• Nenhum resultado encontrado

4. A LIBERDADE NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

4.1. DISCRICIONARIEDADE: A CONSEQUENTE NECESSIDADE DE REVISÃO CONCEITUAL

4.1.2. A questão do mérito

Em meio ao tratado, relevante ainda se examinar o mérito do ato administrativo, ou seja, a conveniência e oportunidade dos meios utilizados para o alcance da finalidade pública246. Trata-se do capo de liberdade que efetivamente remanesce da norma habilitadora, para que a Administração escolha entre duas ou mais soluções, todas juridicamente válidas e adequadas247.

No âmbito da vinculação, o juízo de mérito do ato é inteiramente realizado pelo Legislativo, que, analisando a necessidade pública, realiza a escolha dos meios idôneos a satisfazê-la248. É, portanto, na discricionariedade que o mérito será sopesado pela Administração, sendo este o que aqui interessa.

Embora o mérito mereça um valor próprio e autônomo249, não há como escapar, em sua delimitação conceitual, da análise da possibilidade de seu controle jurisdicional ou não. Isso porque, o entendimento clássico se cunha no sentido de que é vedado ao Poder Judiciário apreciar, no exercício do controle jurisdicional –

242

Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso... p. 203.

243

MONCADA, Luís S. Cabral de. Autoridade e Liberdade... p. 544.

244

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios... p. 219.

245 Segundo Luís S. Cabral de Moncada, “a liberdade administrativa assim concebida, não prejudica

os mais exigentes quadros do Estado-de-Direito democrático da actualidade nem as garantias contenciosas e até graciosas do cidadão” (Autoridade e Liberdade... p. 562).

246

Vide DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa... p. 129-131.

247

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle... p. 38.

248

EHRARHDT, Rogério Guilherme Soares. Interesse Público... p. 207-208.

249

essa delimitação é necessária, pois o Judiciário também atua como Administração, e poderá controlar seus atos administrativos em exercício de controle interno –, o mérito dos atos administrativos, sendo-lhe possível conhecer apenas das questões relativas à legalidade250. Contudo, quando este entendimento começou a ser difundido, compreendia-se a legalidade de forma estrita, compreensão esta que, como visto, vai cedendo espaço para uma compreensão mais ampla, a qual se pode denominar “juridicidade”.

A ampliação do âmbito de vinculação jurídica do procedimento administrativo pode gerar compreensões diversas, de forma que alguns poderão concluir que o mérito do ato administrativo também sofrerá vinculações jurídicas e, portanto, também será passível de controle, inclusive jurisdicional251. Assim propor é romper completamente com o entendimento clássico de que o mérito do ato administrativo representa uma reserva administrativa na conduta do agente, no qual poderá fazer avaliações de conveniência e oportunidade, sem vinculações jurídica e imune ao controle dos magistrados.

Trata-se de uma questão conceitual que encerra uma conclusão de que haverá uma parte do mérito administrativo vinculada e outra não vinculada, ou seja, uma parcela que é judicializável e uma que não, o que pode gerar confusão aos aplicadores do Direito Administrativo, promovendo, ainda, uma possível confusão entre mérito e discricionariedade – esta última, como visto, uma margem decisória, que já não mais existe de forma plena.

Entende-se, aqui, preferível continuar-se encarando o mérito como a parcela do ato administrativa destituída de vínculos jurídicos, ou seja, a margem apreciativa do ato administrativo não alcançada pelos limites impostos pelo ordenamento jurídico. O mérito continuaria a comportar, portanto, o processo valorativo de complementação e definição do conteúdo do ato administrativo, a partir de critérios não positivados, ou seja, não parametrizados em regras ou princípios jurídicos252. Essa conceituação, ao revés de encerrar uma confusão entre os conceitos de discricionariedade e mérito, a destaca, revelando o mérito como o “núcleo político”

250

Por todos: FAGUNDES, Miguel Seabra. O Contrôle... p. 148.

