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CAPÍTULO III – ITINERÁRIOS DE APRENDIZAGEM: o Bildungsroman lygiano

3.2 A trajetória de formação das heroínas lygianas

3.2.2 Raíza ou “A Catedral Submersa”

— Fernando, vamos ser bons no ano-novo, vamos ser bons! Olha aí, sou a catedral que saiu do mar, os sinos todos tocando, blim, blão !...

Ele tomou-me pela cintura e me fez oscilar como um pêndulo.

— E não afunde mais. (VA, p. 60)

Imersa em conflitos interiores tão densos quanto os de Virgínia, a protagonista de Verão no Aquário também percorre uma longa e complexa jornada de formação. Porém, ao contrário de sua antecessora, a história de Raíza não segue um curso linear do tempo com começo, meio e fim bem definidos: a narrativa é arquitetada em flashbacks, intercalando o tempo presente com os fatos da infância e da adolescência. Outra característica que diferencia as duas obras refere-se ao foco narrativo, em Verão no Aquário temos uma heroína que também é narradora, detalhe que dá a esse romance uma maior complexidade para análise, visto que a narradora/protagonista é um ser cheio de dramaticidade e de profundidade, que se mostra e ao mesmo tempo se esconde; isso porque ela está constantemente

simulando: Raíza representa “o tempo todo” (VA, p. 130). E desse jogo de simulações, observamos na protagonista várias faces das quais algumas podem ser verdadeiras, enquanto outras não.

A razão de Raíza está a todo o momento encenando e usando máscaras, de acordo com Marques (2010, p. 222), é uma tendência da protagonista de “ocultar ou imitar” a realidade. Logo, o caminho de aprendizagem da personagem torna-se turvo e delicado, porque sua personalidade é instável e por isso constantemente ela retorna ao ponto inicial do autoconhecimento: “─ [Raíza] Você já rompeu esses laços milhares de vezes. E milhares de vezes voltou a atar tudo, compreende?” (VA, p. 119).

Sendo assim, adotando o encadeamento didático do Bildungsroman em que se analisa a infância, adolescência e idade adulta dos heróis, podemos compreender a primeira fase de Raíza como um momento de felicidade e conforto, uma vez que a personagem ainda não tinha a noção de vazio existencial e de que sua família estava em crise. A infância da protagonista é marcada especialmente pela presença do pai e a forte aproximação entre os dois é o fio que vai sempre impulsionar as suas reminiscências. Outro ponto de referência nessa etapa de Raíza é a grande casa onde ela cresceu, herança de uma família tradicionalmente abastada é o lugar que simboliza a segurança paternal e financeira. Contudo, como é característico do romance de formação, a heroína, semelhante à Virgínia, também passa pelo processo da orfandade e o fim da sua infância é marcado pelo falecimento do pai, acontecimento que vai causar grandes danos à sua personalidade em formação.

Outro estorvo na trajetória de Raíza está relacionado com a sua formação musical que segue da infância à adolescência. Desde cedo, a protagonista fora instruída na música clássica por meio do piano e a sua habilidade se mostrara precocemente: “Deslumbrava-me o fato de não poder controlar meus dedos que se moviam como por efeito de um sortilégio” (VA, p. 119).

A figura do mentor, que é tão relevante no Bildungsroman, em Verão no Aquário é uma presença forte que é rememorada sempre quando a protagonista quer realçar os seus traumas sobre a vocação para a música. De tal modo, Raíza descreve a postura rígida e inflexível dos seus professores como a impaciente e severa Dona Leonora que batia com o leque fechado em sua mão “martelando as teclas do piano: ‘Mais atenção, menina, trata-se de uma valsa, são fadas que dançam, pense em fadas’” (VA, p. 16). Ou a racional Dona Veridiana, “que antes de

lecionar piano lecionara lógica” (VA, p. 78). Mas fora pela descrença de Miss Gray e de Goldenberg que a protagonista viu o seu talento frustrado: em sua primeira crise de identidade, suas mãos perderam o “alento”. Raíza perdeu o dom e também perdeu uma parte de si mesma: “Abri minhas mãos. Quando elas voltariam a tocar?” (VA, p. 91).

Da infância e adolescência da heroína de Verão no Aquário três elementos são essenciais para a compreensão de sua crise de identidade que percorre por todo o romance, a saber: a morte do pai, a mudança do espaço (tradicional casa da família para um apartamento de classe média) e o desencantamento pela vocação musical. Essa tríade é a razão de Raíza prender-se com tanta veemência ao passado ao ponto de desarmonizar o seu presente: “Só me restava a infância, embora de todos esses anos somados tivessem ficado apenas algumas horas de alegria, mais nada” (VA, p. 46).

