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Sobre os efeitos do tempo na reforma da conduta do acusado

3. Fundamentos

3.5. Sobre os efeitos do tempo na reforma da conduta do acusado

A teoria da presunção de emenda do criminoso logrou significativo prestígio na América do Sul e considera que durante o tempo que sucede o crime o acusado se redimiu e não voltará a delinquir. No Brasil, encontrou em Galdino Siqueira seu principal expoente33. Para ele,

A prescripção só se póde justificar, não com presumpções, mas com a realidade, quando se demonstrar que o individuo, por seus precedentes, por sua conducta, pelo gênero do crime commettido, não se tornou temível, e assim, em face de quem peccou, mas soube redimir, é que cessa para a sociedade o interesse de punir (SIQUEIRA, 2003, p. 735).

Posição temperada adota a Escola Positiva. Não nega que os anos tenham idoneidade para reformar o acusado, mas entende que a presunção não pode ser jure et de

jure. Perigoso seria estabelecer, a priori, uma expectativa de regeneração sem que se

promovesse a individualização do delinquente. Enrico Ferri, idealizador do projeto do Código Penal italiano de 1921, referência positivista no tema, encampa a tese de que o longo curso do tempo após o crime não anula o medo do agressor nem retira a necessidade

33 Como reforço, vale destacar que o projeto de Código Penal elaborado pelo autor negava, nos termos dos

de defesa social, uma vez que o efeito a longo prazo do bom comportamento do agressor é fator que deve ser avaliado em concomitância com outros, e não em caráter exclusivo (FERRI, 1928, p. 342).

Rafael Garofalo acrescenta que seria inaceitável a admissão da prescrição sem que o réu provasse, pela sua conduta posterior, não ser um elemento anti-social e quando a mudança de condições sociais tornasse improvável a reincidência. Rechaça-a nas hipóteses de “grandes delinquentes” da categoria dos assassinos ou dos impulsivos por alcoolismo, quando não tivesse cessado o vício ou ainda os ladrões, enquanto “ociosos ou vagabundos”. Na defesa da linha positivista, preceitua que

Em materia de prescripção a escola positiva não pode acceitar as normas absolutas dos códigos e das theorias feitas à similhança d´estes. Ella quer que as providencias sejam as reclamadas em cada caso pelas necessidades da tutela social. Exclue a pena por inútil quando pode adquirir-se a prova da completa emenda do réu; pelo contrario, exclue da prescripção todos os delinqüentes que pela sua conduta ulterior hajam confirmado o diagnostico de incorrigibilidade (GAROFALO, 1893, p. 448)

Autores modernos levantam como óbice à reabilitação do réu a precária situação das prisões na maior parte do mundo, notadamente nos países subdesenvolvidos, nos casos em que a espera pelo julgamento ocorre com a custódia processual. A miserabilidade das instalações penitenciárias alia-se à falta de planejamento oficial no sentido de oferecer, de maneira sustentável, oportunidades de reenquadramento social, seja por meio do trabalho, do ensino ou de qualquer atividade que lhe faça as vezes. Em realidades como tais, difícil a acatar a presunção de que o sistema franqueia ao agente criminoso meios hábeis de correção e reinserção na comunidade, quando o que se tem de concreto, muitas vezes, é a reiteração de condutas delitivas no próprio âmbito do cárcere.

Também encontram-se vozes que notam aqui possível confusão entre institutos penais. Girolamo Penso, embora admita a validade científica do critério, entende que no caso de emenda do culpado haveria uma espécie de perdão e a essência da prescrição seria outra, não se associando com os efeitos dos anos decorridos (PENSO apud ANDRADE, 1979, pp. 19-20). Manzini pensa de forma semelhante e se ressente da falta do elemento tempo, essencial à própria definição de prescrição, ainda que associado a outros (MANZINI, 1948, p. 530).

Não se pode descartar os efeitos da boa conduta do agente, denotando, ainda que de forma incipiente, mudança positiva de comportamento o que se verifica, à guisa de exemplo, na sua intenção de reparar financeiramente o dano, no comparecimento aos atos processuais ou mesmo na assistência, em sentido amplo, prestada à vítima. No entanto, todas as atitudes elencadas exigem, em maior ou menor grau, o transcorrer de algum tempo, sob pena de se promover, em caminho inverso, julgamento precoce no sentido da absolvição, o que não justificaria a existência da prescrição em prazos mais curtos a qual, além de bastante comum nos ordenamentos atuais, é ainda mais enxuta no direito brasileiro, que contempla de maneira sui generis a prescrição retroativa, que toma como parâmetro a pena in concreto.

