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QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DE SE PENSAR A POÉTICA DO TRADUZIR?

SEGUNDO CAPÍTULO

2 A POÉTICA DO TRADUZIR

2.5 QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DE SE PENSAR A POÉTICA DO TRADUZIR?

Para atingir o objetivo deste capítulo, cumpre, finalmente, questionar quais são as consequências da poética do traduzir. Esta seção se caracteriza por ser uma exposição de algumas consequências e funciona como uma ponte para o próximo capítulo, cujo objetivo é o de centralizar três temas que surgem a partir do debate da tradução e traçar um paralelo entre as visões que a poética do traduzir e a tradutologia assumem em relação a esses temas.

A primeira consequência, ou efeito, do pensamento poético é um efeito epistemológico. Ao questionar o ponto de vista do signo, a poética permite situar o pensamento sobre a linguagem sob um outro ponto de vista, aquele do contínuo. Ou seja, ela não aceita a representação da linguagem pelo signo, além de o denunciar como se passando pela própria natureza da linguagem. Para isso, a poética compreende a linguagem, então, não mais como algo que surge da ordem descontínua da língua, mas como uma atividade que representa a interação corpo-linguagem. Deixa-se para trás uma representação de forma que se opõe ao sentido para uma concepção de linguagem como uma

organização formal do ritmo. Essa mudança de ponto de vista situa a poética fora das teorias mais tradicionais em relação à linguagem e, consequentemente, em relação à tradução.

Por esse viés, a tradução não representa mais uma passagem de formas ou de sentidos entre duas línguas distintas, ela passa, agora, a ser a tradução da historicidade radical que cada obra, ou sistema de discurso, representa. É necessário, a partir desse novo ponto de vista, considerar a força da atividade da linguagem e partir para a busca da significação que cada sistema de discurso carrega em si e não mais buscar a essência do sentido que é observável apenas a partir da língua e não do discurso.

Como consequência direta desse efeito epistemológico, a poética gera, também, um efeito teórico. A partir da mudança de ponto de vista, uma nova teoria surge e ela não se caracteriza mais por tomar as partes de um todo separadamente. Ou seja, quando se passa de um pensamento descontínuo sobre a linguagem para um pensamento contínuo, a divisão entre as áreas que se debruçam sobre a linguagem e sobre o homem perde força, visto que o contínuo requer que se pense a partir de uma teoria de conjunto. A poética surge como uma teoria da linguagem renovada que permite que se estabeleçam relações de interação entre a ética, a política, a linguagem, a literatura, a antropologia, a sociologia. Deixa-se de opor essas áreas para que se possa observar a integralidade do conjunto que um sistema de discurso gera. Como aponta Meschonnic, é necessário “penser cette interaction langage-poème-éthique-politique comme une seule systématicité” (2007, p. 101).

Nesse âmbito, a própria divisão, no seio das ciências humanas, entre áreas acadêmicas distintas perde força, visto que não há como separar, na linguagem, aquilo que é ético daquilo que é político, aquilo que é linguístico daquilo que é literário, aquilo que é do sujeito daquilo que é do social. As divisões binárias do pensamento descontínuo que buscam, a cada vez, as unidades mínimas, aos moldes das ciências exatas, não têm espaço num pensamento que se preocupa com a historicidade do discurso que é criada pelo sujeito do poema. A poética é uma teoria de conjunto que tem como objetivo maior integrar as partes que o discurso representa, enquanto o descontínuo que a língua representa tende a separá-las.

Há, ainda, um terceiro efeito que chamo de efeito prático. Se há uma nova visão teórica sobre a linguagem e, consequentemente, sobre o traduzir, há, também, uma mudança na prática do traduzir. Para a poética do traduzir, o que se apresenta a ser traduzido não são mais os signos de

um texto, mas o seu ritmo. Ou seja, a organização do movimento da fala na escritura, que requer que se pense o sujeito do poema.

O discurso apresenta uma semântica serial que não se encerra nos termos da língua. Há o ritmo prosódico, o ritmo de início, o ritmo dos acentos, entre outros, que surgem a partir da observação da organização formal da oralidade na escritura, que supõe uma historicidade do próprio discurso e que é inscrita única e somente pelo sujeito do poema. Por esse viés, o tradutor modifica sua prática, que deixa de ser uma busca pelo sentido que se dá a partir da interpretação e avança sobre a historicidade do discurso que o texto representa. Como apresentado anteriormente, a teoria surge de uma prática, assim como a prática está impregnada da teoria que a acompanha.

