“[…] ‘Você sabia’, sussurou um passageiro num ônibus cubano lotado, ‘que o jornal do Partido

Comunista está promovendo um concurso para a melhor piada política?’ ‘Incrível,’ respondeu o seu companheiro ‘e qual é o primeiro prêmio?’ ‘Vinte anos na cadeia.’”150

Ou outra, como:

“[…] Um membro de uma comissão da Alemanha Oriental na África foi questionado pelos seus anfitriões se ele tinha gostado da estadia e respondeu:

‘Certamente, gostei muito. Por que eu não deveria estar feliz aqui? Eu posso viajar livremente; eu posso dizer o tenho vontade; posso comprar o que quiser. Que mais eu posso querer?’

‘Fico feliz de ouvir’, respondeu o anfitrião. ‘Diga-me, de que modo a África é diferente da Alemanha Oriental?’

149Fluência esta indicada por exemplo no uso da “imitação”, aludida por Eco. Trata-se da acepção clássica, aristotélica, princípio fundador da Poética. A imitação, como prática artística, ensina o filósofo, é aquela que provoca a um processo catártico por meio de uma estrutura narrativa fixa (início, tensão, clímax, desenlace e catarse), seja no formato da comédia, da epopeia ou da tragédia. Estas, em suas variadas formas, eram imitações alegóricas da vida real. A arte seria como uma “mentira” (ou imitação) que fala uma “verdade” esclarecedora sobre o indivíduo ou sobre a realidade. Ver em ARISTÓTELES. Poética In Os Pensadores - Vol. IV. São Paulo: Abril Cultura, 1973. Pp. 443-445

150“[...] ‘Did you know’, whispered a rider on a crowded Cuban bus, ‘That the Communist Party newspaper is promoting a competition for the best political joke?’ ‘Incredible’, answered his companion ‘what’s the first

prize?’‘Twenty years in jail’.”Anexo com piadas ao memorando de James M. McDonald endereçado a Katherine D. Ray. Documento de 24 de outubro de 1967. Apud NARA, RG 306, A1-E7, Latin American Publication Files, Box 6.

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‘Eu acabei de explicar’, replicou o convidado.”151

Ou:

“[…] Num desfile da Guarda Vermelha em Pequim, o líder do Partido Comunista Chinês Mao Tsé Tung acenou para um grupo de soldados enquanto marchavam.

‘Meus jovens amigos, nós não nos conhecemos de algum lugar?’ perguntou Mao.

‘Mas é claro,’ responderam os jovens, ‘esta é a quarta vez que temos que desfilar na sua frente hoje.”152

Ou:

“[…] Um cubano, conversando com um oficial soviético em Havana, estava discutindo os avanços conquistados pelo regime do

Comunista Cubano quando subitamente todas as luzes se apagaram.

‘Esses cortes de energia são frequentes?’ perguntou o visitante. ‘Sim,’ respondeu o cubano. ‘Com vocês não?’

‘Não. Nossas demandas de eletricidade são sempre plenamente atendidas na União Soviética.’

‘Ah’, disse o cubano, ‘então vocês ficaram para trás. Nós estávamos assim dez anos atrás.’” 153

Ou então:

“[…] Os membros de uma fazenda coletiva cubana reuniram-se certo dia para receber os prêmios anuais. O porta-voz anunciou: ‘Juanita Morales, pelos cuidados exemplares dedicados ao cuidar das vacas, recebe como prêmio um galo e uma galinha’. Aplauso geral.

151“[…] A member of an East German trade mission to Africa, asked by his hosts if he was enjoying his stay,

replied:‘Certainly, very much. Why shouldn’t I be happy here? I can travel about freely; I can say what I like; I can buy what I need. What more can I ask for?’‘I’m delighted to hear it,’, his host replied. ‘Tell me, in what way is Africa different from East Germany?’‘I’ve just told you,’ answered the guest.” Idem.

152 “[...] At a Red Guard parade in Peking, Chinese Communist party chief Mao Tse-Tung beckoned to a group of the youth zealots as they marched past. ‘My young friends, haven’t we met before somewhere?’ asked Mao. ‘Of course,’ the youths answered, ‘this is the fourth time we have had to pass you today.’” Idem.

