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4 “INVASÃO” OU “INTERVENÇÃO” DE 1811? QUESTÕES PARA UMA REVISÃO DO TERMO

4.1 O QUE DIZ A HISTORIOGRAFIA?

INVADIR: Entrar à força ou hostilmente em; ocupar à força; conquistar; dominar, tomar; apoderar-se violentamente de; usurpar.566

Toda historiografia, ao longo do tempo, vai sofrendo modificações mais ou menos incisivas nas formas e conceitos que são utilizados de acordo com inúmeros fatores relacionados: ao contexto no qual é produzida, à disponibilidade de seu autor no sentido de manter contatos com outros autores, ao contato deste com outras obras e/ou documentos, etc. No entanto, é interessante verificar, especialmente no campo historiográfico brasileiro, com o qual se tem maior intimidade, como muitos temas frequentemente comentados nas obras carecem de maiores análises e, talvez por isso, acabam tornando-se lugar-comum. Sendo este o caso, por exemplo, da administração da capitania do Rio Grande de São Pedro durante os processos de independência das Colônias espanholas, iniciados em 1810; e também, em efeito, da intervenção militar operada por Portugal no território espanhol da Banda Oriental do rio Uruguai, em 1811-1812.

Evidentemente que a gama de elementos é extremamente ampla, levando-se em consideração também, a produção historiográfica ser relativamente recente em relação a outros países. Além disso, também relativamente recente é a preocupação dos historiadores em procurar trabalhar com elementos que não se enquadram exatamente na moldura de serem grandes eventos, de terem sido empreendidos por personagens destacados, ou de terem “mérito” para entrar no escopo das supostas famigeradas “histórias gerais”.

Nesse sentido, e passando-se a analisar o caso da intervenção portuguesa na região então conhecida como território da Banda Oriental do rio Uruguai, em 1811, verifica-se que parte da historiografia brasileira, em especial, utiliza ainda nos dias de hoje o termo “invasão”. Esse objeto, todavia, como se afirmou anteriormente, faz parte de um daqueles casos nos quais, apenas muito recentemente, fruto do impulso dado principalmente pelos Cursos de Pós-Graduação em História disseminados pelo país, tem passado por alguma que outra análise mais detida.

Analisando-se a diferenciação desse discurso ao longo do tempo, desde os já produzidos em meados daquele período, notam-se alterações que mereceriam atenção de pesquisas mais aprofundadas, pois não demonstram claramente o que teria causado a perpetuação da utilização do termo “invasão”.

Se bem pode ser considerado como uma fonte documental, mas que não pode ser desprezada por ter servido como base para muitas bibliografias que viriam à luz naquele século XIX, Hipólito José da Costa faria no seu Correio Braziliense, ao irromper os processos que tiveram lugar em maio, em Buenos Aires, e logo depois tendo conhecimento dos ofícios trocados entre os dirigentes daquela capital, de Montevidéu e, especialmente do Rio de Janeiro, severas críticas à política bragantina. Na edição de dezembro de 1810, por exemplo, já apontava que, conforme um pronunciamento de Lord Holland567, realizado na casa dos

567 Henry Richard Vassall-Fox, terceiro barão de Holland, nasceu em 1773. Era sobrinho de um dos políticos ingleses mais proeminentes do século XVIII, Henry Fox. Ambos fizeram parte do partido whig (liberais), ocupando assentos no parlamento inglês. Durante a segunda investidura de seu tio como primeiro-ministro, em 1806, ocupou lugar no chamado Ministério de Todos os Talentos. Conforme O Panorama: jornal litterario e instructivo de Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, publicado em Lisboa entre 1837 e 1868, Lord Holland “hospedou em sua casa com fraterna e carinhosa hospitalidade vários hespanhoes illustres, que em Inglaterra se refugiaram, no tempo em que a península supportava os rigores da invasão franceza, ou quando as bárbaras perseguições de Fernando VII forçavam os súbditos a expatriar-se para não caírem nas garras do algoz.” Além disso, na década de 1830 foi um grande defensor dos liberais portugueses que ali também se refugiaram. Faleceu em 1840, em Londres. Cf. SILVA, Innocencio F. da. “Os Philo-Portuguezes” in: O PANORAMA, Jornal Litterario e Instructivo. Vol. XVI. Lisboa: Typographia Panorama, 1858. p. 14. Sobre o próprio O Panorama, ver: LIMA SANT‟ANNA, Benedita de Cássia. “O Panorama (1837-1868): História de um jornal” in: Patrimônio e Memória, v.4, n.2. Assis: UNESP-FCLAS-CEDAP, jun. 2009. p. 1-19. Disponível em:

Lords, em Londres, no dia 27 daquele mês, se tinha conhecimento que Portugal “estáva fazendo marchar tropas para invadir as possessoens Hespanholas.”568 Como monarquista, mas

profundamente reformista, como assim se mostrara, Hipólito criticava que “seria com effeito para desejar, que os limites do Brazil se encerrassem, ao norte e ao sul, dentro dos grandes rios Amazonas e da Prata; porém [...] emprehender agora tal objecto, por meio das armas, He medida da ultima imprudencia.”569 Asseverava que os motivos que o levavam a se posicionar

dessa forma diziam respeito especialmente às finanças da Colônia, à má gestão das províncias, mas também ao perigo que as ideias de liberdade poderiam acarretar.

Portanto, mesmo antes te ter ocorrido qualquer ação bélica em território vizinho, ou até mesmo na região fronteiriça dos domínios portugueses no extremo-sul, Hipólito apontava que havia indícios que se procederia a uma invasão. Isso, sem dúvida, continha um potencial indutor de expectativas, visto que, a partir do momento que seus leitores, fossem portugueses ou não, lessem tais notícias, se desencadeariam reações das mais variadas.

Também contemporâneo aos acontecimentos e, ainda mais, presente em plena Corte portuguesa, José Presas, o secretário da princesa Carlota Joaquina, faria em sua obra, já na década de 1830, fruto da tentativa de perceber o que lhe havia prometido e lhe devia a princesa, anotações acerca da movimentação na Corte do Rio de Janeiro e especialmente da própria Carlota, no sentido de auxiliar os espanhóis realistas de Montevidéu. Segundo o próprio Presas, devido ao avanço das tropas de Buenos Aires, o governo de Montevidéu não tinha visto outra saída que pedir armas e dinheiro à princesa. Do primeiro, tratou de enviar as próprias jóias ao Rio da Prata; do segundo, contudo, tivera sérias dificuldades para conseguir. Dessa forma, não havia outra maneira, relata o secretário, que tratar sobre o tema com o Conde de Linhares, que lhe incumbiu pessoalmente, e do qual resultou uma nota escrita a punho pelo próprio dom Rodrigo, na qual o ministro português apontava que:

está V.A.R. disposto, em visto do seu próprio interesse a socorrer os governadores de Montevidéu e Paraguai com todas as suas forças, pois deseja impedir que os rebeldes de Buenos Aires progridam, quer passando o Uruguai, contra Montevidéu, quer transpondo o Paraguai, contro do governador do Paraguai, e que para esse fim dará ordens ao governador e capitão-general do Rio-Grande para que forneça todo o auxílio de tropas que fôr pedido [...] sendo tropas auxiliares, sempre”570

<http://www.cedap.assis.unesp.br/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v4.n2/home4_2.html>. Acessado em: 29 de dez. 2009.

568 COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. São Paulo; Brasília: Imprensa Oficial do Estado; Correio Braziliense, 2001. v.5. p. 652. [Grifo nosso]

569 COSTA, 2001, p. 652.

Nesse mesmo tom que ressaltava o auxílio prestado face aos acontecimentos que assolavam a região, então controlada pelos realistas, Presas anotava que: “Temendo [...] que, se os revolucionários de Buenos Aires chegassem a apoderar-se de Montevidéu, pudessem com facilidade estender o sistema repulicano até seus domínios, resolveu [...] que o general Dom Diogo de Souza partisse com o exército.” O sentido expansionista e invasivo por parte de Portugal não fora tratado nas análises de Presas a partir da documentação que apontava possuir. Aproveitava, no entanto, para acusar diretamente o governo britânico, representado no Rio de Janeiro por lord Strangford, de proteger a Junta de Buenos Aires contra os interesses espanhóis.571

Ainda por uma suposta nota da princesa ao secretário particular, a qual este não anotou data alguma, Carlota asseverava veementemente, inclusive, que se cobrasse uma atitude mais pontual no sul: “Presas. – As respostas de Elio e Vigodet teem de ir pela condução mais rápida. É preciso conseguir do conde de Linhares uma ordem para Dom Diogo, para que, no caso de entrar Goyenneche em Buenos Aires, coopere com ele para acabar com estes demônios.”572

