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Questões metodológicas e análise dos documentos

CAPÍTULO 1. DISCUSSÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

1.2. Questões metodológicas e análise dos documentos

No que tange às propositivas metodológicas desta tese, temos de deixar claro, de início, que não se trata de uma pesquisa inserida dentro do contexto da História da Arte. Embora lançaremos mão de fontes caras aos Historiadores da Arte, como a produção artística em cerâmica confeccionada por pintores gregos – áticos, na sua esmagadora maioria – não é nossa intenção discutir técnicas artísticas, estilos e preferências dos artistas; pretendemos com este tipo de documentação compreender como as divindades foram representadas e como a sociedade helênica as percebia por meio do consumo desta arte.

Embora tratemos da cultura material, também se faz importante ressaltarmos que não se trata de uma tese de cunho arqueológico. Nossa abordagem não terá o intuito de explanar a natureza material das peças, nem abarcar características mais pormenorizadas, como textura, tipo de material utilizado e nível de conservação. Pretendemos com a análise do material em cerâmica compreender como as divindades se inseriam no cotidiano das comunidades helênicas, pois estas peças eram utilizadas no dia-a-dia dos indivíduos, sejam em grupo, como as famílias ou os ritos de morte, seja individualmente.

Além da documentação imagética, utilizaremos também fontes textuais que exemplificaram os deuses telúricos. Como trabalhar com toda a documentação textual produzidas pelos Gregos nos séculos abarcados por esta investigação se torna praticamente impossível, selecionamos as epopeias homérica e os poemas hesiódicos, para percebermos como estas deidades eram representadas em período remotos da história grega, os Hinos Homéricos, como um momento de transição entre o período arcaico e o clássico, além das peças do teatro ático, para compreendermos como se dava a simbologia dos deuses no período clássico. Desta forma, traçaremos um panorama da transformação das acepções das divindades ctônicas, no que tange as suas simbologias e suas funções.

A Epopeia, pertencente ao gênero épico, estando este entre os mais antigos da literatura grega, conforme explanação de Gérard Lambin, não é possível ser enclausurado em uma definição específica e definitiva:

Il n'existe pas à proprement parler une essence de l'épopée, mais plus généralement une manière épique d'appréhender le monde et la vie. Ce

genre est, comme les autres, une donnée empirique, le résultat d'un travail inductif de réduction et de simplification mené à partir de réalités, de phénomènes littéraires.35

Sendo os Poemas Homéricos Ilíada e Odisseia os mais emblemáticos da Cultura Grega, são fontes indispensáveis para os estudos de sociedades remotas, do que Moses Finley (2002) convencionou chamar de período homérico grego. A narrativa que se faz presente principalmente na Ilíada – mas também na Odisseia, em menor escala – embora muito já se tentou ir contra, se passa numa sociedade com a maioria de suas características micênicas36.

Da mesma forma, as peças teatrais, que em sua concepção já se configuram como espaços do poder, são imprescindíveis para compreendermos o imaginário religioso do período clássico grego. O teatro é sagrado, um local de manifestações religiosas regidas por uma regra e uma moral própria. Não se pode celebrar o mito através de um ritual primordial, deve-se celebrar este mito de acordo com as representações teatrais. Uma estátua de Dioniso era disposta nos teatros; na orquestra –

orkhêstra – erguia-se um altar de pedra e nas arquibancadas sentava-se, em um trono

esculpido, o sacerdote de Dioniso. O espaço teatral também se constituía como um espaço abstracional, onde diversas localidades diferentes eram representadas e diversas ideias distintas trabalhadas:

A tragédia ática exerceu uma prática espacial múltipla, mediante a idéia de espaço como infinito, como algo pleno, como extensão material, como vazio. Também como um pré-requisito para o surgimento, emanação e sincronização de fenômenos, que garante as leis naturais, como um sustentador do cosmos e também, ocasionalmente, como uma abstração confusa e absurda37.

