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5 A NARRATIVA DE HISTÓRIA DE VIDA DE LUIZA

5.3 Quando um grave acidente mobiliza a família e transforma a relação

Luiza passa a nos contar sobre como é sua relação com seus pais e seu irmão, este último, alguém com quem ela não se dava bem, até que ele sofre um grave acidente e toda a dinâmica familiar se transforma, assim como a própria relação entre eles. Ela começa nos contando sobre sua mãe:

Então, eu e a minha mãe, nós somos muito, muito, muito ligadas. Nós somos muito amigas, né. (...) Então a gente tem uma conexão boa. Sabe, ela, como mãe, não é aquela mãe que me... que me castiga e fala assim “olha, você saiu pra beber e você está aí pra trabalhar. Você está aí sozinha”, sabe? (...) ela é de conversar comigo. Pelo certo ou pelo errado, ela é uma mãe que saber falar “nossa, filha. Parabéns”, ou então puxar a orelha... com carinho, sabe? Mas mesmo com carinho, eu sinto. Então, ela, ela é uma pessoa que me passa muuuuita credibilidade. Eu... eu pergunto tudo pra ela, eu conto tudo pra ela..., então, como é uma mãe de cabeça aberta, que aceita, entende as coisas, eu respeito tudo o que ela me fala, “por que que você não tenta isso?”, “por que você não tenta aquilo?”...

Sua mãe parece representar uma figura central em sua vida, sendo, ao mesmo tempo, mãe, amiga, confidente e conselheira.

(...) o engraçado é que eu pareço muito com meu pai no sentido de personalidade. A minha mãe, ela é meio medrosa, o meu pai já meio “vamos lá”, “que que tem pra fazer? Tô indo”, então eu sou meio corajosa, assim, igual meu pai, e sou meio machinho igual ele, no sentido de, mesmo, de briga. (...) meu pai é... ele é brincalhão, mas ele é muito sério, assim, sabe? Ele me vê magra, ãhn... ele me vê magra e fala assim bem alto “[Vo]Cê tá comendo? [Vo]cê não tá comendo, né menina?” (risos). E... ele é um bom pai. (...) Ele..., é, das poucas vezes, assim, não poucas vezes, ele sempre foi muito presente, mas ao mesmo tempo, ausente. Eu nunca fui de sentar com ele numa mesa e contar do meu dia inteiro, tipo, eu não conto tudo pra ele.

Já com seu pai, a relação é mais séria, com ele exercendo uma figura mais protetora. Embora os dois tenham um bom relacionamento, esta relação é mais fechada.

(...) ele pergunta do meu relacionamento, da minha vida pessoal, do meu trabalho, eu respondo, e pergunta até quanto que eu ganho – coisa que minha mãe não pergunta. Não entendo porque que ele quer saber (risos), mas ele é uma pessoa que presa pelo meu “pé de meia”, igual ele fala... “Vai fazendo o seu pé de meia, filha”, “vai fazendo o seu pé de meia”. E... ele é... Ah, ele é um bom homem. Eu vejo ele como meu (...) protetor físico, minha mãe é minha protetora de alma, assim. Acho que eu tenho uns pais bem assim, perfeitos pra mim, pra minha vida.

A representação amorosa que Luiza faz de seus pais, além de ajudar a compreender a influência que eles exercem em sua vida, também nos auxilia a dimensionar o quão difíceis

são os momentos de solidão e as longas distâncias, experimentadas, desde cedo, por ela, assim como por tantas outras garotas que ingressam na carreira de modelo.

Seu relacionamento com seu irmão, no entanto, difere bastante daquele que tem com seus pais:

Meu irmão, a gente se estranha porque ele é uma pessoa muito difícil de lidar, sempre foi, desde quando ele era pequenininho, desde criança. Minha mãe me conta uma história de que quando eu nasci, (...) ela veio caminhando assim, comigo no colo, e chegou pra ele e “olha aqui, filho, a neném que a mamãe trouxe pra brincar com você”. Ele olhou e levantou a mão, tipo, pra, né, pra bater e fez bico e saiu pra lá correndo. Então eu acho que ele nunca me aceitou muito como irmã, aquele negócio de (...)perder (...) o posto como filho único, tipo assim.

Essa barreira afetiva conflituosa entre ambos impossibilitava o desenvolvimento de outras formas de representação, o que reduzia a relação dela com o irmão à mesmice da re- posição da personagem irmã-que-não-era-aceita.

