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M uma visão mais tradicional, como já comentado, o sistema imune é responsável por proteger o corpo de seus invasores, sem lesar o orga- nismo no entanto. Nessa visão, cabe ao sistema imune a responsabilidade de discriminar o próprio (self), o organismo, e o não-próprio (nonself), o invasor, o estranho. Como o sistema imune em alguns momentos ataca células próprias e é tolerante para vários organismos, essa visão foi adaptada: o sistema imune teria responsabilidade discriminar entre algum próprio e algum não-próprio.

Para Ruslan Medzhitov e Charles Janeway Jr., o sistema imune inato de- senvolveu várias estratégias para a discriminação “próprio/não-próprio”. Como exposto em (MEDZHITOV; JANEWAY JR., 2002, p.298),

O sistema imune inato dos animais vertebrados utiliza três estratégias de reconhecimento imune que podem ser descritas em termos de reconheci- mento de “não-próprio microbial”, “ausência de próprio” e “próprio indu- zido ou alterado”.

De acordo com esses pesquisadores, a base para o reconhecimento micro- biano reside na capacidade do organismo em reconhecer produtos conserva- dos do metabolismo desses microorganismos, os PAMPs, permitindo a distin- ção entre o próprio não-infeccioso e o não-próprio infeccioso. O reconheci- mento da ausência de próprio residiria na detecção de marcadores do próprio normal, especialmente o MHC. Por fim, o reconhecimento de próprio indu- zido ou alterado seria baseado na detecção de marcadores de próprio anor- mal, induzidos por infecção e transformação celular. Em síntese, esse modelo apóia-se no sistema imune inato para distinguir entre próprio e não-próprio.

Entretanto, como apontado por Matzinger, em (MATZINGER, 2002), esse modelo criou novos problemas ao resolver antigos, não conseguindo explicar, entre outros aspectos, porque vírus estimulam imunidade, porque transplan- tes são rejeitados e o que induz autominunidade. Assim, para resolver alguns desses problemas, o modelo original de Medzhitov e Janeway foi alterado em diversos pontos, mas ainda não consegue resolver algumas das questões fun- damentais em Imunologia.

Por sua vez, Polly Matzinger propõe uma visão do sistema imune em uma outra camada: para essa pesquisadora, o sistema imune distinguiria não en- tre próprio e não-próprio, mas entre perigo e ausência de perigo. Esse modelo, denominado Modelo do Perigo (Danger Model), encontra-se descrito de forma

sintética em (MATZINGER, 2001) e (MATZINGER, 2002) e de forma bastante abrangente em (MATZINGER,1994). Como exposto em (MATZINGER,1994), o sistema imune discriminaria entre algum próprio de algum não-próprio, exis- tindo quatro classes de estruturas reconhecidas por ele:

Próprio visível: estruturas para as quais o sistema imune é tolerante;

Não-próprio visível: estruturas para as quais o sistema imune responde nor- malmente;

Próprio invisível: estruturas do organismo para as quais o sistema imune não é tolerante, mas para as quais ele normalmente não responde;

Estruturas não imunogênicas: que o sistema imune simplesmente ignora, como o silicone.

Em (MATZINGER, 1994), é feita ainda a distinção entre ativação e enga- tilhamento. A ativação ocorreria com células em repouso, induzindo uma mudança de estado, requerendo co-estimulação. O engatilhamento, por sua vez, seria a indução de células efetoras a dispararem seus grânulos contra determinados alvos, ou indução de células auxiliares para envio de sinais de ativação para células B e macrófagos. Apesar desses dois processos serem conseqüências de algum evento externo, existe uma diferença no processo de sinalização de células em repouso ou efetoras. Uma visão geral desse processo pode ser visualizada no algoritmo apresentado na Figura4.4.