As aparições infernais – como os espectros, as Erínias e as divindades subterrâneas – surgiam literalmente das entranhas da terra. Os atores utilizavam uma passagem subterrânea escavada por baixo da orchêstra, que os arquitetos chamavam de “escadas de Caronte”38

. Dos espaços físicos destes teatros muito pouca coisa sobrou em forma de ruína. Somente a explanada foi construída com material durável; os edifícios para atores eram feitos de madeira e as skênai, primeiramente, eram confeccionadas

35 LAMBIN, Gérard (1999), p. 20. 36 LOURENÇO, Frederico (2004), p. 22. 37

TOBIA, Ana María Gonzáles (2005), p. 19.

38

com pano39.

Como, além da documentação textual, trabalharemos com a cultura material, por meio de efígies contidas em imagens de cerâmica que representam as divindades ctônicas por nós trabalhadas, julgamos necessária uma concisa discussão acerca de como trabalhar com este tipo de documentação. Neste trabalho utilizaremos a perspectiva proposta por Maria Helena da Rocha Pereira, ao afirmar que: “(...) a informação que os vasos gregos nos proporcionam acerca de mitos, vida diária, jogos e o teatro, que não tem preço. Esta é mais uma razão pela qual os estudiosos da cultura e civilização gregas não podem desconhecê-los.”40

Faz-se importante deixar claro que, como já foi explanado, este trabalho não se trata de uma pesquisa arqueológica, as discussões técnicas acerca das perspectivas arqueológicas dos artefatos não serão contempladas. Tampouco se trata de uma tese referente à História da Arte, de modo que também não adentraremos nestes pormenores. O que pretendemos com a análise da arte grega é compreender, históricamente, como as diversas acepções das divindades enquadradas como telúricas se transformaram com o passar dos séculos. Nossa intenção é a de fomentar uma discussão iconográfica41 das representações divinas através de uma História das Imagens, com um acervo arqueológico que representa as deidades ctônicas por intermédio de imagens ou, como coloca Haiganuch Sarian: “Esta é a grande especificidade da maioria dos documentos de cultura material da Antiguidade Clássica: não são objetos arqueológicos como quaisquer outros; eles são portadores de imagens.”42

A História das Imagens e os estudos iconográficos foram muito negados quando do surgimento das idéias positivistas e historicistas, e somente com o início das reflexões sobre hermenêutica e semiótica, realizadas pelo pós-estruturalismo, é que este campo da ciência passou a ser valorizado:

A representação direta do material visual está cada vez mais afetada pela aplicação dos critérios da “história do gosto”. Contudo, no discurso acadêmico este tem um lugar pequeno; as linhas de batalha são (obviamente) entre a recuperação histórica (a tentativa de interpretar o material visual como deveria ter ocorrido, quando ele foi

39

MARTIN, Roland (1956), p. 283.

40

ROCHA PEREIRA, Maria Helena da (2012), p. 15.

41

Por iconografia compreendemos uma representação ou um conjunto desta com o fim de produzir convenções e significados específicos que tornem o objeto representado reconhecível. Como exemplo se pode citar as características individuais que diferenciam os santos católicos entre si ou os símbolos que identificam os deuses gregos.

feito, seja pelo autor, por seus contemporâneos ou por ambos) e o engajamento crítico direto de vários tipos, com freqüência, mutuamente irreconciliáveis. Esses incluem, em primeiro lugar, a abordagem que admite a possibilidade de acesso intuitivo, direto, à “personalidade artística” e ao “processo criativo” (...); segundo, uma preocupação teoricamente engajada, pós-estruturalista, com a hermenêutica visual; e, terceiro, uma abordagem que enfatiza a continuidade essencial da arte, de forma que a arte de qualquer período do passado não possa ser compreendida além do contexto de sua relação com a prática corrente na arte e por extensão, em nenhum meio visual.43

