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5 A NARRATIVA DE HISTÓRIA DE VIDA DE LUIZA

5.15 Velha aos “27”

Dando continuidade ao balanço de Luiza sobre sua vida e sua carreira, aos 27 anos, ela se sente velha para modelar, o que a leva a refletir sobre o presente, rememorar o passado e

fazer projeções sobre o futuro e o que pretende fazer depois que se “aposentar” da vida de modelo. Seu ponto de partida é sua cidade atual, Town’s Ville:

(...) Mas é uma cidade que eu aprendi a me adaptar, onde eu trabalho bem, que me faz ficar muito feliz. É, como minha mãe fala: “tá em Town’s Ville é status”. Não é status. Porque não é fácil tá aqui. Não é fácil modelar aqui. As pessoas, elas me

cobram, me pergunta: “Que que você vai fazer depois que você envelhecer?”. Isso DÓI, isso é uma coisa, tipo, forte, sabe? E que é verdade, é uma coisa que eu, com 27 anos, eu já tenho, já passei do tempo de me preocupar, MAS é uma profissão que é, é muito difícil sair. Eu vejo assim, sabe? Porque, eu vou te dar um exemplo muito... eu não sei como vocês vão ver isso, mas em UM DIA, eu posso fazer mil euros, mil poun-, é, vamos trabalhar com euros. Eu posso fazer mil euros. Por que que eu vou trabalhar em outro lugar se eu vou receber o mesmo tanto num mês trabalhando mais dias? Então é muito difícil você parar de modelar. Muito, muito, difícil.

Por trás do “status” aparente, Luiza se recorda de todos os obstáculos que enfrentou

até chegar em seu momento atual. É uma carreira curta, de fato. Embora Luiza pareça ser bem mais jovem do que é, em termos de idade, seu tempo como modelo está se esgotando. Isso

nos leva a refletir sobre o ideal de beleza e juventude frente a “velhice” e obsolescência, todos

eles, inscritos no corpo, objeto de culto e reverência.

Vimos com Lipovetsky (2009) e Calanca (2011) que, desde a geração baby boom, o culto a juventude, assim como o individualismo e o hedonismo têm se disseminado em ritmo acelerado nas sociedades capitalistas modernas – movimento, aliás, ao qual a moda prestou um serviço de excelência através da dinâmica de novidades e lançamentos constantes, sempre privilegiando o novo em substituição ao antigo (ao velho), tido como algo obsoleto.

O culto ao corpo concentra esses ideais e os expressa na forma de valor social, o que equivale a dizer – em uma cultura orientada para o consumo –, que ele se converte em capital. Tanto para Berger (2006) quanto para Goldenberg (2015), o corpo, além de ser um capital físico, também é um capital simbólico, econômico e social. Seu valor, portanto, é mensurado através das formas, dos cuidados, da aproximação aos padrões e ideais de beleza vigentes (magra, sexy, entre outras coisas), mas sobretudo, é valorizado ao se apresentar jovem (BERGER, 2006; GOLDENBERG, 2011).

Nesse sentido, o corpo ideal distingue a própria pessoa como superior, como detentor de um status social elevado. Isso é conseguido através de muito esforço, sacrifícios e investimentos de tempo, dinheiro, etc., tudo isso, codificado no próprio corpo, que deve então ser exibido. Contrapondo-se a isso está a velhice, sinônimo de obsolescência, de descartável, mas sobretudo, signo de desvalorização do capital – e é aí que se revela o sacrilégio do tornar- se velho. A velhice deve ser combatida a todo custo, e para isso, a ciência, os avanços médicos, estéticos, nutricionais e educacionais estão disponíveis no mercado (BERGER, 2006; GOLDENBERG, 2015).

Isso, de modo algum, é algo restrito à profissão de modelo. Está espalhado em nossa sociedade e enraizado em nossa cultura. Todavia, é provável que em nenhuma outra atividade profissional nós encontremos tais fenômenos em ritmo tão intenso e de forma tão explicitada.

As modelos, mais do que dar rosto aos designs, são a expressão viva e personificada de tais valores. Mas assim como a Rosa do Pequeno Príncipe de Saint-Exupèry (2006), elas são efêmeras.