251 Assim entende Edimur Ferreira de Faria, como se nota, por exemplo, quando o autor afirma que “a

faixa discricionária tornar-se-á estreita, como quer o Direito na plena democracia, e facilita a verificação da legalidade do ato decorrente do poder discricionário, pelo Judiciário, sem dificuldades, inclusive quanto ao mérito, para se constatar a veracidade da conveniência ou oportunidade alegada pelo autor do ato com o fito de identificar se a conduta da autoridade está em conformidade com a lei” (Controle do Mérito... p. 134).

252

MORAES, Germana Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2004. p. 50.

da discricionariedade, contribuindo, ainda, na diferenciação do que poderá ser controlado jurisdicionalmente e o que não poderá253.

É bem verdade que, como dito acima, por vezes a confluência de normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto pode acarretar, neste particular, à redução das escolhas juridicamente válidas a apenas uma. Entretanto, na maior parte das vezes, mesmo com a influência de toda a juridicidade, haverá mais do que uma decisão válida a ser adotada pela Administração Pública.

Restará, portanto, com frequência, uma zona de incerteza sobre a decisão justa, que deverá ser respeitado254. Nessa situação reside o mérito administrativo autêntico, na qual há uma diversidade de decisões legitimas a serem adotas, decisões estas que competem, por sua essência, à Administração Pública. Trata-se de espaço residual da subjetividade na apreciação do justo, que persiste mesmo depois de se considerar todas as possíveis regras e circunstâncias255.

Como ordinariamente não será possível encontrar uma única solução para a aplicação da norma, é necessário aceitar-se a existência de mais de uma decisão juridicamente possível para o caso concreto. As diferentes respostas possíveis, mesmo que opostas, possuem o mesmo valor, sendo todas passíveis de adoção pelo agente público e fungíveis entre si256. Com efeito, no âmbito do mérito, todas as respostas devem ser entendidas como “corretas” do ponto de vista jurídico, ainda que por compreensões metajurídicas um ou mais indivíduo possa não a considerar a melhor resposta.

A escolha da Administração não estará livre de críticas; ao contrário, não raramente o próprio agente que a exerceu manterá em seu íntimo dúvidas se a sua escolha foi, de fato, a melhor257. Trata-se de uma realidade cuja aceitação pode ser tormentosa, sobretudo àqueles que creem que, por estarem obrigados a realizar a melhor escolha, os agentes administrativos nunca terão, na concretização fática do comando normativo, um espaço valorativo ou de escolha. Nem sempre o Direito será capaz de determinar uma única decisão correta para o caso concreto de forma que o agente ou órgão colegiado, ainda que guiado por um dever de melhor realizar o interesse público, terá que fazer, com certa participação criativa, a escolha que

253

Em sentido semelhante: MORAES, Germana Oliveira. Controle Jurisdicional... 43.

254 Engisch Karl assim se posiciona, utilizando, entretanto, não a denominação de “mérito”, mas de

“espaço de livre apreciação”, o qual, segundo seu entendimento, seria um mal que se tem que aceitar (Introdução ao Pensamento... p. 220).

255

KARL, Engisch. Introdução ao Pensamento... p. 220.

256

KARL, Engisch. Introdução ao Pensamento... p. 249-250.

257

julgue mais conveniente e oportuna. Ainda porque, na grande maioria dos casos, a situação concreta propiciará a existência de uma pluralidade de interesses públicos258.

A conclusão de que a discricionariedade não é plena não implica, portanto, em afirmar que não há mais um juízo de conveniência e oportunidade na prática de atos administrativos. O mérito administrativo persiste, embora com o espaço reduzido259, pois, como visto, ainda quando não houver uma vinculação a regras, com a cessão normativa de liberdade à apreciação da Administração Pública, haverá vinculações da juridicidade, minimamente, pelos princípios jurídicos.

A análise das circunstâncias dos casos concretos e adoção de decisões para satisfação do bem-estar da coletividade, do interesse público, pertencem a um espaço da atividade estatal reservado à função administrativa. Em meio às decisões legitimas, encontra-se, pois, o mérito administrativo, de reserva da administração260. Contudo, se a decisão é adotada fora do fecho de decisões permitidas pelo Direito, essa decisão contraria a legalidade, ou, se assim preferir-se, a juridicidade, merecendo, portanto, controle261.