Frances Yates aponta-nos que os antigos já possuíam uma noção clara da importância da imagem na descrição dos acontecimentos:

(...) Plutarco diz que: ‘Simônides chamava a pintura de poesia silenciosa e a poesia, de pintura que fala, pois as ações são pintadas enquanto ocorrem, já as palavras as descrevem depois de terem acontecido’”44

No estudo desta iconografia mais vale o mito transmitido pela tradição visual do que a arte e a estética com que o tema foi tratado; sua função semântica predomina sobre sua função estética45. Sarian aponta-nos também diferentes orientações de várias escolas sobre o estudo da iconografia grega e as principais posições metodológicas quando da análise destas imagens:

1) Estudo paralelo das representações figuradas e da tradição literária refletindo uma total dependência das imagens com relação aos textos; (...) 2) Estudo da função semântica das imagens, valorizando os esquemas iconográficos e detectando códigos especiais de leitura e de interpretação; (...) 3) Estudo dos critérios de identificação de uma imagem e da sua transmissão, através da constituição de um repertório exaustivo das representações figuradas respeitando a especificidade das várias categorias de objetos arqueológicos.46

Concordamos com Sarian quando, no mesmo artigo supracitado, afirma que nenhuma das teorias em separado pode dar resultados relevantes ao estudo da iconografia grega; somente com uma abordagem comparativa entre as fontes figuradas e as fontes textuais – quando estas estão disponíveis – é que poderemos chegar a um

43 GASKELL, Ivan (1992), p. 258. 44 YATES, Frances (2007), p. 48. 45 SARIAN, Haiganuch (2005), p. 120. 46 SARIAN, Haiganuch (1985), p. 83.

conjunto de dados para montarmos o processo histórico em questão47. Gilberto da Silva Francisco alerta-nos para o fato de que a importância exacerbada da escrita em detrimento do “artístico” tratou de um projeto imperialista europeu de civilizar sociedades que ainda não possuíam alfabeto48, como alguns grupos na África e na Oceania; isto se inicia desde o apogeu positivista, na divisão da cronologia histórica em “pré-história” e “história”. Na Pré-história, as figuras eram primordiais como expressões; porém mesmo com o surgimento da escrita, esta não diminuiu a importância da imagem:

É preciso atentar ainda para o fato de que, desde os tempos em que se fixou a palavra escrita, o novo código não veio substituir a imagem. A convivência entre expressão visual e expressão escrita sempre foi muito próxima. Ao longo da história das civilizações, são inúmeros os exemplos em que se percebe como os registros escritos acompanham os registros visuais. Velhas formas de escrita, como os hieróglifos, demonstram essa proximidade. Isso equivale a dizer que a história da imagem se confunde com um capítulo da história da escrita e que seu distanciamento pode significar um prejuízo para o entendimento de ambas. Reconhecer isso implica admitir que imagem e escrita sempre conviveram.49

Quando não há fontes textuais ou quando a iconografia difere da escrita, faz-se necessário um cotejamento entre os dois tipos de documento e pontuar a distinção entre eles, não podendo colocar um documento acima do outro. Ambos são documentos diferenciados e devem receber tratamentos metodológicos distintos:

Vale dizer, não se pode de antemão comparar e equiparar tradição textual com tradição imagética porque se trata de produtos originados de práticas intelectuais e técnicas, de contextos e grupos sociais bastante diferenciados em relação ao meio social da produção escrita. Neste sentido, o estudo da imagem deve levar rigorosamente em conta os vários tipos de objetos que serviram de suportes dessas imagens ou que eram eles próprios imagens tal como os exemplares da estatuária.50

Deste modo, o que pretendemos nesta investigação é conciliar os dois tipos de documentos – com suas especificidades – como forma de compreender, com uma completude maior, o nosso objeto.

47

Idem, p. 83.

48

FRANCISCO, Gilberto da Silva (2007), p. 33.

49

KNAUSS, Paulo (2006), p. 99.

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