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Mayllon Lyggon de Sousa Oliveira14

Suely Henrique de Aquino Gomes15

Deyvisson Pereira da Costa16

Introdução

Nascemos todos ensanguentados e envoltos em um sebo branco e pegajoso (vérnix caseosa). Depois de algumas horas do trabalho de parto, estamos com o nosso destino pré-de- finido: quando se trata do sexo masculinos, deveremos ser

14 Doutorando e Mestre em comunicação pela Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FIC/UFG. E-mail: mayllon.lyggon@gmail.com 15 Professora titular da Universidade Federal de Goiás. Doutorado em

Ciências da Informação pela Universidade de Brasília (1999); mestrado em Automação de Biblioteca - University College London (1991) e gradu- ação em Biblioteconomia pela Universidade de Brasília (1987), Professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cidadania e Cultura (PPGCOM/FIC), atuando na linha de pesquisa Midia e cultura. E-mail: suelyhenriquegomes@gmail.com

16 Doutorado em Comunicação Social (UFMG), Professor Comunicação Social, habilitação Jornalismo (Campus Universitário do Araguaia/UFMT), E-mail: deyvissoncosta@yahoo.com.br

durões, terminantemente proibidos de chorar, engajarmos em determinadas relações sexuais, obrigado a ter certas posturas e adotar uma certa paleta de cores. Às meninas, cabem ser dóceis, cordatas, prestativas e cuidadoras.

É isso que a cultura faz com as pessoas, dissimula e natu- raliza tudo que é a cultural. Até o ponto de parecer a natureza. Afinal, nada em nós é puramente natural (CUCHE, 1999). O sistema de gendramento17 da nossa cultura ao se pautar no

sexo (variável biológica) do indivíduo mais que inserir esse sujeito em um campo de significado invoca performativamente esse indivíduo.

Todos nós, ao nascer ou ter o sexo biológico “descober- to” através das tecnologias médicas somos invocados per- formativamente a ter determinado tipo de comportamento ou ser um determinado tipo de indivíduo (BUTLER, 2000; PRECIADO, 2014). Essa interpelação, segundo Preciado não

17 A distinção entre gênero e sexo foi uma alternativa encontrada por Simone de Beauvoir (e uma parcela considerável das feministas/pesquisadoras) para dar um estatuto ao gênero como objeto de estudos sociais. Butler (2000), via Foucault (2012), compreende que o sexo também não é algo exclusivamente biológico. Com a História da Sexualidade: A vontade de saber pode-se perceber que inclusive o sexo (objeto de estudo na biologia) se valeu de discursos para ser edificado. Ou seja, ele não é somente biológico, mas uma construção histórica e política. Neste sentido, a dicotomia sexo/ gênero, encontra-se superada pelo estudo do gênero em Butler. Para autora, precisamos nos desvencilhar do primado do natural, do biológico. Não existiria algo somente cultural, mas sempre discursivo, histórico e político. Essas construções históricas e políticas encontram-se naturalizados. Ou seja, aquilo que é, no fundo, construção passa a ser considerado natural, é naturalizada. As construções científicas, os fatos científicos se tornam fatos sociais por esses processos de naturalização.

é só performativa, ou seja, que determina um tipo de um eu, ela é também prostética: “faz corpos” (PRECIADO, 2014, p. 130).

Esse fazer os corpos da interpelação performativa, que acontece no seio de uma cultura, não leva em consideração qualquer processo físico, psicológico ou de desejo do sujeito, ela apenas faz, ditatoriamente o que melhor lhe parece na- quele período e, por meio de diversos e tênues discursos, cria silenciamentos e exposições, como estratégias que objetivam controlar e criar sentidos e verdades, “delineado a inscrição dos discursos em formações discursivas que sustentam os saberes em circulação numa determinada época” (FOUCAULT apud

GREGOLIN, 2007, p. 17).

Mas nem sempre é assim. Todo processo de determinação de uma representação específica acontece por meio de jogo de relação de poderes, um poder que se estabelece horizontalmente no nível das pessoas e esse poder só se torna possível porque acontece também de forma produtiva e possui seus pontos de resistência (FOUCAULT, 1979). Nesse caso, podemos ver como ponto de resistência os sujeitos que não se enquadram e não seguem essas determinações da interpelação performativa.

Imersos em diagramas característicos da nossa cultura e do dispositivo18 da sexualidade que serve para determinar uma 18 Deleuze (1996), ao fazer sua própria leitura de dispositivo no trabalho de Michel Foucault, caracteriza-o como constituído por três linhas principais: as linhas de visibilidade, na qual o social dá mais ou menos luz para determi- nada área da vida; as linhas de enunciação, diretamente ligadas às linhas de visibilidade, onde há a criação discursiva a respeito de algo, pautado no dito e no não dito; as linhas de força/poder que se caracterizam por manter uma determinada ordem, por último e é o que seria a novidade do trabalho de Foucault existe a linha de subjetividade, na qual o indivíduo através da sua

ordem social, sujeitos encontram e/ou criam formas próprias de vivenciar, transformar e construir seus próprios corpos. Seja através da expressão de um desejo desviante, como os homossexuais, bissexuais e lésbicas; seja através de um processo próprio de construção do corpo como as travestis e transexuais; ou ainda através de performances artísticas como o caso das

drags queens ou drag kings. Isso sem contar as várias outras facetas

que poderíamos colocar aqui como os intersexuais, pansexuais e afins. Esses sujeitos podem todos ser caracterizados como

queers, que acabou se tornando um termo guarda-chuva para

englobar as diversas possibilidades das nossas sexualidades que vão além da tecnologia social heteronomativa19.

