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O que é, afinal, literatura infantil?

Capítulo 1 – Algumas Faces deste Espelho

1.3. O que é, afinal, literatura infantil?

Uma vez que nos propomos a compreender a concepção de literatura infantil que orienta a produção da autora Ruth Rocha, a partir das características de sua obra, torna-se pertinente apresentar algumas reflexões sobre o debate em torno do que seria esta vertente da literatura, questão já muito discutida por diversos autores mas sempre interessante e atual para aqueles que se propõem a trabalhar com o tema.

Não pretendemos aqui esgotar a questão pois isto fugiria ao propósito de nosso trabalho, e sim reunir alguns dos principais posicionamentos diante do tema, exaustivamente discutido por estudiosos como por exemplo, ARROYO (1968) e ZILBERMAN (2005, 2006) que, aliás, são importante referência na abordagem que faremos a seguir.

Sabemos que, por ser uma produção cultural e, portanto, sujeita às possibilidades e limitações do contexto histórico, social e econômico no qual é produzida, toda obra literária submete-se a critérios de análise e julgamento, de acordo com perspectivas distintas e interesses que não são de modo algum absolutos ou universais.

Desse modo, a avaliação sobre o que é ou não literatura varia conforme o período histórico, o contexto cultural e os interesses de instâncias de legitimação autorizadas socialmente a definir quais são as obras de valor literário em cada época.

Essa característica faz com que haja diferentes opiniões e posicionamentos quanto ao que é ou não é literatura, conforme alerta Abreu (2006):

O conceito de Literatura foi naturalizado – ou seja, tomado como natural e não como histórico e cultural – e por isso se tornou tão eficiente. Por esse motivo, em geral, as definições são vagas e pouco aplicáveis. Apresenta-se a Literatura como algo universal, como se sempre e em todo lugar tivesse havido literatura, como se ela fosse própria ao ser humano. (...) Nós temos que discutir o que é literatura, pois ela é um fenômeno cultural e histórico e, portanto, passível de receber diferentes definições em diferentes épocas e por diferentes grupos sociais. (p. 41, grifos da autora).

Se a Literatura – sem adjetivos - embora já consolidada em nossa realidade histórico- cultural, apresenta dificuldades de definição devido à instabilidade que advém de ser um fenômeno cultural, tanto mais a literatura infantil, mais recente e menos prestigiada, impossibilita uma abordagem definitiva ou universal. Vários estudiosos que vem se dedicando ao tema tem

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apontado as dificuldades de definição deste campo, que em seu próprio nome traz a duplicidade de um substantivo: literatura, e de um adjetivo: infantil.

Mortatti (2000) chama a atenção para a oscilação que pode ser observada nas abordagens sobre literatura infantil, nas quais se tende a considerar unicamente o aspecto literário dos textos, considerando seu caráter estético e preterindo o qualificativo infantil (geralmente nos estudos pertencentes à área de Letras) ou a abordagens que enfatizam as possibilidades de aplicação das obras no contexto pedagógico e escolar (características dos estudos na área de Educação), priorizando-se o qualificativo infantil em detrimento da discussão sobre a literaridade e estética dos textos.

Essas dificuldades de delimitação e caracterização desta produção advêm tanto da especificidade do público a que se destina, quanto da associação histórica com as instituições de ensino, que desde o princípio garantiram sua circulação e receptividade.

Quanto ao primeiro aspecto, Cadermatori (2010) nos lembra que a primeira particularidade que se pode atribuir à literatura infantil é justamente esse adjetivo que a nomeia. Enquanto a literatura, em si, não tem um público alvo, específico, a literatura infantil predetermina seu destinatário, o que resulta numa produção cujos temas, linguagem e formas de abordagem se definem de acordo com o que o escritor – adulto – acredita que é interessante ou necessário ao interlocutor - criança.

Esta particularidade, por sua vez, originou a segunda: a vinculação da literatura infantil aos projetos pedagógicos e formadores que interessam à sociedade e que encontraram na instituição escolar seu mais significativo veículo de divulgação (LAJOLO e ZILBERMAN, 2006).

Segundo as autoras, esta vinculação à escola, que comprometeu esta vertente à pedagogia e aos objetivos didáticos, consequentemente afastou-a do caráter estético e artístico, tornando-a desprestigiada diante da teoria e da crítica literária.

Estudiosos como Leonardo Arroyo e Cecília Meireles dedicaram muitas laudas ao tema já nas décadas de 60 e 70, quando se intensificou o debate em torno da definição da literatura

infantil brasileira. 19 Estes estudiosos apontavam as dificuldades de conceituação deste campo,

que denominavam como “problema” da literatura infantil.

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Segundo Mortatti (2000) a ampliação do debate nesse período deve-se a fatores como a inserção da literatura infantil em currículos de cursos de Pedagogia e Letras, a organização de entidades e projetos voltados para a área, e a

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Arroyo (1968), por exemplo, afirmou que a “divergência de opiniões e de exames” sobre o tema na época mais concorriam para a dificuldade de conceituação do campo do que para “aclarar o problema e consagrar diretrizes pacíficas sobre o mesmo”. Por isso, em seus estudos, o autor adota como critério para definir literatura infantil aquilo que, segundo ele, “geralmente os estudiosos procuram ignorar em sua autosuficiência de adultos”:

O critério válido a que nos referimos é a capacidade crítica da criança em contacto com o livro. O que ela aprovar deve ser naturalmente a legítima literatura infantil. O melhor argumento desta tese é a própria história da literatura infantil ao longo dos anos, desde o aparecimento das Aventuras de Telêmaco, de Fénelon, especialmente escrito para uma criança. Milhões de livros infantis apareceram desde então, mas os clássicos, os verdadeiramente consagrados pela infância, podem ser apontados facilmente. (ARROYO, 1968, p. 41).

