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3. Fundamentos

3.7. Quando o Estado abre mão de apenar o criminoso

Embora tratadas como teorias distintas, a comunhão da ideia de que alguma forma o Estado manifestou sua intenção em não persistir na persecução penal permite a reunião em uma só diretriz das teorias que apregoam a suposta leniência ou a perda de interesse dos órgãos oficiais em dar prosseguimento à perseguição penal em juízo do acusado. As hipóteses, tratadas de maneira apartada pela doutrina, se aproximam porque a demora na finalização do processo criminal sugestionaria conduta letárgica do mecanismo policial e judiciário, com a diferença de que, no caso da presunção de negligência, configuraria atitude censurável, passível de responsabilização administrativa e criminal41, ao passo que o simples desinteresse, nos termos em que difundida a doutrina, resultaria de atividade deliberada e consciente, não merecendo reprovação disciplinar.

É de bom alvitre destacar que em boa parte dos casos a apuração é demorada, sem que se possa cogitar de falta a ser imputada ao Estado. As próprias

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No Brasil, à guisa de exemplo, a lei no 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) disciplina a prática do ato infracional e suas consequências (art. 103 e ss.). Além disso, o art. 115 do Código Penal reduz pela metade o prazo prescricional quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos.

40 A própria temática da menoridade penal prova como a imaturidade do acusado pode repercutir na

reprovação a ele dirigida. Relatório divulgado pela Fundação das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em 2005 demonstra a tendência mundial à redução do patamar. Como exemplo, cite-se que, na América do Sul, Brasil, Colômbia e Peru mantêm a inimputabilidade penal para os menores de 18 anos, faixa que é reduzida para 16 anos na Argentina e Chile. Nos Estados Unidos, a menoridade oscila entre 6 e 18 anos, a depender do Estado. Na Europa, a Escócia considera como penalmente responsáveis os maiores de 8 anos de idade. A situação é ainda mais emblemática no continente asiático, haja vista o excessivo número de países em que a idade mínima para o cometimento de crimes é de 7 anos (Banglandesh, Ìndia, Myanmar, Paquistão e Tailândia).

41 Ainda que de forma embrionária, enxerga-se uma das observações contrárias à adoção da teoria, porquanto

ao ensejar a prescrição em determinado feito e abrir o caminho da justiça penal ao agente negligente, estar-se- ia incidindo em círculo vicioso, sem que o problema de fundo obtivesse solução a contento.

exigências processuais, em especial o respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa – que demandam maior vagar na marcha dos autos – e a falta de colaboração com as atividades judiciais, muitas vezes devido a expedientes protelatórios manejados pelo acusado, ocasionam a delonga, sem que se possa tachar de negligente a conduta estatal. Acrescente-se ao quadro, ainda, a ausência involuntária de condições materiais para o apropriado desenvolvimento do trabalho de investigação e colheita de provas.

Francesco Antolisei mostra simpatia à teoria. Segundo o autor, o decurso do tempo normalmente reduz o interesse do Estado não só em perseguir o crime mas também para fazer valer a pena que tenha sido imposta, já que os órgãos oficiais se contentariam com o desaparecimento da memória dos fatos e das consequências sociais deles advindas. Acrescenta ao seu pensamento argumentos processuais ao comentar que, nas condições expostas, quando a investigação não tenha tido lugar ou o processo judicial não tenha chegado a uma condenação final, aumentariam, ao longo do tempo, as dificuldades no recolhimento das provas em virtude do desaparecimento de testemunhas e dos traços do crime (ANTOLISEI, 1969, p. 588).

Ainda que encontre algum eco em abalizada doutrina42, a suposta carência de motivação estatal não passou desapercebida à pesada pena de Francesco Carrara, segundo o qual reconhecer o desinteresse oficial no seu mister criminal seria colocar o Ministério Público acima da lei, que para ele é soberana como para qualquer outro cidadão. Para o autor, o Ministério Público, mais do que o direito, tem o dever de exercer a ação e fazer executar as condenações e, se crê que não deve exercer uma ação, não se abstém por entender que configura uma faculdade, mas porque, sendo “juiz de seus próprios deveres”, entende que nesse caso não se lhe incumbe o dever de obrar (CARRARA, 1956, p. 176). Vincenzo Manzini, a seu turno, menciona que a negligência e má condução do exercício funcional penal como fundamentos da prescrição tiveram seu espaço no sistema do processo acusatório romano, mas não mais encontram motivos de subsistência (MANZINI, 1948, pp. 529-530).