Fazendo parte de um grupo de obras historiográficas chamada por muitos de “tradicional” (que às vezes soa já como velha e ultrapassada, mas que não deixam de ser como as outras, visões de seu tempo), a obra História Geral do Brasil antes da sua separação e Independência de Portugal, de Francisco Adolfo de Varnhagen, escrita em pleno período imperial brasileiro, no século XIX, é reconhecida como “a obra de história do Brasil independente mais completa, confiável, documentada e crítica, com posições explícitas”573.

Nesta, o autor apontou o movimento militar em direção aos domínios espanhóis, em 1811, como uma “entrada”. Varnhagen, mesmo que tenha resumido em página e meia tudo que acontecera entre 1810 e 1812, anotou em nota de rodapé, referente a um trecho de um ofício enviado pelo conde de Linhares ao marquês de Casa Irujo, que ele cita na sua obra, que o movimento realizado pelas tropas de dom Diogo em território espanhol não se tratou de uma invasão, pois o governo português “não pretendia apoderar-se de parte alguma do território disputado ao rei da Espanha. Precede-a outra nota, de cujos termos nada se colige que

571 PRESAS, 1966, p. 126. 572 Idem.

573 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 23.

signifique intenções de incorporar a Banda Oriental [...]”574. Logicamente, como boa parte da

crítica ao autor já apontou, Varnhagen não escondera nas suas “verdades históricas” a sua predileção pela monarquia, por Portugal, pelo sentido de linearidade no progresso que deveria ser mantido unido a um veio colonizador lusitano.575 Apesar disso, interessante notar em Varnhagen que aquele não teria sido um movimento expansionista do ímpeto civilizatório português louvado pelo historiador, como outros o foram.

Obras que analisaram a chegada da família real no Brasil e a alteração que isso causara na Colônia americana, tidas como “clássicas”, como D. João VI no Brasil, do diplomata Oliveira Lima, publicada em 1908, mesmo centrando-se em outros elementos – e talvez se possa afirmar que Carlota Joaquina, dom João e dom Rodrigo tenham figurado como personagens principais – , muitas vezes alternaram a forma com que trataram o tema da intervenção militar portuguesa de 1811 na região da Banda Oriental do rio Uruguai. Nesta, especialmente, o autor analisou aquele fato diferentemente de uma invasão e, ao comentar sobre a intervenção que ocorreria anos depois, ou seja, em 1816, e acorde com as denúncias proferidas por Hipólito da Costa, diria que ambos movimentos teriam fins expansionistas.

Em certa altura de sua obra, por exemplo, Oliveira Lima apontava que “A intervenção

armada de Portugal deu-se por fim quando menos se podia logicamente esperar”576. O trecho

grifado denota um tom mais ameno ao tratar daquele evento, ou seja, de não ter se tratado de uma atuação no sentido de entrar em território alheio sem consentimento de seus governantes, no caso, representantes legais da Coroa espanhola, então reconhecidamente detentora daqueles domínios. Isso, sem dúvida, pode ter sido fruto da própria análise realizada sobre os documentos que podem, ainda hoje, ser encontrados no Arquivo do Itamaraty, e nos quais Oliveira Lima tinha, sem dúvida, livre acesso e enorme conhecimento de causa.

Por outro lado, o mesmo autor, como fora comentado, demonstrando concordar com as assertivas dirigidas desde Londres pelo redator do Correio Braziliense, já em 1816, afirmava logo a seguir:

574 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil antes da sua separação e Independência de Portugal. Tomo V. 8. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975. p. 114.

575 Algumas obras e artigos analisam a produção de Varnhagen, tais como: CEZAR, Temístocles. “Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência” in: Topoi, v. 8, n. 15, jul.-dez. 2007. p. 159-207. VAINFAS, Ronaldo. “Capistrano de Abreu: Capítulos de História colonial” in: MOTA, Lourença Dantas (org.). Introdução ao Brasil: um banquete no Trópico. 4.ed. São Paulo: Senac, 1999. ODALIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. Oposto às ideias deste último autor, ver: REIS, 2007. p. 23-50.