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3. FAMÍLIAS EM FOCO

3.3 A questão da pobreza

As famílias contemporâneas têm enfrentado graves problemas relacionados à pobreza. Problemas constituídos historicamente, socialmente, economicamente e culturalmente que recaem sobre a atual situação estrutural do Brasil.

Sarti (2009) menciona que a forma de avaliar a pobreza no Brasil sofreu mudanças ao longo dos anos favorecendo a uma visão negativa sobre o pobre. Esta visão concede mais importância à pobreza propriamente dita do que à pessoa pobre. Conforme a autora, a visão negativista do pobre disseminou-se nos anos 60 com a anulação do pobre como sujeito, cujo critério de avaliação da pobreza passou da análise de carências materiais para ser avistada como ausência no reconhecimento dos direitos de cidadania. Quanto a isso, Sen (2010) pontua que a negação dos direitos civis mediante os sistemas políticos autoritários, estimula o crescimento econômico pautado no interesse de poucos. Isso acaba contribuindo para o consubstanciado esvaziamento da cidadania social e a aceitação da pobreza.

Nos anos 70, os pobres passaram a ser identificados como sendo os trabalhadores, definidos a partir de seu lugar na produção tanto no trabalho formal como informal. Eram avistados em sua funcionalidade como força de trabalho produtivo e olhados sob a perspectiva

da condição de dominados. Sob o ponto de vista produtivista, “os pobres foram pensados como se sua identidade social fosse construída exclusivamente a partir de sua determinação de classe [...] como se suas ações fossem ou devessem ser motivadas pelo interesse em satisfazer suas necessidades materiais” (SARTI, 2009, p.39). Nesse aspecto, à família foi concedido o título reducionista de unidade de consumo, posto que, nos anos 70, a mensuração da pobreza pautava-se na estrutura de consumo (ROCHA, 2012) da unidade familiar. A família se tornou a principal responsável pela sobrevivência material dos seus membros cuja pobreza se estendia naquelas cujos indivíduos não “queriam” trabalhar.

Nos anos 80, comenta Sarti (2009, p.41-42):

A delimitação da pobreza permanece uma questão relativa à sobrevivência material, definida a partir de dados socioeconômicos, e o eixo da análise volta-se para os arranjos familiares [...] feitos para responder às adversidades do mercado de trabalho nas diferentes conjunturas econômicas.

É anunciado um prenúncio da responsabilização familiar acerca da sobrevivência dos seus membros e da culpabilização da família pobre por não portar meios que supram as necessidades familiares, reduzindo a responsabilidade do Estado em conceder estruturas de acesso ao mercado de trabalho, contexto característico do modelo neoliberal que pautado numa lógica de acumulação de riquezas, traz como consequência à informalidade do emprego, o subemprego e o desemprego.

Atualmente no Brasil existem diversos métodos de mensuração da pobreza. Acorssi (2011) aponta para duas principais perspectivas: a primeira seria a pobreza unidimensional ou pobreza absoluta que considera apenas um fator, ou uma análise baseada nas necessidades nutricionais ou na abordagem monetária; a segunda é classificada como pobreza multidimensional (SEN, 2010) ou pobreza relativa, cuja pobreza é observada em sua complexidade e relacionada com as necessidades básicas do indivíduo, sendo necessário um mínimo de condições para o consumo privado e também acesso aos serviços públicos tais como saúde, educação, entre outros.

Na linha de pobreza absoluta, há a perspectiva baseada em cesta de consumo sendo consideradas as necessidades mínimas calóricas ou necessidades calóricas insatisfeitas, que se relacionam de acordo com Accorssi, Scarparo e Guareschi (2012), às questões de sobrevivência física. Nesse sentido, trata-se de definir a composição da cesta de alimentos e a escolha dos preços adequados por produto (ROCHA, 2003). De forma mais sistematizada, Loureiro, Suliano e Oliveira (2010) também apontam que no método de análise baseado no consumo mínimo de calorias há quatro etapas:

O primeiro estabelece o número de calorias mínimas que um indivíduo necessita para ter uma vida produtiva, algo entorno de 2000 a 2500 calorias por dia. Em seguida, é estimado o custo para adquirir essas calorias. A próxima etapa consiste em estabelecer uma cesta mínima de consumo por região. Por fim, compara-se o valor monetário dessa cesta de alimentos com a renda familiar per capita e, a partir disso, classifica como indigentes (ou ainda miseráveis ou extremamente pobres) aquelas pessoas cuja renda é insuficiente para comprar a quantidade estipulada de calorias aos preços vigentes (p. 7).