Eu tinha 16 [anos] e ele tava no mês pra fazer 18 [anos] . Ele sofreu um acidente de moto, o ônibus pegou ele de lado, ele teve vááários, vários, ahmn, várias fraturas, fratura exposta, ficou em coma, foi bem sofrido. Foi bem sofrido. E foi uma coisa, eu acho, meio que espiritual, para aqueles que acreditam que, não sei, muita coisa aconteceu, ahmn, nessa minha ligação com ele, de, de nós termos que nos acertar, enquanto pessoas, nessa vida, porque eu sonhei, enquanto ele estava no hospital, ele, eu sonhava muito com ele, e um médium, acho que é assim, quando você tá perdendo uma pessoa, você vai em-qualquer-lugar-que-tenha -uma-resposta. Foi mais ou menos assim, na época, pra gente.

Luiza revela um aspecto bastante espiritualizado, desconhecido de nós até o momento. Frente à gravíssima situação em que o irmão se encontrava, ela e a família encontram na

esfera “espiritual” do universo religioso, um modo de suportar aquela realidade e, além disso,

de tentar transformá-la. Nesse período surge a irmã-que-tem-fé.

Então nós íamos na igreja católica, evangélica, é, eu sou espírita kardecista, acredito em vida após a morte, é, não fomos à umbanda, mas nesse centro kardecista o médium me falou “você pode tirar o seu irmão do coma”, e me ensinou uns exercícios... como se fosse pra... “me comunicar” com ele pra onde ele estivesse. Eu senti nisso uma responsabilidade de trazer meu irmão de volta. Sabe?

A irmã-que-tem-fé se imbui da responsabilidade de resgatar o irmão do coma, e para

isso, influenciada pelo meio em que se encontrava, mergulha nas questões espirituais e seus exercícios sugeridos pelo médium.

Então toda noite, antes de dormir, ele no hospital, eu fazia uma oração muito forte, imagina ele, e não sei o quê, ele bem, sorrindo, caminhando...

Fruto dos cuidados médicos, das orações, de ambas as coisas, de fato, o irmão despertou do estado de coma. Todavia, foram meses no hospital, internado, e a família

precisou organizar um rodízio entre si com a finalidade de assisti-lo em tempo integral. Uma vez que Luiza só estudava, acabou ficando a maior parte do tempo com ele lá.

(...) eu passava a maior parte do tempo cuidando dele no hospital, e como ele não falava, ele ficava fazendo gestos e eu ficava ali, me esforçando pra falar com ele, e isso, de alguma forma, foi uma... uma lição pra nós dois, sabe? “Vocês precisam de vocês”. Eu sempre fui muita aberta pra, como que eu falo? Pra amá -lo, assim. Pra a mar ele. Eu tenho, ele não é uma pessoa aberta pra mim. Hoje, nem tanto, mas, é.

A dificuldade na comunicação convencional criou condições objetivas para que desenvolvessem outras alternativas na busca de entendimento, um que, mesmo antes, eles não tinham. Isso promoveu, gradualmente, uma mudança qualitativa na relação de Luiza com seu irmão, um movimento de alterização em que a irmã-que-não-era-aceita é superada, deixando de ser re-posta. Ciampa (1987/2005) descreve esse processo da seguinte maneira:

A negação da negação (como exposto) permite a expressão do outro outro que também sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação de minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-reposta) e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante, em que toda humanidade contida em mim se concretiza. Isso permite me representar (1º sentido) sempre como diferente de mim mesmo (deixar de presentificar uma apresentação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores, deixar de repor uma identidade pressuposta) (p. 188-9).

Lima (2010) completa enfatizando como, nesse processo, o indivíduo pode propor novas personagens, se auto-determinando, o que, significa não se trata apenas um membro da comunidade, mas sim, alguém que reage a ela e, também, que pode transformá-la com suas ações. A materialidade de uma identidade, para esse autor, se concretiza, como o próprio exemplo de Luiza demonstra, na manifestação da vontade.

(...) depois disso, realmente, nós... eu acho que nós nos aceitamos mais, acho que hoje a gente fica meio assim “oi, tudo bem?”, meio sem graça porque a gente não se conhece, sabe? A gente não se conhece enquanto irmãos, a gente nunca foi de conversar, sempre se bateu, então a gente fica meio sem graça, mas hoje eu tenho certeza que a gente se aceita mais... nós não brigamos mais, ele conserta meu computador, ele tira vírus, ele, ele faz transferência pra mim, tipo, pelo pay-pal, por exemplo. Eu nunca soube mexer, ele me ajuda, sabe? Hoje, com muito mais amor e disposição.