Sente-se o influxo da praesumptio vitae emendatae nas legislações que adotaram a reincidência como causa interruptiva da prescrição. É o caso, entre tantos, dos códigos penais do Brasil34 e da Argentina35. O cometimento de novo crime colocaria por terra a noção de que o tempo teria alguma serventia para o acusado em seu processo de readaptação social36. Com a devida vênia, não parece ser esse o melhor entendimento. Isso porque, em códigos penais como o brasileiro, a reincidência só se verifica após o trânsito em julgado da sentença que tenha condenado o agente por crime anterior37. Ora, se prosperasse tal raciocínio, só faria sentido a consideração da reincidência em se tratando de prescrição executória, pois esta pressupõe a imutabilidade da sentença penal condenatória, diferentemente do que acontece com a prescrição da ação38. Se se considerar a

34 Art. 117 - O curso da prescrição interrompe-se:

(...)

VI - pela reincidência.

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Art. 67. La prescripción se suspende en los casos de los delitos para cuyo juzgamiento sea necesaria la

resolución de cuestiones previas o prejudiciales, que deban ser resueltas en otro juicio. (...)

La prescripción se interrumpe por la Comisión de otro delito o por la secuela del juicio. (grifos nossos) 36 Braz Florentino Henriques de Souza olha com restrição ainda maior a relação entre prescrição e

reincidência. Para o autor, mesmo a prescrição não pode obstar a reincidência em processo posterior “porque se ella o acoberta e o livra da pena merecida, cumtudo não o apaga, não o faz desapparecer; e desde então não há motivo para que não seja o primeiro delicto considerado como elemento de aggravação do primeiro” (SOUZA, 2003, p. 366).

37 Art. 63. Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

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No mesmo sentido assentou o Superior Tribunal de Justiça: “A reincidência não influi no prazo da

prescrição da pretensão punitiva” (Súmula no 220). Para a Corte, o efeito da reincidência como causa interruptiva deve se resumir à prescrição da pretensão executória (RHC 14.224-SP, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, julgado em 17.06.2003; HC 88.327-SP, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Julgado em 11.09.2008).

possibilidade de regeneração do indivíduo como alternativa viável e tomarmos como parâmetro a duração desarrazoada dos processos penais em casos como o nacional, praticamente não teria aplicabilidade a regra legal. Por outro lado, havendo édito condenatório anterior, não importando a época, sempre lhe deveria ser negado o benefício prescricional. Mais apropriado seria, em atenção à presunção de emenda advinda dos anos, considerar a habitualidade criminosa como causa interruptiva, e não a reincidência. Não raro é confuso e premeditado o tratamento dispensado às duas hipóteses, observação que não passou incólume a análise de Miguel Polaino Navarrete:

La delimitación normativa de las figuras de “reincidencia” y “habitualidad” resulta deficiente y defectuosa, al desconocer la naturaleza y gravedad de los delitos cometidos, las condiciones personales del autor, y anudarse a ambas categorías consecuencias jurídicas desaconsejadas y contraindicadas desde el punto de vista de la justicia material, precisamente por procederse sobre la base de criterios de mera presunción formativa al establecimiento de la agravación delictiva o del impedimiento de substitutivos penales (NAVARRETE, 2000, p. 190).

Cabe ainda destacar que a teoria, na medida em que circunscreve seu âmbito de incidência ao agente e não demonstra preocupação com os cidadãos que o cercam, finda por menosprezar a função de prevenção geral conferida à pena. De fato, como bem aponta Alessandro Baratta, a função de prevenção geral creditada à pena se descola da mensagem individual reservada ao infrator para, mais além, expressar e afirmar os valores e as normas do direito penal, contribuindo para a integração do grupo social em tornos das mesmas e para o restabelecimento da confiança institucional nas normas quebradas pela infração sofrida (BARATTA, 1986, p. 174-175).