Esta perspectiva unidimensional recebe críticas devido ao reducionismo biológico-alimentar e por não haver critérios absolutos que definam a quantidade de calorias e nutrientes que o indivíduo necessita consumir por depender de variáveis como, por exemplo, as atividades realizadas, condições climáticas, o contexto do lugar, etc. (ACCORSSI, SCARPARO e GUARESCHI, 2012). Outra crítica apresentada por Rocha (2003) é o problema de avaliar a pobreza nos países ricos a partir da necessidade de consumo, no que concerne à cesta alimentar básica, uma vez que essa dimensão se torna irrelevante, pois nos países desenvolvidos o mínimo vital já é garantido à população.

Outra linha de pobreza que podemos observar no Brasil, se respalda na determinação do Banco Mundial onde o sujeito é classificado em situação de extrema pobreza quando sua renda é de US$ 1,25 ao dia e classificado em situação de pobreza quando sua renda diária é de US$ 2,00 (PNUD, 2010). Vale ressaltar que esse tipo de classificação é padronizado mundialmente, sendo que em cada país existem diferenças no valor do custo de vida, e o número de pessoas consideradas fora ou dentro da linha de pobreza pode ser apenas reflexo deste fator, além disso, nessa perspectiva a análise da pobreza fica restrita à dependência do câmbio do dólar e, portanto, torna-se passível de oscilação.

Na linha de análise da pobreza por fração do salário mínimo é estabelecido que um indivíduo seja considerado pobre se possuir renda per capita igual ou inferior a meio salário mínimo e indigente, ou seja, em extrema pobreza, se possuir renda de ¼ de salário mínimo por mês (LOUREIRO, SULIANO, OLIVEIRA, 2010). Esses critérios são utilizados como método de elegibilidade para programas governamentais voltados para população vulnerável, como por exemplo, o Programa de transferência de renda Bolsa Família16 (PBF).

Se analisar o nível de pobreza dos participantes a partir da perspectiva monetária, têm-se o seguinte panorama:

16 Em 2014 o governo federal estabeleceu uma linha de extrema pobreza no valor de R$77,00 per capita e uma

linha de pobreza no valor de R$ 154,00. A família que obtiver rendimento mensal menor ou igual ao valor de R$77,00 é considerado como extremamente pobre e a que obtiver um rendimento menor ou igual a R$154,00, é classificada como pobre. Esses critérios de avaliação da pobreza são cruciais para eleger os beneficiários do PBF.

Figura 4 – Gráfico de renda pessoal Figura 5 – Gráfico da renda familiar

Fonte: elaboração da autora. Fonte: elaboração da autora.

De acordo com o gráfico de renda pessoal, 23% dos entrevistados estão em situação de extrema pobreza e 20% em situação de pobreza monetária, caso se tratassem de famílias unipessoais. Entretanto, para avaliar a condição de pobreza da família que garante o direito ao beneficio do PBF é necessário investigar a renda per capita familiar. Desse modo, conforme a figura 2, 2% afirmaram ser desprovidos de renda, 18% responderam que a renda da família é até meio salário mínimo17 e a maioria, 48%, apontaram que sua família recebe até um salário mínimo, um contingente considerado alto tendo em vista que o valor apontado é dividido entre o número de pessoas residentes em um mesmo local. Nesse caso, se uma família é composta por seis membros e a renda é de um salário mínimo, seriam classificados como estando em situação de pobreza.

Vale salientar que há a possibilidade de que os respondentes do questionário tenham considerado o valor recebido pelo PBF como renda própria, exercendo influência sobre sua percepção de renda. Acrescenta-se ainda que 82% das famílias entrevistadas são beneficiárias do PBF, 8% recebem Benefício de Prestação Continuada e apenas 4% não recebem benefício de Programas de Transferência de Renda.

Na linha da pobreza relativa, a pobreza é observada como fenômeno multifacetado sendo relacionada às necessidades básicas (habitação, vestuário, alimentação, etc.) do indivíduo. De acordo com Rocha (2003), a abordagem das necessidades básicas se difere da linha de pobreza absoluta, ou unidimensional, em três aspectos: por não levar em consideração a renda como sendo o único indicador da pobreza, passando a adotar parâmetros que reflitam resultados efetivos em termos de qualidade de vida; por avaliar a sociedade como um todo e não apenas um segmento da população como os que são considerados

17 O salário mínimo no período em que foi aplicado o questionário era equivalente ao valor de R$ 788,00.

23% 20% 30%

25% 2%

Renda pessoal De nenhuma renda até R$ 77,00 De R$ 77,01 a R$ 154,00 De R$ 154,01 a R$ 394,00 Mais de R$ 394,00 Não respondeu 18% 48% 30% 0% 2% 2%

Renda da família Até meio salário mínimo (R$ 394,00)

Até um salário mínimo (R$ 788,00)

De um a dois salários mínimos (de R$ 788,00 a R$ 1576,00) De dois a cinco salários mínimos (R$ 1576,00 até R$ 3940,00)

monetariamente pobres, por exemplo. Por último, as necessidades básicas, dão ênfase ao caráter multidimensional da pobreza e ao reconhecimento de que as diversas formas de privação estão intrinsecamente relacionadas.