Meireles (1979) também aborda a questão em seu livro “Problemas da Literatura Infantil”. A autora, que também produziu reconhecidíssimos textos para a infância, adota critério semelhante ao de Arroyo:

Costuma-se classificar como Literatura Infantil o que para elas (crianças) se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas lêem com utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma Literatura Infantil “a priori”, mas “a posteriori”. (p. 19) [...] em lugar de se classificar e julgar o livro infantil como habitualmente se faz, pelo critério comum da opinião dos adultos, mais acertado parece submetê-lo ao uso – não estou dizendo a crítica – da criança, que, afinal, sendo a pessoa diretamente interessada por essa leitura, manifestará pela sua preferência, se ela satisfaz ou não. Pode até acontecer que a criança, entre um livro escrito especialmente para ela e outro que o não foi, venha a preferir o segundo. (p.27).

Zilberman (2005) também adota critério semelhante ao dizer que:

... poder-se-iam definir os livros para crianças por essa característica: são os que ouvimos ou lemos antes de chegar à idade adulta. Não significa que, depois, não voltemos a eles; importa, porém, que o regresso se deva ao fato de terem marcado nossa formação de leitor, imprimirem-se na memória e tornarem-se referência permanente quando aludimos à literatura. (p. 11).

ampliação do número de seminários, congressos, grupos de pesquisa e cursos de pós-graduação dedicados à discussão dos problemas e propostas concernentes à literatura infantil.

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Embora esta perspectiva nos pareça das mais coerentes, devemos admitir as dificuldades que dela provêm, uma vez que é difícil definir o que as crianças leem e quando o fazem espontaneamente, por uma preferência própria e não por influência dos adultos. Não podemos desconsiderar também que a própria ‘leitura livre’ não é tão livre assim: ela se insere em um mercado editorial que oferece determinados produtos e não outros, faz parte de uma comunidade de leitores que prestigia certos livros em detrimento de outros, etc.

Por isso, apresentaremos a seguir algumas considerações sobre aspectos que podem caracterizar esta produção denominada literatura infantil, na tentativa de delimitar o uso que faremos do termo em nosso trabalho.

Lajolo e Zilberman (2006) destacam primeiramente o fator da especificidade dos meios de

circulação que caracterizam essa produção:

A literatura infantil, orientada de antemão a um consumo muito específico e que se dá sob a chancela de instituições sociais como a escola, cria problemas sérios para o teórico e o historiador que dela se aproximam munidos dos instrumentos consagrados pela teoria e pela história literárias. (...) vale notar que ela talvez se defina pela natureza peculiar de sua circulação e não por determinados procedimentos internos e estruturais alojados nas obras ditas para crianças. (p. 13).

Neste aspecto, esta vertente pode ser considerada uma produção direcionada para um consumo que se realiza principalmente através da escola – e por isso tem dela forte influência – e através dos adultos que compram livros para serem lidos para ou pelas crianças. Temos uma circulação então que em geral é fortemente marcada pelas intenções de educadores adultos e não por uma escolha feita livremente pelo seu destinatário – a criança.

Se, no que diz respeito à circulação, a literatura infantil se caracteriza pela sua vinculação com a escola, por outro lado, “à medida que os livros para crianças foram se multiplicando, eles passaram a ostentar certas feições que, pela frequência com que se fazem presentes, parecem desenhar uma segunda natureza da obra infantil.” (LAJOLO e ZILBERMAN, 2006, p. 13).

As pesquisadoras citam como exemplo a presença da ilustração, à qual podemos somar outras características também inevitavelmente presentes e que marcam aquilo que “se reconhece como livro para crianças”.

Ferreira (2006b), por exemplo, ao analisar livros infantis contemporâneos menciona características como a presença de “textos curtos”, a diluição do texto em letras grandes e

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espaçadas, o reduzido número de páginas e “a capa visualmente chamativa pelas cores e pelo papel brilhante”. Tais características, entre outras, compõem o aspecto gráfico do livro de literatura infantil (p. 144).

Por fim, temos ainda a questão dos temas e da linguagem, que compõem o aspecto textual da obra. Historicamente, as temáticas e abordagens presentes na literatura para crianças apresentaram vínculos mais ou menos próximos às propostas de formação de cada época. Desse modo, os temas em geral oscilaram entre apresentação de modelos de comportamento/punição, e a linguagem utilizada permaneceu circunscrita à utilização do modelo padrão culto.

Embora esse aspecto seja especialmente variável e múltiplo – e sobre ele discorreremos com mais atenção em seguida – podemos destacar ao menos dois elementos que permearam com constância essa produção no Brasil e que lhe conferiram certa identidade ao longo do tempo, quais sejam: a abordagem do cotidiano infantil (com a utilização de crianças como personagens centrais) e a presença do fantástico (seja através da humanização de animais e seres inanimados ou da modernização de elementos e enredos dos contos de fadas). (SERRA, 1998).