153“[…] A Cuban, entertaining a Soviet official in Havana, was discussing achievements of the eight-year-old Cuban Communist regime when all the lights suddenly went out. ‘Do you often have these power cuts?’ asked the visitor. ‘Yes’, answered the Cuban. ‘Don’t you?’ ‘No. There is always plenty of current to meet our needs in the Soviet Union.’ ‘Oh,’ said the Cuban, ‘then you are well behind the times. We were in that position ten years ago.’” Idem.

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‘Pedro Gonzales, pelos cuidados com um cavalo premiado, recebe um novo terno.’ Mais aplausos.

‘Alberto Rodriquez [sic], por colher 190 por cento da sua cota, por trabalhar em domingos e feriados, por demonstrar alta consciência política, por registrar um novo recorde a ser seguido todos os camponeses, recebe o grande prêmio, a coletânea dos discursos do Premiê Fidel Castro!’

Silêncio total, então uma voz ecoa dos fundos do salão: ‘Ele mereceu!’” 154

Independente da qualidade das piadas, ou ainda menos sobre seus significados (os quais cuja elucidação subtrairia a propriedade anedótica da narrativa humorística atribuída nos exemplos supracitados), o que as tornam relevantes aqui é elas foram selecionadas para compor um panfleto a ser produzido pela USIA e disseminado na América Latina.

Em correspondência do Diretor-Assistente para América Latina (IAL), James McDonald, endereçada à Diretora de Serviço de Imprensa Internacional (IPS), Katherine D. Ray, datada de 24 de outubro de 1967, era recomendado que o panfleto levasse o título “Laugh, Comrade, Laugh!” ou “Riam, Camaradas, Riam”. No dia seguinte, uma correspondência trocada entre dois membros daquele Serviço de Imprensa, Eugene Harter e Lafe F. Allen, indicava que as piadas deviam ser acompanhadas de ilustrações correspondentes às situações descritas. Harter, provavelmente o superior de Allen, ainda sugeria que o panfleto devia abrir com a anedota sobre os dois cubanos num ônibus lotado.

154“[...] The members of a Cuban collectivized farm met one day for the annual award of prizes. The chairman read: ‘Juanita Morales, for her exemplary care of cows entrusted to her charge, receives as a prize a hen and a rooster.’ General applause. ‘Pedro Gonzales, for rearing a prize-winning horse, gets a new suit.’ Again applause. ‘Alberto Rodriquez, for harvesting 190 percent of his quota, for working Sundays and holidays, for displaying high political consciousness, for setting new speed records for all the other peasants to imitate, receives the grand prize of the collected speeches of Premier Fidel Castro!’Dead silence, then a voice from the rear of the hall: ‘Serves him right!’” Idem.

100 Por conta das qualidades intrínsecas do humor, esperar-se-ia que aqueles sujeitos latino- americanos, tocados pelo panfleto “Rian, camaradas, rian” perfilassem ao lado dos americanos em relação ao comunismo. Chistes sobre Mao Tsé-Tung, o cotidiano da vida proletária em Cuba ou na Alemanha Oriental eram formas de fixar um referencial imaginário que evidenciassem os absurdos da vida comunista e estimular na mente dos leitores uma postura de oposição ou repulsa àquelas situações. Enquanto a peroração oficial de governantes ou diplomatas fosse não mais do que um ruído insípido entre os “populares”, sem qualquer efeito desejável, o humor, por outro lado, teria resultados maiores e melhores dada sua natureza intimista, simples e “desinteressada”. Atingir o gosto popular, o gosto da “massa”, não era um objetivo aleatório. Nos sentimentos, carências, interesses e aspirações desta massa é onde residiriam os pontos-chave que poderiam ser explorados pela propaganda comunista e depositadas as sementes da revolução, como aconteceu em Cuba.

Haveria de se dirigir à massa para não perdê-la. Era preciso estabelecer um território comum de compartilhamento de ideias e valores, mas que fossem abordados de maneira fluida, não impositiva e, desse modo, incorporados como se fossem naturalmente próprios. O uso do panfleto, incluindo o formato humorístico, seria concebido para adequar-se aos gostos dessa “massa”, configurando sua correspondente “cultura” e, portanto, projetando uma identidade. Uma identidade projetada no porvir.

III.III – “Thú khãu nhú bíhn, phûông ý nhû thàn”155