Como observado em (MATZINGER, 1994), as regras apresentadas na Fi- gura 4.4 são uma grande simplificação do processo, mas podem ser usadas para descrever um sistema imune. Recomenda-se a leitura desse texto para maior detalhamento do algoritmo apresentado. Cabe destacar que os mode- los mais recentes utilizam o princípio de tolerância, ao invés de morte, para o caso em que células recebam o sinal 1, antigênico, na ausência do sinal 2, co-estimulatório. É importante observar aqui que não foi possível verificar, ainda, na literatura a existência de implementações baseadas no algoritmo apresentado na Figura4.4, que foi utilizado por Matzinger para explanação de sua teoria. Isso ocorre apesar de existirem diversas aplicações computacionais baseadas no Modelo do Perigo, o que será visto no Capítulo5.

Como apontado em (GREENSMITH; AICKELIN; CAYZER, 2005), o Modelo do Perigo sustenta que o funcionamento do sistema imune é guiado pela detec- ção de sinais endógenos, ao invés de exógenos. Os sinais endógenos surgiriam como resultado de dano ou stress nos tecidos celulares, e as células dendrí- ticas possuem um papel de destaque nesse modelo, por sua capacidade de combinar sinais endógenos e exógenos. Isso pode ser verificado claramente na Figura4.5, extraída de (MATZINGER, 2001).

Pode ser inferido da Figura 4.5, que um elemento central no Modelo do Perigo é a morte celular, o que é apontado em (GREENSMITH; AICKELIN; CAYZER, 2005) e outros textos sobre essa teoria. A morte pré-programada da célula, apoptose é parte do ciclo vital da célula e, sem ela, não seria possível

o controle do crescimento do corpo. No início da apoptose, todo o material do núcleo é fragmentado de forma ordenada, enzimas digestivas são secretadas

I. Regras para linfócitos A. Regras para timócitos

1. Morra se receber o sinal um (o recebido pelo receptor linfocitário) na ausência do sinal dois.

2. Seja incapaz de receber sinal dois de qualquer fonte. B. Regras para células T virgens

1. Morra se receber o sinal um na ausência do sinal dois.

2. Responda para segundos sinais apenas se forem disparados por APCs profissionais (e.g.: células dendríticas).

3. Circule de nódulo linfático a nódulo linfático ou para o baço.

C. Regras para células T maduras

1. Morra se receber o sinal um na ausência do sinal dois. 2. Seja capaz de responder a segundos sinais disparados por

células B e macrófagos, além de células dendríticas. 3. Circule nos tecidos, bem como de nódulo linfático a

nódulo linfático. D. Regras para células B

1. Morra se receber o sinal um na ausência do sinal dois. 2. Receba sinal dois apenas de células T experientes ou

efetoras.

E. Regras para células T ou B efetoras

1. Ignore sinal dois. Execute sua função quando receber sinal um, independente da ausência ou presença do sinal dois.

2. Morra ou reverta para um estado de repouso após um período relativamente razoável de tempo.

II. Regras para APCs

A. Regras para APCs profissionais

1. Torne-se ativada na presença de destruição de tecidos. 2. Expresse sinais co-estimulatórios que podem ser recebidos

por células T auxiliares virgens ou experientes.

3. Regule sinais co-estimulatórios para precursores de CTL, ao receber sinais adequados advindos de células T auxiliares. 4. Capture antígenos aleatoriamente do ambiente e apresente-os

para células T. B. Regras para células B

1. Expresse sinais co-estimulatórios que podem ser recebidos por células T maduras, mas não por células T virgens. 2. Capture antígenos de seu ambiente, não aleatoriamente,

ligando-os a seu receptor, concentre-os e apresente-os para células T.

Figura 4.4: Algoritmo de Funcionamento do Sistema Imune, de acordo com o Modelo do Perigo – Fonte: (MATZINGER,1994)

internamente e novas moléculas são expressas na superfície celular. Dessa maneira, a célula é ingerida por macrófagos, com a membrana ainda intacta. Acredita-se que as citocinas resultantes da apoptose sejam anti-inflamatórias.

Figura 4.5: Sinais no Modelo do Perigo – Fonte: (MATZINGER,2001)

Por outro lado, a necrose consiste na morte celular induzida por stress (infecção, dano, radiação, etc.). Nesse caso, não existe um cuidado no empa- cotamento dos conteúdos celulares internos ou preservação da membrana. A célula acaba perdendo a integridade da membrana e explode, liberando seu conteúdo, incluindo citocinas pró-inflamatórias. De acordo com o Modelo do Perigo, a diferença entre essas duas formas de morte celular são cruciais para destacar se um elemento exógeno deve ou não ser abordado pelo sistema imune, mais que o reconhecimento de PAMPs.