42 Ilustram ainda o rol dos defensores da perda do interesse estatal Gonzalo Yuseff Sotomayor e Giuseppe

Diferente leitura promove José Frederico Marques acerca da precária atuação estatal como fundamento para a prescrição penal. Ainda que atribua ao Estado e à letargia de seus órgãos a causa do instituto, entretanto, não lhe confere o caráter de punição ou mesmo de abdicação voluntária que Carrara e Manzini. O autor evita tecer comentários de qualquer ordem sobre a omissão na persecução penal e sua análise na fundamentação da prescrição tem o tom de que bastaria a mera constatação de uma atuação oficial deficiente, sem qualquer referência ao dolo de seus agentes, para a justificação. Segundo vê o autor, a renúncia estatal apenas pode ser focalizada no período antecedente à introdução da norma penal na legislação, e não no plano de sua aplicação, após estar promulgada. Afirma o autor que

É da inércia do Estado que surge a prescrição. Atingido ou ameaçado um bem jurídico penalmente tutelado, é a prescrição uma decorrência da falta de reação contra o ato lesivo ou perigoso do delinquente. Desaparece o direito de punir porque o Estado, através de seus órgãos, não conseguiu, em tempo oportuno, exercer sua pretensão punitiva (MARQUES, 1966, p. 403).

Em verdade, assiste razão ao autor brasileiro quando entende a imputação ao Estado das razões que sustentam a prescrição apenas se concebe se enfocada no momento pré-legislativo: a atuação deficitária e o desinteresse sugeririam a probabilidade de uma persecução penal temerária não podendo, por isso, ter prosseguimento. A questão demanda, entretanto, o aprofundamento das críticas à doutrina em comento. Por certo, uma vez incorporada ao ordenamento a causa extintiva da punibilidade e verificado o transcurso do tempo necessário a sua constatação, não sobraria alternativa aos órgãos oficiais se não acatá-la. Abdicação ocorre, é verdade, mas apenas no contexto que o próprio Estado previamente estabelece, por meio de leis que regularmente edita no exercício de sua soberania.

Ao revés das demais teorias, as doutrinas estatais pouco encorpam o estudo do tema por desestimular incursões filosóficas nos seus pressupostos uma vez que, enquanto naquelas admite-se, em maior ou menor grau, a pesquisa e a manutenção de suas raízes durante o percurso processual (Teria o acusado se emendado? A emenda deve ser presumida? Poder-se-ia cogitar de debilidade das provas na fase executória? Os cidadãos ainda lembrariam do delito, ou melhor, seria esse um dado relevante?), nestas a análise se resume apenas ao período anterior à consagração do instituto e, nesse sentido, admite-se,

ainda que com alguma dificuldade, a possibilidade da máquina estatal reconhecer, em hipóteses pontuais e genéricas, sua dificuldade em apurar e pronunciar o direito em tempo razoável e com teor confiável de certeza, merecendo, em nome de princípios como a continuidade do serviço público e da segurança jurídica, estabelecer balizar temporais que, acaso não cumpridas, implicariam na supressão de seu poder punitivo.

Por outro prisma, reconhecida pelo ordenamento e iniciado o procedimento, como aceitar, em um Estado Democrático de Direito, a ideia de que o poder público, sponte

sua, determine sua própria abstenção de atuar sem que não se lhe possa condenar a opção?

Em outros termos, enquanto ainda não configurada a prescrição, deve o Estado nortear seu mister com a mesma dedicação que ostentaria se o prazo ainda não tivesse se iniciado, mesmo que pareça utópica a afirmação que ora se faz.