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CAPÍTULO 2 – AS VOZES DA CATÁSTROFE: NARRATIVAS SOBRE O

2.1 QUESTÕES INICIAIS

Em meados do século XVIII, Portugal era governado por D. José I, que buscava ampliar as políticas de seu pai e seguir com a remodelação das estruturas políticas como analisado no capítulo anterior. Entretanto, o dia 1° de novembro de 1755 marcaria o destino do Reino e a memória europeia do período.

O Grande Terremoto que atingiu Portugal, o norte da África, a Espanha e alguns pontos da França, deixou em Lisboa um rastro de destruição e desolação sem precedentes. Por outro lado, a tragédia se converteu em um impulso na carreira

política de Sebastião José de Carvalho e Melo,132 cuja atuação durante o

processo revelou-se decisiva. Isso é o que aponta a pesquisadora Vanda Anastácio, ao afirmar que em parte pelo reconhecimento das boas ações administrativas após o evento, em momento de desarticulação e caos social, Carvalho e Melo foi transferido da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, cargo que teria assumido em 1750 por nomeação de D. José I, para a

Secretaria dos Negócios do Reino,133 tornando-se o principal responsável pelos

despachos reais.

Não há dúvidas do impacto causado pelo terremoto, cujo número de mortos ainda não se sabe com exatidão, oscilando em torno de um terço da população

132 Nos trabalhos, que se dedicam a comentar a vida de Sebastião José de Carvalho e Melo, é comum se referirem ao terremoto como evento que impulsionou a carreira política do ministro, geralmente, destacando sua eficiência na gestão da crise instaurada. Como exemplos desses trabalhos, podemos citar: Cf. MAXWELL,1996; Cf. BOXER, 2002; Cf. DOMINGUES, 1995; Cf. TEIXEIRA, 1983.

133 ANASTÁCIO, Vanda. Viver em Lisboa no tempo do Marquês de Pombal: uma breve panorâmica. In. VALE, Teresa Leonor. A cidade pombalina: História, Urbanismo e Arquitetura. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2009, p. 18

de Lisboa.134 Tamanha destruição resultou em comoção intensa, tanto em

Portugal quanto no restante da Europa. Sobre essa temática, o historiador Edward Paice esclarece que

O número exato de pessoas que morreram em consequência do terremoto [...] nunca será conhecido. No período imediatamente posterior, algumas testemunhas oculares traumatizadas superestimaram as mortes [...]. Embora as informações iniciais que chegam às capitais da Europa sugerissem que 100 mil pessoas haviam morrido, em dezembro já se sabia que esta cifra era alta demais [...] O cônsul genovês, o núncio papal e Miguel Pedegache (correspondente suíço-português da publicação Journal Étranger que era amigo íntimo de Pombal) calculavam que um décimo da população da cidade havia morrido, isto é, de 20 a 25 mil almas.135

Passado o impacto dos primeiros dias, teve início os esforços de reconstrução, pari passu, cresceram as versões a respeito das razões do cataclismo. Muitos pensadores se empenharam em apresentar justificativas para o terrível evento. De clérigos a filósofos, cada um sob perspectiva peculiar.

Partindo desse cenário, pretendemos trabalhar este capítulo em duas etapas. No primeiro momento, o foco estará na descrição dos eventos que se sucederam ao terremoto e as principais medidas tomadas pelo monarca D. José I na tentativa de resolução dos problemas mais urgentes decorrentes da crise que se estabeleceu. Para tanto, partiremos da documentação oficial a saber: alguns editais e despachos presentes no documento Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal, assinadas pelo próprio Sebastião José e publicadas oficialmente em 1861.Nos interessa, em particular, o Tomo I, no qual se encontram alguns dos ofícios referentes ao sismo lusitano de 1755.

134 O Número de mortos oriundos dos eventos do dia 1 de novembro de 1755 são motivos ainda de muita contestação por parte dos autores, grande parte porque muitos estrangeiros estavam na capital lusitana para fazer comércio e não contabilizavam oficialmente como a população local. Além disso, era comum os registros de nascimentos de uma região serem responsabilidade das igrejas locais. E como muitas delas foram completamente destruídas ou arderam em chamas, muitos dos documentos se perderam, transformando o número total de mortos em uma eterna incógnita.