Grande parte do desconcerto interior da heroína em sua juventude (presente da narrativa) está relacionada com o seu conturbado relacionamento com a mãe: Raíza a culpa pelo fracasso do pai, que, na sua concepção o levou da tristeza profunda à morte e não a perdoa pela venda da casa de sua infância – “só ficamos com a casa. Agora vai vender a casa, a minha querida casa com meu sótão e meu espelho” (VA, p. 47). Assim, sentimentos de rejeição, rivalidade, oposição e ódio perpassam a protagonista que mantém durante todo o romance uma guerra contra a matriarca. E é essa luta que faz de Raíza um ser multifacetado, porque na tentativa de agredir a mãe, ela vai se desdobrando em várias, ao mesmo tempo em que vai construindo a sua unidade.

Raíza desafia Patrícia utilizando-se de um comportamento rebelde e amoral, sua conduta desregrada é dividida entre sexo, drogas e festas: “Ela [Patrícia] não suporta gente como nós” (VA, p. 50). Segundo Régis (2009, p. 112), a protagonista de Verão no Aquário é uma jovem que traz em si as agruras do seu tempo histórico, de uma “geração esgarçada” dominada por uma rebeldia, sem nenhuma causa aparente.

[...] é uma geração sem perspectiva, ainda projetando um espaço para ocupar. Os tempos são de efervescência, de uma geração que se inventa, aprontando-se para uma nova história, para os próximos movimentos da contracultura, para a liberdade do discurso feminino, para a desconstrução da tradição e dos comportamentos modelares.

Uma geração afeita a problemas de subjetivação, de identidade e de crença.

Como fruto dessa geração em devir, a protagonista constrói seu aprendizado por meio do contato com os mais distintos tipos de sujeitos transviados: com Fernando ela aprendeu a filosofia do amor livre, sem preconceitos e sem solidez; com João Afonso – tão velho quanto casado – ela aprendeu o equivocado sentido do amor, que na verdade significava luxúria: “E eis que com dezesseis anos e oito meses apenas, pressenti que viriam outros equívocos” (VA, p. 52). Com o guerrilheiro Diogo, ela aprimorou a arte de fingir o prazer, apenas para eliminar a solidão e o vazio intenso que sentia: “Você tem medo de ficar sozinha, Zazá, você tem medo e por isso me segura embora não me ame. E com isso acaba ficando mais só ainda” (VA, p. 56). E com Rodolfo, ela descobriu o mundo delirante das drogas. Logo, Raíza arrisca-se em suas experiências pessoais de maneira inconsequente com um único objetivo: desestabilizar a serenidade da mãe. No entanto, a protagonista descobre de forma dolorosa que na tentativa de destruir Patrícia, devasta a si própria: “─ Quanto mais firo os que amo mais vou ferindo a mim mesma. Perco os outros e me perco, não é curioso isso?” (VA, p. 100).

Embora tenha consciência dos seus erros, Raíza não tem disposição para corrigi-los, a sua falta de “fibra” para encarar a verdade é tão intensa quanto à sua falta de caráter: “É forçada a bondade em mim” (VA, p. 101). Desdobram-se ante o leitor as máscaras da heroína: irônica, mesquinha, falsa, invejosa e dissimulada. Daí a complexidade para a interpretação dessa personagem, visto que temos para análise a perspectiva de um único ponto de vista – o da narradora-protagonista – e a problemática da narrativa está exatamente na personalidade imprecisa de Raíza. Sendo assim, o processo de Bildung dessa heroína é mais perceptível especialmente pelo material simbólico que compõe a trama e pelas sugestões linguísticas presente nos discursos das outras personagens. Conforme explica Régis (2009, p. 113), na análise da construção dessa heroína seus traços “vão sendo desvelados de modo ambíguo ou fragmentário, sem nunca serem completamente revelados. É um processo em que o leitor monta o quebra cabeça da narrativa, tentando encaixar as peças”.

Dentre as muitas encenações de Raíza, a sua maior representação é a “farsa da moça que resolveu ser boazinha” (VA, p. 179), elaborada com a intenção

de seduzir o jovem, “quase padre”, André. Em torno desse personagem, Raíza provoca a maior dúvida do romance, tanto para as outras personagens secundárias, quanto para o leitor: Afinal André era amante de Patrícia? Instigada por essa dúvida, e pelo capricho de continuar ferindo a mãe, a protagonista faz do rapaz um alvo, um objetivo para a sua mudança pessoal: “─ Marfa, estou tão animada! Sinto-me à beira de coisas tão importantes que vão afinal acontecer! É complicado explicar mas é como se eu estivesse a um passo da metamorfose” (VA, p. 119). Assim como suas outras tentativas de mudança, a transformação almejada por Raíza, impulsionada pelo seu suposto amor por André, é frustrada. Ela tenta se refugiar na religiosidade, abandonando os prazeres carnais, contudo não se contém e acaba por regredir à promiscuidade, “oscilando entre os extremos da crença exacerbada e da irônica blasfêmia, a religiosidade de Raíza revela-se uma de suas representações mais ambíguas” (MARQUES, 2010, p. 223).