De volta à narrativa, ainda que seja uma carreira relativamente curta, as vantagens financeiras, além de todo o prestígio, status e demais atrativos da profissão, a tornam um meio difícil de largar. Luiza vê isso como uma preocupação sua, não tanto a de outras modelos, e compara outras carreiras com maior durabilidade:

Eu não vejo muito as outras modelos se preocupando com o dia de amanhã ou com o futuro. Então é mais uma preocupação minha mesmo, que eu percebo, e... tsc, é... [um longo suspiro] ... é engraçado, isso (...), quando a gente, na profissão de modelo, você vai ficando mais velho, vai ficando piorzinho, e na, numa carreira, carreira, carreira, você vai ficando mais velho, cê vai, você vai tendo mais credibilidade, né, você vai..., as pessoas vão te dar mais credibilidade.

A indústria da moda, do parecer e do feérico trabalha sempre com o presente, com o agora e o momento imediato, lógica que acaba refletida no comportamento dessas garotas a quem Luiza se refere. Em sua fala, é preciso destacar a associação que faz entre o envelhecer

e o ficar “piorzinho”, ilustrando bem o que discutimos acima, sobre o “sacrilégio” da velhice. Luiza também sugere uma distinção entre a “profissão de modelo” e uma “carreira, carreira”, onde essa última produz valor (credibilidade) à medida em que se adquire experiência (o sentido dado por ela a esse “envelhecer”), e as pessoas lhe reconhecem dessa forma (o segundo “dar credibilidade”). Com a modelo, a situação se inverte, perdendo valor e

reconhecimento à medida em que envelhece.

Ela traz consigo, desde pequena, aquela preocupação de “quem ela irá ser?”, conforme nos conta:

(...) mas... enfim, eu acho que eu só lido com o problema da data de validade por eu não saber o que fazer (...) O que eu vejo como um problema, porque eu acho que toda modelo não sabe muito bem o que fazer, não, não toda modelo, ai, não estou generalizando, pela amor de Deus, mas-,Mas do que eu percebo, assim, a gente não sabe muito o que fazer, entende? Tipo, o que que eu vou fazer? E, e, eu penso muuuito, muito, muito, muito, além da questão de não saber o que fazer, ahnm, no, na questão do dinheiro.

Esses questionamentos evocam a garota-que-não-sabe-quem-quer-ser, mais uma vez. Embora acredite que “não saber o que fazer” depois que “vencer” o “prazo de validade” é algo comum entre as modelos, a maioria nem pensa nisso, e quem pensa, como Luiza, sofre, pois continua sem resposta. Isso demonstra, por um lado, o quanto a organização das relações dessa forma de expressão identitária (a da modelo) são construídas orientadas no agora, no imediato e no novo. Em outras palavras, no próprio ritmo da moda, e por outro, revela um

forte processo de reificação da consciência nessas relações fetichizadas.

Quanto ao “prazo de validade”, ele ilustra bem a relação de mercadoria atrelada a

profissão. Ao expirar o prazo, a mercadoria perde o seu “valor”. Ao não ser mais possível

prover seu sustento modelando, como conseguirá dinheiro? Mas não apenas isso. Novamente, Luiza compara as diferenças na dinâmica de ganhos: cachê x salário:

Que assim, você ganhar um cachê em um dia pra que você passar um mês, e você trabalhar os trinta e, sei lá, vinte e oito dias, trinta e um dias pra ganhar aquele mesmo cachê que você ganhou em um dia, então isso me faz ficar “não, só mais um ano”, “não, esse, só mais esse ano eu vou modelar”, e aí parece que nunca sai, é um ciclo, sabe? E aí, no meu caso, agora, eu comecei a trabalhar pela Europa, conhecer clientes que tão me bookando hoje e vão me busca r-, me bookar daqui três meses, de novo. Eu já tô criando um vínculo com os clientes, sabe? Então é muuuuuito difícil parar. É muito difícil...

Luiza percebe sua situação, presa à mesmice da re-posição de uma personagem que em breve estará impossibilitada de ser representada. Ela está certa. É exatamente isso que é: um ciclo que se repete, dia após dia, indefinidamente. E enquanto tenta pensar em alternativas, a cada novo cliente, a cada novo contrato, isso vai se tornando mais e mais difícil.

Seus pais a aconselham como pode, e ela nos traz um pouco sobre essas conversas que tem com eles:

[Conversando com a mãe] (...) com a relação da moda, como modelo, ainda ontem nós estávamos conversando [sobre] essa questão de: se eu devo continuar viajando ou não, se eu devo ficar aqui em Town’s Ville... E... e, e ela ainda me falando que eu já estou numa idade de pensar em casar, não sei o quê, ter filhos..., igual as outras pessoas falam comigo, que eu tenho que continuar viajando, que eu tenho que ir pra América, que não sei o quê, que lá eu ia trabalhar igual ou mais, enfim... E ela me passa essa calma, sabe?

