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A QUEDA REFLEXIVA E NÃO REFLEXIVA

9 OITAVO MOMENTO A FALAÇÃO E O OCULTAMENTO

9.1 A QUEDA REFLEXIVA E NÃO REFLEXIVA

Afirmamos, no início desse capítulo, que a interpretação de Aristóteles simboliza, para Heidegger, o refinamento de uma compreensão da linguagem herdada da lida cotidiana decaída. No final do capítulo afirmamos que, assim como Aristóteles, a gente interpreta os entes dessa maneira quando estão no modo da queda. Afirmamos com

isso que não há diferença entre a interpretação da gente e a de Aristóteles? Não, não foi isso que afirmamos. Afirmamos apenas que a

interpretação da gente e de Aristóteles parte de uma compreensão comum. Um, no entanto, a gente, mantém essa interpretação de maneira não reflexiva, enquanto o outro, Aristóteles, pensa sobre essa interpretação, passando a uma interpretação reflexiva. A presente seção cabe explicar a diferença entre essas duas maneiras de interpretação.

Já vimos que a queda é o esquecimento do fenômeno do mundo. Esquecimento, no entanto, não indica que o fenômeno desapareceu, não indica que ele não é mais a condição de possibilidade. Indica, apenas, que o fenômeno não está sendo levado em conta tematicamente, ou seja, não está sendo levado em cota quando de uma dada interpretação. Esse esquecimento do fenômeno do mundo ocorre porque o ser-aí está, cotidianamente, interpretando os entes intramundanos como presentes. Não podemos fornecer uma causa do porque o ser-aí salta por cima do mundo, interpretando os entes como presentes, tendo em vista que a queda é um existencial do ser-aí, e, portanto, o ser-aí é sempre decaído.

A partir dessa interpretação decaída, o ser-aí pode simplesmente utilizá-la sem mais nas suas diversas ocupações. O ser-aí pode pressupor os entes como presentes quando deles fala, faz ciência, política, economia, guerra, arte, e qualquer outra ocupação. Nesse caso, que é o caso da queda não reflexiva, a presentidade do ente não chega a ser tema de uma investigação.

Diferentemente, pelo que já vimos dos comentários de Heidegger sobre Aristóteles, ocorre com a queda reflexiva. Nesse caso, apesar de também estar pressuposta, a presentidade do ente chega a ser tema explícito de uma investigação filosófica, ontológica. Vimos acima, nas citações de Aristóteles traduzidas por Heidegger, que o ser do ente - entendido esse enquanto aquele que está sempre presente não possibilitando que outro ocupe seu lugar, não abrindo a possibilidade do erro, portanto - era tema central das investigações de Aristóteles. Sobre a possibilidade de uma ontologia provir de uma interpretação decaída, colhemos de Heidegger (2008m, p.187) o seguinte excerto:

A presença cotidiana retira a interpretação pré-ontológica de seu ser do modo de ser mais imediato do impessoal. A interpretação ontológica segue inicialmente essa tendência e entende a presença a partir do mundo, onde a encontra como ente simplesmente dado. E não somente isso; a ontologia “mais imediata” do ser-aí recebe previamente do ‘mundo’ o sentido do ser em virtude do qual esses ‘sujeitos’ se compreendem. Nesse caso, no caso da queda reflexiva, apesar da própria fala estar oculta, as formas desse ocultamente, e não o próprio ocultamente, se tornam visíveis. Isso é, a tomada de todo e qualquer ente como

presente, que é o que oculta a fala, se torna visível, mesmo que ela não

apareça como uma interpretação encobridora. Mas esse enraizamento próprio de Aristóteles é perdido. É esse desenraizamento que está combatendo Heidegger (2004, p.108) no seguinte excerto:

Em primeiro lugar deve-se estabelecer fundamentalmente que Aristóteles em nenhuma parte define “a verdade” como tal remontando-a a proposição, se não que quando relaciona em geral o Lógos (proposição) e verdade, o faz de tal modo que define a proposição mediante a verdade, ou,

mais exatamente, mediante o poder ser verdadeiro.

Não remontar a verdade à proposição, mas o contrário, significa exatamente compreender a abertura pré-predicativa do ente, isso é, a abertura primeira do ente. Aristóteles, portanto, segundo Heidegger, permanece enraizado nessa abertura, apesar de compreendê-la a partir da queda.

Já sabemos que segundo Heidegger é dessas investigações de Aristóteles que surge toda a tradição lógica. Comentamos, também, que a tradição esquece a tematização do ente enquanto presente. Nesse caso, a presentidade do ente deixa de ser, para a tradição que tem origem em Aristóteles, tema explícito de uma investigação filosófica. Curioso é o fato que acusa Heidegger nesse ponto: podemos afirmar que há aqui um duplo ocultamento.

Na queda a fala é ocultada, pois ela é interpretada a partir de uma estrutura que não é sua. O como hermenêutico se vela e a abertura primeira do ente passa a ser compreendida a partir do como apofântico. Essa compreensão da abertura primeira do ente como presente pode vir a ser tema explícito de uma investigação filosófica, nesse caso, apesar do ocultamente da fala, a estrutura do como apofântico se mostra em toda sua extensão, isso é, como determinando a abertura primeira do ente. Então, diz-se que a compreensão está enraizada no fenômeno, apesar de não alcançá-lo. A tradição que parte de Aristóteles, no entanto, segundo Heidegger, se desenraiza do fenômeno. A tradição esquece de vez a abertura primeira do ente, isso é, ela já não interpreta essa abertura nem a partir da estrutura do como hermenêutico, nem a partir da estrutura do como apofântico. A abertura primeira do ente não é interpretada de maneira nenhuma. A isso estamos chamando duplo ocultamento, primeiro o ocultamento da estrutura própria da fala, da abertura primeira do ente, e depois o ocultamento da própria abertura.

Nesse sentido, portanto, a tradição lógica que parte de Aristóteles, parte de uma interpretação reflexiva, mas acaba por deixar de ser reflexiva. Essa tradição volta a interpretar todos os entes como presentes sem uma reflexão explicita sobre a presentidade dos entes.