Partindo-se de uma visão mais abrangente do sistema imune, é possível destacar inúmeros méritos no Modelo do Perigo. Ele retira o foco dos elemen- tos exógenos ao organismo, dando ao próprio organismo a responsabilidade por seu controle e ativação. Entretanto, ainda continua, mesmo que disfar- çada, a visão do sistema imune como um mecanismo de defesa: se agora não contra patógenos, mas contra o perigo, predominando uma visão ma- quineísta de seu funcionamento. Além disso, como apontado em (AICKELIN; DASGUPTA,2006), a teoria não é completa, e existem dúvidas sobre seu com- portamento e estrutura. Entre outros pontos, a natureza de um sinal de perigo não é clara, e a teoria compartilha problemas comuns a modelos baseados em discriminação “próprio × não-próprio”.

Partindo de uma visão mais abrangente, é possível apontar que no sistema imune predomina mais o diálogo entre seus componentes que a discrimina- ção “próprio × não-próprio” ou entre “perigo × ausência de perigo”. Como ar- gumentos para essa proposição, o imunologista Irun R. Cohen apresenta um conjunto de observações em (COHEN, 2000):

1. É alto o grau de envolvimento do sistema imune no processo de ma- nutenção do corpo (reparo de tecidos, regeneração de células, etc.), que depende em muito de processos inflamatórios regulados.

2. Células T autoimunes contribuem para a manutenção do corpo e pos- suem papel importante na manutenção do sistema nervoso central. 3. Autoimunidade pode ser ativada espontaneamente por tecidos danifica-

dos.

4. Indivíduos saudáveis possuem naturalmente auto-anticorpos e células T autoimunes.

5. Autoimunidade natural para um antígeno próprio pode regular respostas imunes a antígenos não-próprios que possuam alguma ligação com o antígeno próprio.

6. O mecanismo de autoimunidade é, em si, auto-regulado, para prevenir doenças autoimunes.

7. Antígenos tumorais são, em sua maior parte, antígenos próprios; e imu- nidade tumoral é em sua maior parte autoimunidade.

8. Doenças autoimunes freqüentemente envolve a ativação desregulada da autoimunidade natural.

Como argumentos adicionais, Cohen destaca que os antígenos em si são apenas moléculas ou fragmentos de moléculas que são reconhecidos pelos receptores de antígenos. O sistema, portanto, discrimina com base em an- tígenos, mas não com base em uma dicotomia próprio/não-próprio. Assim, o sistema imune não seria responsável por emitir vereditos sobre o que é ou não para ser destruído, mas por manter uma regulada inflamação corretiva a partir de um contínuo reconhecimento do estado dos tecidos:

A tarefa do sistema imune é anexar o tipo de resposta inflamatória para as necessidades do momento: é necessário um novo tecido conectivo aqui?

são necessários novos vasos sanguíneos ali? Um osso fraturado precisa de reparo? Como poderíamos melhor livrar o corpo de células velhas, anor- mais ou infectadas? O problema não é somente produzir a resposta apro- priada, mas orquestrar o espectro de respostas dinamicamente no tempo de acordo com as necessidades mutáveis dos tecidos. Inflamação mantém o bem-estar do corpo e autoimunidade ajuda a fazer os ajustes finos do processo inflamatório.

(COHEN,2000, p.216)

Nessa visão a defesa contra patógenos é compreendida apenas como um caso especial de manutenção do corpo. Dessa maneira, dicotomias simples, como “próprio×não-próprio” ou “perigo×não-perigo”, ocultam a profundidade da manutenção imune. Para manter a homeostase do corpo, o sistema imune precisa adotar diferentes soluções para diferentes problemas, selecionando e regulando um repertório de respostas inflamatórias. Mais ainda: o sistema imune é um sistema complicado porque esse processo regulatório requer um julgamento também complicado.