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TERCEIRO CAPÍTULO

3 A POÉTICA DO TRADUZIR (RE)CONHECIDA: TEMAS DA TRADUÇÃO REVISITADOS

3.4 REVISITANDO A EQUIVALÊNCIA

A equivalência surge a partir dos debates acerca da noção de fidelidade, que sempre foi um tema discutido em qualquer período histórico desde que a reflexão sobre a tradução teve início nas culturas humanas. Especialmente no desenvolvimento da discussão sobre a tradução na parte ocidental do mundo, a ideia de equivalência passou por muitas modificações. De qualquer forma, segundo Albir, “la equivalencia traductora se ha considerado la noción central de la Traductología y ha sido durante décadas uno de las grandes temas de debate” (2011, p. 203).

É possível, claro, contestar o fato de que não haja uma definição comum para a equivalência. Isto é, que há uma “ideia geral” sobre equivalência. No entanto, a título de exemplo, tomo duas definições de equivalência de teóricos da tradução que podem ajudar a mostrar o ponto de vista que assumo nesta dissertação. Snell-Hornby (1988) diz , por exemplo:

Equivalencia es inapropiado como concepto básico en teoría de la traducción; el término equivalencia, aparte de ser impreciso y estar mal definido (incluso tras más de veinte años de intenso debate), presenta una ilusión de simetría entre lenguas que apenas existe más allá de un nivel de vagas aproximaciones y que tergiversa el problema básico de la traducción. (apud ALBIR, 2011, p. 206 )

E Rabadán (1991):

Noción central de la disciplina translêmica, de carácter dinámico y condición funcional y relacional, presente en todo binomio textual y sujeta a normas de carácter sociohistórico. Determina, con propiedad definitoria, la naturaleza misma de la traducción.(apud ALBIR, 2011, p. 204)

[...] cierto tipo de relación que defina al TM como traducción de un TO determinado. Esta relación global, única e irrepetible para cada binomio textual, y, por supuesto, para cada actuación traductora, presenta un nivel jerárquico superior al de las relaciones estrictamente lingüísticas y/o textuales, ya que está subordinada a normas de carácter histórico. Esta noción de carácter funcional y relacional es lo que llamamos equivalencia

Vê-se, a partir dos exemplos tomados de teóricos da Tradutologia, que a equivalência, dentro dos estudos sobre a tradução, apresenta facetas diversas. Não são raras as tentativas de tomar a equivalência como um conceito sólido. Segundo Albir (2011), a partir de 1950, pelo menos 40 pensadores tomaram a equivalência como objeto de estudo. O objetivo em comum: tornar a equivalência um conceito sólido, capaz de responder às questões impostas pela relação intrínseca entre um texto tomado como original e outro como tradução. Toda tentativa de definição, o que almeja, querendo ou não, tomar a equivalência como um conceito, está totalmente dependente do ponto de vista assumido pelo estudioso. Os exemplos, a esse respeito, são inúmeros.

O que pretendo, neste momento, é justificar o tratamento que será dado à equivalência, pois é importante que se faça clara a ideia de que trato desse tema a partir de um ponto de vista específico e que o objetivo não é dar uma definição a fim de determiná-la como um conceito, seja a partir de uma ideia completamente nova ou de uma adaptação advinda de outro ponto de vista; o objetivo é, pelo contrário, problematizar o efetivo daquilo que se equivale. O intuito é demonstrar que a noção de equivalência em si não parece ser tão infrutífera como alguns autores podem deixar transparecer, mas de que o que se coloca em relação para, então, tratar como equivalente deve ser revisitado.

Como visto, a equivalência surge a partir da noção de fidelidade e à luz das teorias linguísticas do século XX. É preciso retomar a fidelidade, ou melhor, o discurso sobre a fidelidade a partir de um ponto de vista poético. A fidelidade, para Meschonnic, é respeitável em aparência. Espera-se que ela seja o mínimo respeito devido ao leitor. Essa noção acompanha aquela da modéstia e do apagamento do tradutor. É importante atingir a transparência, é importante que a tradução seja dada como o original, que não se duvide que é uma tradução. Meschonnic lança duas perguntas: “Fidélité de qui? Fidélité à quoi?” (1999, p. 26). A resposta, a partir da visão tradicional, é: fidelidade ao signo e às ideias preconcebidas. Ou seja, a fidelidade é pensada nos termos da língua; obtém, logo, respostas que advêm dos conceitos da língua. Se se propõe, a partir do século XX, uma discussão sobre a equivalência, obtém-se, ainda, uma visão da língua por ela mesma. A equivalência é procurada de palavra a palavra, de texto a texto, de contexto a contexto, de língua a língua, mas sempre a partir dos produtos gerados pelo ato de traduzir. Faz-se necessário, como bem aponta Meschonnic, primeiro, deixar de traduzir a língua para traduzir o discurso e, em segundo lugar, deixar de tomar a equivalência a partir dos conceitos da língua e, então, buscá-la a partir dos conceitos do discurso. Meschonnic, na continuidade de seu projeto teórico, propõe que “Le rythme,

organisation du mouvement de la parole dans l’écriture, est alors l’unité d’équivalence dans une poétique de la traduccion” (1999, p. 56).

Ao retomar a afirmação de Snell-Hornby (citada acima), percebe-se claramente que há um desconforto com o que se equivale. Ou seja, a simetria, de que trata Snell-Hornby, é observada a partir dos conceitos da língua.