As pessoas a sua volta lhe dão conselhos antagônicos, o que aumenta sua confusão e angústia. Viajar, ir para a América implica em continuar trabalhando; por outro lado, ter filhos a obrigaria a dar um tempo na carreira, tempo esse que ela não tem muito mais sobrando (por

conta do “prazo de validade”).

E aí, quando eu tenho as minhas neuras de dúvidas, que a minha vida, que a minha vida, não, que a vida de modelo, ela não é estável, nem na questão financeira - que nem eu falei na última vez - e nem na questão emocional. Definitivamente. Porque... um dia você tá muito bem, tá happy, tá feliz, e no outro dia você... te dá um down, não sei, uma coisa meio estranha. “Ah, por que que eu não tô trabalhando?”, “por que que eu tô engordando?”, é uma coisa meio assim, “cadê a minha família?”, “cadê meus amigos?”. Acho que a gente fica meio perdido. Então é muito bom ter uma mãe que é a minha mãe e minha amiga.

Resgatando as proposições de Ciampa (1987/2005) corroboradas com as de Lima (2010), lembremo-nos de que o universal se materializa na unidade do particular, e com isso queremos dizer que todas essas dúvidas, aflições, angústias e crises pelas quais Luiza passa,

ciclicamente, representam a realidade de muitas outras garotas nessa profissão, pois todas elas estão submetidas às mesmas regras que organizam e estruturam a dinâmica de funcionamento dentro da indústria da moda. Todas elas, assim como Luiza, são sacrificadas em nome do capital. Sob essa perspectiva, que bom mesmo que ela tem na mãe, a figura de uma amiga.

Na sequência, Luiza nos conta sobre o que seu pai pensa a respeito de sua carreira, a exemplo do que fez com a mãe:

Ah! E sobre minha carreira, o meu pai, eu acho que ele só “aceeeita” (aceita, né?) que eu tô ainda modelando, velha caquética com 27 anos porque... porque eu consigo me virar, eu não fico pedindo dinheiro pra ele todo o mês. Porque eu tenho certeza, se eu, todo mês, pedisse dinheiro, não conseguisse pagar o cartão de crédito, coisa assim, ele ia me pentelhar mais com isso. Ele não, ele não é muuuito a favor da moda, não, do que eu faço, tanto que ele falou uma vez – que me deixou bem chateada –, ele falou assim “quando que você vai trabalhar igual gente normal?”. Aí eu fiquei meio assim, balançada, porque, como assim? Meu trabalho não é normal? Eu sei que não é “normal”, mas falar assim na cara “seu trabalho não é normal” é meio doídinho, né? É isso, mas no mais a gente se ama (risos).

Uma jovem de vinte e sete anos associada a ideia de “velha caquética” causa certo estranhamento. Enquanto pessoa, seu corpo é jovem, mas enquanto modelo-mercadoria, está ficando velha. Ainda assim, consegue se manter trabalhando bem, novamente, devido ao fato de aparentar ser bem mais nova. A máxima de que no mundo do parecer, o parecer é tudo, procede no caso dela.

Seu trabalho “não ser normal” levanta o questionamento sobre o que seria um trabalho

normal? O que não se pode negar é o fato de que se trata de uma profissão cuja rotina é bem distinta da dos trabalhos convencionais em muitas profissões. Luiza é quem nos explica o porquê:

É porque eu trabalho dois dias, ganho um dinheiro, e fico uma semana sem fazer nada, tipo assim, então, graças a Deus, aqui eu trabalho toda semana. Se eu não tô na Inglaterra, eu tô em outro, outro país fazendo alguma coisa, mas também, isso, porque eu construí, sabe? Eu investi, fui em outro país, dei a minha cara pra bater, “oi, eu sou Luiza, quer, me quer, não quer, tchau”, então eu fui em outros países, investi pra isso, assim, entendeu? Também, então, ahm, é por causa desse, desse, como fala? “open/down”, é, altos e baixos. São esses altos e baixos que nós temos na carreira. Um dia você trabalha, um mês você trabalha, faz uma grana, ok, você paga o seu aluguel. No outro mês você tá comendo pão. É bem... então por isso que não é normal. Meu pai fala que não é normal (risos).

Em “um mês você trabalha, faz uma grana”, no outro, “você tá comendo pão”. O peso dessa frase repousa sobre sua concretude. A inconstância e falta de rotina na carreira de modelo é uma das razões do estranhamento que causa em seu pai, assim como a frequência com que entra e sai dessa montanha russa de altos e baixos. A modelo, a exemplo do que disse Benjamin (1994), se torna vendedora e mercadoria ao mesmo tempo.