A quarta consequência do pensamento da poética do traduzir incide sobre o aspecto ético- político-social da linguagem. Ou seja, ao descristianizar, desplatonizar e deselenizar a tradução dos textos bíblicos e estender essas inversões ao traduzir como um todo, a poética surge como um instrumento não-ideológico para pensar o poder. Nesse âmbito, voltamos novamente ao império do signo, que toma as mais variadas formas na tentativa de mascarar seu papel de representação e ser tomado como a própria natureza da linguagem. Dessa maneira, quando a poética denuncia o signo, ela automaticamente desloca a noção de verdade, que é aquilo que continua a alimentar as ideias preestabelecidas e dogmáticas acerca da linguagem e que produz os mantenedores da ordem no pensamento. É um efeito ético-político-social pois diz respeito à forma como os sujeitos se posicionam frente à concepção de linguagem que é tradicionalmente difundida.

As severas críticas à hermenêutica e à fenomenologia permitem esse deslocamento, visto que, a partir do contínuo, a essencialização do sentido e a ideia de origem única do sentido perdem força teórica. Se se toma o poder como aquilo que advém do sentido de uma verdade única, normalmente buscada na origem (como na etimologia, por exemplo), a poética barra esse poder ao descentralizar o signo e substituir essa noção pela de ritmo, que supõe e indica uma outra ordem de valores, onde a verdade perde seu grau maior de funcionalidade.

Uma outra consequência é a mudança de perspectiva em relação à literatura. Sob o ponto de vista poético, a literatura deixa de ser uma divisão entre gêneros que surge a partir do ritmo platônico, aquele da metrificação entre um tempo forte e outro fraco. A literatura não se apresenta mais como uma área que se define pelo conjunto dos diferentes gêneros literários e passa a ser considerada como a atividade do discurso por excelência. Aqui, é o poema como uma forma de

vida modificada por uma forma de linguagem e uma forma de linguagem modificada por uma forma de vida que assume o papel maior. Não é possível mais diferenciar a literatura do uso comum da língua, pois o que está em jogo é a produção-criação de um discurso a partir de um sujeito que se transforma ao transformar a própria linguagem. Os exemplos citados anteriormente sobre Baudelaire e as relações que se estabelecem entre os elementos dentro de seus textos são a prova de que um poema é aquilo que carrega consigo, necessariamente, uma modificação, tanto da linguagem, quanto da vida, seja de quem escreve, seja de quem lê.

2.5.1 Por que a poética não entra no debate?

Sem dúvida, existem outras consequências sobre a poética do traduzir. No entanto, essa exposição tem também a finalidade de questionar o porquê de a poética do traduzir geralmente não entrar no debate em torno da tradução. Imediatamente, somos levados a compreender que essa constatação pode parecer um tanto óbvia, visto que a poética transforma radicalmente o pensamento sobre a linguagem e corre constantemente o risco de não ser compreendida se levamos em consideração o grande poder do signo. Ela assume uma posição de crítica que não é aceita comumente, visto que desloca o pensamento sobre a linguagem de forma tão extrema que pode se tornar incompreensível para alguns.

A própria ideia de sentido, noção maior da língua quando oposto à forma, perde força no âmbito do contínuo, visto que o sentido apresenta apenas uma descontinuidade semiótica no âmbito da língua. E esse é um posicionamento inaceitável para aqueles que constroem suas bases teóricas sobre essa noção. O exemplo da tradução da Bíblia mostra claramente o quanto é importante para as diferentes religiões se apoiarem nos termos da língua para que continuem mantendo o poder do sentido nas suas mãos. Ao traduzir a Bíblia e indicar que se lê a palavra de Deus nessa tradução soa quase como uma situação cômica no âmbito da poética. Cômica pois esconde aquilo que é mais banal, o fato de não ter sido Deus quem escreveu a tradução, mas o próprio tradutor. É nesse contexto que as diferenças entre o divino, o sagrado e o religioso se tornam salientes. O religioso tende a se esconder atrás das máximas da língua e, ao fazê-lo, se confunde com o divino e com o sagrado. No entanto, a poética alerta para o fato de que a situação passada e atual das religiões tem

sido mais de separação, através da morte, do que de ligação entre homem e Deus, entre os homens entre si.

A poética não entra no debate pois ela representa uma ameaça para o estado atual do pensamento sobre a linguagem e, consequentemente, sobre a tradução. Ela põe em risco o império do signo e isso não é permitido. Caso a poética do traduzir seja incluída na discussão de forma igualitária, o pensamento sobre a linguagem será modificado e terá que arcar com as consequências dessa modificação. No entanto, é preferível se manter na zona de conforto, onde todas as coisas já estão bem acomodadas e funcionam para que se mantenham estáveis. A poética representaria a própria instabilidade. Ela seria o abalo sísmico do pensamento sobre a linguagem.