Convém deter-se sobre isso. Os conceitos da língua são aqueles que dizem respeito aos conceitos das teorias da linguagem e da língua que procuram, na distinção entre a forma e o sentido, delimitar o que é a língua. Ao fazê-lo, a partir de uma visão científica, buscam unidades que sejam analisáveis e decomponíveis uniformemente e que digam respeito a um objeto empírico para estudo. Esses conceitos, desde Platão, relacionam-se com a natureza convencional do signo. Ou seja, da relação entre o signo e a realidade. O que é refutado pela poética do traduzir, visto que, por se tratar de uma crítica do historicismo, não apreende a natureza convencional do signo. Em contiguidade com o pensamento de Humboldt, Meschonnic aborda esses conceitos como sendo da ordem do descontínuo, pois se trata de uma unidade reduzida a si mesma. Opostos à ordem do contínuo, que subentende a produção de um discurso que é historicizado e que não tem um fim em si mesmo.

Retomemos. Sem dúvida, não é difícil aceitar o fato de que não há simetria entre a semioticidade dos sistemas linguísticos. Essa é uma visão possível desde Saussure e afirmada por Benveniste, visto que o modo semiótico – plano dos signos – da língua é específico de cada língua particular. Mesmo a afirmação de Rabadán, acima, que situa um plano fora da língua para se pensar a equivalência, ainda o faz naqueles conceitos. É importante ressaltar o fato de a autora levar em consideração a historicidade do texto, diferente de muitos outros autores. Porém, mesmo assim, a particularidade da tradução ainda recai sobre a relação dos produtos dentro de um contexto sócio- histórico, não sobre a historicidade das produções. Além disso, me parece ser possível manter essa visão, é exatamente esse deslocamento que propõe Meschonnic: deixar a esfera do descontínuo, da oposição entre as formas e os sentidos do texto que se traduz e do texto que é traduzido, para adentrar a esfera da produção desses textos, levando em consideração a organização da fala na escritura. Fala e escritura não são relacionáveis a texto e escrita, que pressupõem uma visão de objetos concluídos; são, antes, descrições das atividades que estão em jogo na produção dos discursos, orais ou escritos.

Buscar a equivalência do ritmo é situar-se no plano do discurso. A poética, por seu aspecto crítico, supõe a relação entre a historicidade das produções dentro de uma visão que permite verificar que um texto traduzido carrega consigo o ritmo de um discurso produzido anteriormente. Meschonnic fala a respeito do envelhecimento das traduções. Para ele, esse não é um fator negativo, mas um fato que chama atenção para a questão da sobrevivência de um texto. Os exemplos em que o autor se apoia dizem respeito ao fato de, na verdade, sermos uma sociedade que vive de retraduções, mais do que de traduções.

O ritmo supõe essa organização do movimento da fala na escritura no sentido de que, por exemplo, é possível encontrar Baudelaire não nos produtos (textos) que são dados como de sua autoria, mas no ritmo que seu discurso apresenta. Se se lê Baudelaire em português, não estamos lendo Baudelaire, mas sua tradução. O que não torna impossível encontrar o ritmo de Baudelaire na produção de seus tradutores. É um trabalho crítico, de caráter inovador. A equivalência, nesse sentido, muda de figura. Ela deixa de ser utilizada para julgar a fidelidade do tradutor ou a verdade de uma tradução e passa a ser a maneira pela qual procuramos o ritmo de Baudelaire. Ela sai do plano da língua e atinge o discurso. É imperativo que se mencione o fato de que esse “ritmo Baudelaire” não é fruto de uma interpretação, como é possível através de uma visão hermenêutica, mas da própria atividade crítica da poética que toma o discurso na sua produção e não no sentido expresso a partir do produto.

A equivalência retorna, no ambiente da poética, renovada. O trabalho crítico da poética permite olhar para as visões tradutológicas sobre a equivalência e lançar um novo desafio: o desafio não está mais em discutir a validade da equivalência, mas a validade da unidade a equivaler. Da língua ao discurso, a unidade de equivalência deixa de ser da ordem do descontínuo, e avança sobre a ordem do contínuo. No descontínuo, a unidade põe em cheque a própria equivalência. No contínuo, a unidade renova e reafirma o caráter da noção. Não é inútil discutir a equivalência se a unidade não é baseada na língua. A partir do contínuo, do discurso, a equivalência permite compreender a historicidade e a validade do traduzir. A mudança de perspectiva da poética não nega a discussão lançada pela Tradutologia, mas ilumina questões obscurecidas pela ciência da tradução, indicando um novo caminho, um novo projeto teórico.

A noção de equivalência, então, ganha novo caráter na discussão sob o ponto de vista da poética do traduzir. Ao invés de invalidar a noção, a crítica advinda da poética sobre a equivalência

faz perceber que os desconfortos e as incongruências encontradas em alguns autores, especialmente autores da Tradutologia, não estavam equivocados. No entanto, para que a discussão ganhasse novos horizontes, é necessário perceber que, mais importante do que discutir a noção em si, é na unidade a equivaler que recai a crítica. Procurar a equivalência no terreno das teorias tradicionais é limitar-se a uma busca de simetria entre as formas ou os sentidos – ainda partir do plano da língua. Como visto anteriormente, uma empreitada quimérica com um fim em si mesmo: a equivalência, no plano do signo, não existe. Partindo do ponto de vista poético, as unidades a equivaler deixam o plano da língua e adentram o plano do discurso: agora, a unidade não é mais um conceito fornecido pelas teorias da língua, mas uma unidade que surge do plano do discurso. É o ritmo que deve ser tomado como unidade de equivalência. Pois é o ritmo que deve ser traduzido. Apenas a partir da mudança de perspectiva é possível perceber os limites e as modificações que são necessárias para compreender melhor a noção de equivalência, liberando-a dos dogmatismos das teorias circunscritas à língua.