Nessa perspectiva, “redireciona-se o indicador da pobreza dos meios (são pobres os que têm uma renda pessoal ou familiar abaixo de um determinado nível) para os fins (são pobres os que não possuem as habilidades e oportunidades mínimas para viver em um nível aceitável)” (CIDADE, 2012). Anuncia-se assim um conceito de pobreza não limitada às questões monetárias, apesar de não desconsiderar essa dimensão, mas que é observada enquanto privação de capacidades básicas, enquanto privação de viver uma boa vida, condicionada pelas oportunidades sociais (saúde e educação), políticas (liberdade de participação ou discordância política) e econômicas (ocupação) (SEN, 2004).

Sobre a perspectiva multidimensional, há a Abordagem das Capacitações desenvolvida por Sen (2010, p. 29), que trata a pobreza de uma maneira complexa e multifacetada, identificando-a como uma realidade de privação de capacitações básicas, cujas formas de privações são observadas na “fome coletiva, na subnutrição, no pouco acesso a serviços de saúde, saneamento básico, água tratada, educação funcional, emprego remunerado ou segurança econômica e social, e na negação da liberdade política e dos direitos civis básicos”. Essa abordagem “concebe o ser humano como dotado de potencialidades que são contextuais, sociais, culturais e pessoais” (MOURA JR., CIDADE, XIMENES, SARRIERA, 2014, p. 345).

As capacidades são as habilidades básicas de que as pessoas necessitam para seu funcionamento nas suas distintas dimensões da vida. Implica no exercício pleno da liberdade das pessoas para alcançar seus objetivos e levar o tipo de vida que de fato valorizam. No entanto, o desenvolvimento dos funcionamentos dos indivíduos, ou seja, o exercício de suas capacidades depende das oportunidades políticas, sociais e econômicas que o indivíduo tem para alcançar um nível de vida minimamente adequado. O indivíduo é considerado em sua condição de agente (SEN, 2010) participante das ações políticas econômicas e sociais, contribuindo para a transformação da sua realidade atendendo aos interesses de uma população supostamente inerte.

Nesse sentido, as condições favoráveis de funcionamentos como estar bem nutrido, estar bem de saúde sem a eminência de doenças e de morte precoce, estar abrigado, até mesmo de ser feliz, ter autorrespeito e participar de uma convivência comunitária (PICOLOTTO, 2006), são otimizados pelas oportunidades vivenciadas por meio de políticas públicas, por exemplo. A questão é se os pobres tem acesso efetivo a essas políticas

recebendo oportunidades justas que permitam alavancar escolhas que favorecem seus modos de funcionamento.

O enfoque multidimensional da pobreza passa a considerar as características sociais, políticas, econômicas e culturais que influenciam o desenvolvimento humano. Dessa forma, esta categoria aponta a necessidade de compreensão deste fenômeno na realidade psíquica, envolvendo a área simbólica, a política e o concreto vivido por sujeitos em condição de pobreza (CIDADE, MOURA Jr., XIMENES, 2012), por isso a importância de dar voz àqueles que vivenciam a situação de pobreza.

Neste tópico, discutiu-se sobre as perspectivas de pobreza no Brasil a partir de uma breve construção histórica, o que repercutiu diretamente na caracterização do sujeito pobre ao longo dos anos. As concepções de pobreza nos anos 60, 70 e 80, levam a uma visão reducionista do sujeito pobre responsabilizando-o plenamente sob sua condição de pobreza, além de reduzir sobremaneira a responsabilidade do Estado em conceder estruturas que garantam uma vida minimamente adequada a esse indivíduo. Apenas mais recentemente é que se tem focado o olhar para a pobreza em uma perspectiva multidimensional, cujo pobre é avistado em sua condição de agente que contribui para a transformação da sua realidade, sendo imprescindíveis nesse processo as estruturas de oportunidades garantidas pelo Estado. A percepção das potencialidades do sujeito pobre enquanto autor de sua história e agente transformador é o que se defende neste estudo.