O movimento queer20 tem figurado como um importante

elemento de mudança na cultura política, visto que seus par- ticipantes estão se consolidando cada vez mais como atores sociais de influência.

Historicamente, os queers tiveram sua reputação manchada

ou se resumiram a ser objeto de estudo nos discursos sociais e

subjetividade e processos subjetivantes próprios conseguem subverter esse sistema de controle, algo que é possibilitado pelo próprio dispositivo. 19 Conjunto de instituições tanto linguísticas como médicas ou domésticas que

produzem constantemente corpos-homem ou corpos-mulher (PRECIADO, 2014, p. 28).

20 “Algumas vezes o termo queer é utilizado como um termo síntese para se referir, de forma conjunta, a gays e lésbicas. Esse uso é, no entanto, pouco sugestivo das implicações políticas envolvidas na eleição do termo, feita por parte do movimento homossexual, exatamente para marcar (e distinguir) sua posição não assimilacionista e não-normativa. Deve ser registrado, ainda, que a preferência por queer representa, pelo menos na ótica de alguns, uma rejeição ao caráter médico que estaria implícito na expressão homossexual” (LOURO, 2001, p. 546).

modelos de representação conforme as necessidades ideológi- cas da classe dominante. Esses indivíduos passaram a debater com as autoridades políticas e intelectuais sobre seus direitos, principalmente direitos básicos, como o de serem respeitados, como indivíduos de características e desejos únicos. Neste percurso de apropriação do espaço público há uma negativa da heterorrepresentação que, até outrora, era hegemônica. O fato desses sujeitos se apropriarem deste espaço dá corpus a uma série

de indagações sobre a reelaboração simbólica, a ressonância da heterorrepresentatividade e a possível negação deste modelo. Para que o espaço imagético, cultural e de produção de sentido gere entendimento é necessário que essa produção de sentido esteja inserida em determinado contexto histórico e que esteja presente em um mapa de sentido da qual fazem parte os indivíduos dessa cultura. Ou seja, uma estrutura imaginativa de entendimento do real, cuja linguagem é carregada de elementos simbólicos que são compreendidos por diferentes grupos.

É preciso entender a sexualidade aqui como um “fenômeno do supersaber [da sexualidade] (...) no plano social, no plano cul- tural, em formas teóricas ou simplificadas” ao passo que no plano individual há um “desconhecimento pelo sujeito do seu próprio desejo” (FOUCAULT, 2006, p. 59). Embora esses fenômenos pareçam contraditórios eles coexistem (e até se relacionam!) dada à constituição cultural e social, sobretudo no ocidente.

A sexualidade passa a ter mais espaço, aplicabilidade e es- tudo no âmbito público do que em estado privado, o que não acontecia antes devido, em partes, pelos elementos e processos culturais das sociedades ocidentais, governadas e elaboradas através das concepções da moral burguesa e do cristianismo.

Através do conhecimento que os queers passaram a ter

das próprias sexualidades, com os movimentos de libertação e por meio das representações criadas – por e para eles – há a criação de uma identidade21, que deve ser vista como “cla-

ramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546). Os sujeitos até então marginais, vislumbram na Teoria Queer, uma tentativa de existir

socialmente, através da ocupação e visibilidade nos espaços públicos e políticos.

Inicialmente utilizado como um xingamento – tal como “bicha”, “viado”, “sapatão” ou até “excêntrico” no Brasil – o termo Queer foi apropriado por esses movimentos pra criticar

a “heteronormatividade compulsória da sociedade”, nesse sentido, os indivíduos buscam e criam debates em oposição e contestação aos binarismos vigentes no que tange a gênero e sexualidade, propondo então “uma compreensão de uma estilística de si a partir de um movimento pós-identitário”, no qual as identidades não são (e não precisam) ser fixas, mas antes são celebrações móveis (NEPOMUCENO, 2009).

21 Ao mencionar que há uma verdadeira explosão discursiva sobre o conceito de identidade, Stuart Hall (2012) vai recuperar o que Derrida menciona sobre alguns conceitos que estão sob rasura e a identidade seria um desses conceitos. Para o autor, “o sinal de ‘rasura’ (x) indica que eles não servem mais – não são mais “bons para pensar” – em sua forma original, não-reconstruída. Mas uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a pensar com eles – embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados (HALL, 2012, p. 104)

Nessa perspectiva intransigente de utilizar-se do que te- órica e socialmente os transformariam em acusados, doentes e insultados, esse movimento busca, ainda, segundo Guacira Louro (2006),

Uma nova posição de sujeito ou um lugar social estabele- cido, queer indica um movimento, uma inclinação. Supõe a não-acomodação, admite a ambiguidade, o não lugar, o trânsito, o estar-entre. Portanto, mais do que uma identidade, queer sinaliza uma disposição ou um modo de ser e de viver (LOURO, 2008, p. 108, grifo nosso).