135 PAICE, Edward. A Ira de Deus. A incrível história do terremoto que devastou Lisboa em 1755. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2010, p. 193.

Na segunda parte, buscaremos apresentar três narrativas sobre o terremoto produzidas no contexto do evento. Nosso objetivo, por esse expediente, é abordar as diferentes interpretações a respeito do evento de 1755. Inicialmente, a visão religiosa tão enraizada na cultura lusa, aqui representada pelo sermão Juízo da verdadeira causa do terramoto, redigido pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida, datado de 1756. Em seguida, as impressões de um morador de Lisboa que sobreviveu ao caos, o francês naturalizado português Jacome Ratton, que registrou em Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências de seu tempo, no período compreendido entre maio de 1747 a setembro de 1810, organizadas em 1920 pelo enciclopedista Joaquim de Carvalho (1861-1920). Por fim, o famoso poema Poème sur le désastre de Lisbonne, escrito por Voltaire no mesmo ano do terremoto, apresentando suas interpretações filosóficas sobre o episódio, tão características das Luzes.

Cabe, contudo, considerar que Sebastião José de Carvalho e Melo continuará a figurar em nossas reflexões. Ora como homem de ação política, representante do rei, ora de forma indireta, nas críticas dirigidas à sociedade lusa do período e na sua maneira de pensar. É importante destacar ainda que a visão específica de Carvalho e Melo sobre o evento e sua análise sobre as providências tomadas serão abordadas separadamente no capítulo três.

No que diz respeito à abordagem metodológica, tomamos como referência a proposta do historiador Roger Chartier, para quem as narrativas e discursos resultam do conflito e cruzamento entre fatos históricos e fatos relatados, complementados pelos vestígios encontrados:

[...] se elaborar os dados colocados na intriga como vestígios ou indícios que permitem a reconstrução sempre submetida a controle das realidades que os produziram. O conhecimento histórico e assim inscrito num paradigma do saber que não é o das leis matemáticas nem tão pouco o dos relatos verosímeis. A encenação em forma de intriga deve ser entendida como a operação de conhecimento, que não é da ordem da retórica, mas que considera fulcral a possível inteligibilidade do fenômeno histórico, na sua realidade esbatida, a partir do cruzamento dos seus vestígios acessíveis.136

136 CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 82-83.

A partir dessa perspectiva, assume-se que a narrativa histórica resulta do trabalho do historiador, tornando-se ela mesma um relato. Visto que é parte da representação de um discurso, organizada de maneira particular pelos seus autores que se tornam responsáveis por tais enunciações.

Nesse aspecto, devemos destacar que nossa preocupação não é a análise do conteúdo propriamente. Mas, especialmente, a observação do discurso enquanto ferramenta de análise de posições que não necessariamente estariam transpostas para o papel como o autor pretendia. Conforme propõe a pesquisadora Laurence Bardin:

O discurso não é a transposição cristalina de opiniões, de atitudes e de representações que existam de modo cabal [...]. O discurso não é um produto acabado, mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, incoerências e imperfeições.137

Assim, buscaremos observar como tais narrativas revelam os lugares sociais e as representações as quais seus autores se filiam. Nessa perspectiva, tomamos

como diretrizes as orientações de Pierre Bourdieu ao alertar que as produções

simbólicas dos discursos compõem campos distintos, mas que devem ser analisados de forma relacional:

Define-se como um sistema de desvios de níveis diferentes e nada, nem as instituições ou nos agentes, nem nos atos ou nos discursos que eles produzem, tem sentido senão relacionalmente, por meio do jogo de oposições e das distinções.138

Apresentadas essas questões iniciais, passaremos a partir desse ponto a breve descrição do evento e das providências que se seguiram.

137 BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011, p. 218. 138 BOURDIEU, 2003, p. 179.