• Nenhum resultado encontrado

Quanto ao entendimento da proposta de intercessão

CAPÍTULO I – O que é o Dispositivo Intercessor?

1. NÚCLEO I – A gestão na instituição do sofrimento psíquico

2.1 Quanto ao entendimento da proposta de intercessão

O Dispositivo Intercessor parte da hipótese de que há demanda explícita ou recalcada. O fato de haver uma oferta não quer dizer que existe uma demanda, pois esta não era expressa no Estabelecimento. Contudo, a demanda era invertida, ou seja, era um desejo meu pensar sobre os modos de gestão naquele lugar. A entrada no CAPS foi um momento de amplas dificuldades, especialmente porque a intercessão foi aceita e comunicada como “pesquisa”. Em decorrência, a expectativa da equipe era: Como será a pesquisa? Qual recurso utilizará, para colher os dados? Quais procedimentos serão utilizados? Para modificar essas questões, seria necessário intensificar os contatos iniciais, deixar claro a ferramenta para o trabalho e não solicitar a realização de pesquisa junto ao Comitê de Ética em Pesquisa do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF), mas, por exemplo, inserir-se no CAPS como uma “trabalhadora-voluntária”.

Não se pode afirmar categoricamente que houve fracasso da intercessão, já que é um risco haver incompreensão de alguns eventos. A importância não é o legado desse processo, mas de sua transmissão em campo, como método para ser aprimorado. Talvez o fracasso tenha sido referente aos momentos iniciais, que resultou em dificuldades posteriores, de forma que, em um ano, não foi possível superar a visão de pesquisa científica. Introduzem-se alguns aspectos para fomentar essa reflexão: a proposta foi apresentada ao Comitê de Ética em Pesquisa do SSCF e aprovada para sua realização, a comunicação do trabalho para a equipe foi de pesquisa, em razão da falta de reconhecimento acadêmico (ou validade científica) para realizá-lo na perspectiva específica do DI. Alinhados a esses aspectos, soma-se o meu posicionamento frente aos empecilhos, já que não soube inverter a proposta de pesquisa para a de intercessão.

Nesse sentido, corre-se o risco de parecer que a equipe foi traída, pois se deparou com uma proposta de pesquisa e não de uma intercessão. Nesse caso, a transmissão e a produção do saber devem ser postas para experimentação de uma antimetodologia. No caso, não existiu um discurso manifesto, porém, um discurso silencioso.

A primeira reunião começou com a realização de uma Supervisão Clínica, na qual os trabalhadores referiram as dificuldades no trabalho em relação às crises psíquicas associadas ao uso das drogas. A queixa da equipe era: “Não sabemos mais o

pior?” Parece que a equipe experimentava as limitações em face dos tratamentos de

alguns usuários, principalmente daqueles que também usavam drogas. O conteúdo manifesto expressa um temor da equipe, de que, fora do CAPS, o usuário pudesse piorar, por isso seria necessário medicá-lo “a mais”, para mantê-lo protegido na instituição. Por outro lado, havia a compreensão de que o espaço da reunião era o momento apropriado para manifestar tais dificuldades e tentar enfrentá-las.

Em vários encontros, identifiquei uma preocupação da equipe em não ter ações manicomiais. Isso era manifestado pelos trabalhadores em suas práticas, como nesta fala: “A Reforma Psiquiátrica é um aceite, mas pensar nela é obsoleto, já superamos as

propostas da Reforma”. As discussões pareciam reanimar o tema da Reforma

Psiquiátrica, de modo que, no cotidiano, havia ainda elementos para serem superados, refletidos e problematizados.

Diante das discussões, eu exibia um caderno para anotações, como se estivesse registrando dados. Essa atitude fomentou o caráter de pesquisa, no qual o olhar do observador se dá de modo passivo. Isso reforçou as expectativas da equipe em relação à produção de conhecimento a respeito da equipe. Há outros indicativos que ajudam a detectar a percepção da equipe, no que concerne à suposta pesquisa: “Você não diz

nada, só fica anotando nesse caderno, não sei... olha lá o que vai anotar aí.” Já outra

parte da equipe era mais receptiva: “Você pode falar, a gente também escuta.” Observa- se que o momento inicial se constituiu por um processo paulatino de construção dos vínculos com a equipe e os usuários, além de ser um momento de apreensão do Dispositivo Intercessor enquanto método de trabalho.

Com os impasses iniciais de entrada no CAPS, que “viciou” o trabalho, havia uma sensação de angústia e de estranhamento quanto à organização do espaço e à constatação de que havia leitos. Para metaforizar essa sensação, recorro à crise de uma usuária, que falava do seu estranhamento no seu “ninho” familiar: “Aqui todo mundo é

louco, a gente passa a entender melhor eles, quando a gente não é louco. Eu encho o saco dos meus filhos, embora eles não deem a mínima pra mim, vou fazer um barraquinho em Camboriú, ficar bem longe, eu sou um Estranho no Ninho, já ouviu falar desse filme? No dia que iam passar aqui eu não quis assistir, mas eu sou uma Estranha no Ninho, já vi ele [o filme] algumas vezes”.

De certo modo, o estranhamento era mútuo, da equipe e meu. A sensação de estranhamento confirma que não pretendi uma posição de analista, pois ele não pode eleger o estranhamento como princípio para o seu trabalho.

Para Lacan (1992), a ideia de estranho consiste nos conteúdos que foram recalcados. A intercessão não era a catalogação e extração dos dados, mas, na maior parte do tempo, a observação foi uma ferramenta de informação. A proposta era ensaiar algumas reflexões ou problemáticas coletivas concernentes à gestão, buscando aquelas que não tinham sido enveredadas. Por isso, as falas-intervenções foram tentadas de modo a “forçar” uma brecha para advir à temática.

A proposta de uma intercessão é bastante específica, porque se trata de sustentar uma posição de ignorância douta (QUINET, 2005) enquanto participante e inserida nos processos de elaboração do conhecimento e do sentido da práxis. Assim, não consegui interlocutores que quisessem ir à frente junto comigo, na “proposta de pesquisa”, apesar de a experiência ser um ensaio e não existir um padrão para sua efetivação. Para o Dispositivo Intercessor, independe do quanto se tenha avançado em campo, é necessário desenvolver uma compreensão teórica que o sustenta, uma transferência de sujeito-suposto-saber na qual haja um “intercessor encarnado”.

Por outro lado, no grupo, havia uma dimensão produtiva sobre a questão, ora latente, ora focalizada em pequenos grupos, o que pode ser metaforizado pelas palavras de Lacan (1992, p. 17) “Entrar de fininho não é transgredir. Ver uma porta entreaberta não é transpô-la”. A necessidade de se apropriar da intercessão depende da implicação, das mobilizações, do quão o sujeito se autoriza e do quanto um paradigma é prevalecente ou não, na instituição. Pode-se inferir que a minha proposta de intercessão possuía pouca sintonia com a equipe, a despeito das poucas aberturas para a questão.

Concretamente, a equipe se ocupa da clínica, e as questões gerenciais se restringem a coordenação e a equipe administrativa. Nesse sentido, pode-se considerar que a equipe é permeada pelos atravessamentos e transversalizações da clínica, da administração, do planejamento, de uma gerência e da composição de múltiplos atores. A minha proposta de intercessão era mais um elemento existente no Estabelecimento, na qual as problematizações deveriam promover avanços, em determinados objetivos. Isto é, a intercessão propõe a protagonização dos sujeitos inseridos em um coletivo, dando-nos a dimensão da dificuldade do Dispositivo Intercessor.