O perfil impreciso de Raíza e o constante retrocesso na sua trajetória de aperfeiçoamento, ocasionado sobretudo pela tríade perdida na infância (pai, casa e música) e o direcionamento da culpa, pelas suas perdas, para a figura materna, pode remeter à rápida conclusão de que Verão no Aquário não se trate de um Bildungsroman. Contudo, Jacobs (apud Mazzari, 2010, p. 123) esclarece algumas novas concepções a respeito do romance de formação que nos servem como justificativa para a abordagem dessa obra lygiana segundo essa concepção. A saber:

Se o gênero romance de formação se define pelo fato de que as obras que lhe são atribuídas narram a história de um jovem que, passando por uma sequência de erros e decepções, chega a um equilíbrio entre as suas ambições e as exigências de seu meio, então fica evidente que o herói de uma tal história, confrontando com as inevitáveis experiências da desilusão, tem necessariamente de tornar-se problemático para si mesmo. Não basta que ele percorra um determinado desenvolvimento como se fosse um processo natural de crescimento; muito mais do que isso, ele tem de conscientizar-se expressamente de seu papel como indivíduo que se constitui na busca. Decorre daí que esse jovem, a exemplo de Wilhelm Meister, sinta-se compelido, nas diversas fases de seu desenvolvimento, a “passar em revista sua própria história”, ou, como Hans Castorp, a converter o seu “complexo de vida” em objeto de reflexão autocrítica, buscando orientação.

Apesar das constantes regressões em seu aprendizado, a busca de Raíza pelo seu eu genuíno, pela formação da sua identidade está fortemente marcada pelo

simbolismo usado pela autora como recurso para enriquecer ainda mais a complexidade psicológica da protagonista. Em Verão no Aquário, os símbolos do espelho e das águas constantemente são mencionados, eles surgem como elementos indispensáveis para o aperfeiçoamento do eu em formação da heroína. De acordo com Pedra (2010, p. 78), “o processo de amadurecimento da jovem vai ter, na simbólica do espelho, por sua recorrência, um dos fios condutores”; além do espelho, a autora também aponta os espaços da narrativa, como por exemplo, a casa da infância e consequentemente o sótão como símbolos relevantes para a compreensão do desenvolvimento da protagonista, porém não nos deteremos a estes. Portanto, na busca por uma imagem verdadeira de si, em meio às suas encenações, Raíza vai, por meio do simbólico, construindo a sua alteridade e consequentemente a sua bildung.

Desencadeador de experiências-limite e propiciador de profunda reflexão sobre o homem e sua condição, o espelho se revela símbolo da consciência, e está presente em diversos mitos e incontáveis narrativas da literatura mundial. Apresentando sentidos opostos por refletir uma imagem simultaneamente idêntica e ilusória, o espelho se configura como espaço projetivo da experiência humana que permite a auto-reflexão e a busca de identidade (PEDRA, 2010, p. 78).

Deste modo, o reflexo no espelho figura como um elemento que nos remete ao mito de Narciso e abre-nos um caminho de leitura ao vasto campo do mito, enriquecendo, assim, a natureza da personagem Raíza.

Narciso, que perante a límpida água da fonte, contempla a sua própria imagem e por ela se apaixona representa, segundo Cavalcanti (1992), o olhar do homem sobre si mesmo a partir do outro; isso porque frente ao espelho cada um tem o seu duplo, isto é, o ser que contempla é ao mesmo tempo contemplado. Por meio do seu reflexo nas águas, esse herói mítico passa a ter consciência de sua dualidade a partir do momento em que ocorre a revelação da sua imagem no outro e da imagem do outro em si.

Há em Raíza essa recorrência de procurar a si mesma, de ver sua imagem no espelho e não reconhecê-la como sua, mas como reflexo dos pais ou o inverso: “Eu era o espelho da minha mãe, em mim ela se refletia de corpo inteiro” (VA, p. 89). Se em alguns momentos do romance Patrícia aparece como o duplo da protagonista, em outros vemos essa dualidade com o pai, Giancarlo. Semelhante a

Narciso e Eco, que como nos mostra o filósofo Gaston Bachelard (1997, p. 25), estão incessantemente um com ou outro, assim é com a heroína de Verão no Aquário: Raíza é a mãe, ela é Raíza ou Raíza é o pai e ele é a filha.

Mas era no sótão que eu queria ficar, sentada ao lado do meu pai que para lá subia quando ficava cheirando a hortelã, ao lado de tio Samuel que se refugiava com sua loucura entre os móveis imprestáveis e caixotes de livros nos quais os bichos cavavam galerias. Era ali o meu lugar. E para certificar-me disso, bastava ver o espelho apoiado na parede, um espelho redondo todo cheio de manchas porosas como esponjas embebidas em tinta. Nele eu ficava amarela também, eu, meu pai, tio Samuel, todos da mesma cor do cristal doente, enfeixados no círculo da moldura dourada. Então meus olhos se enchiam de lágrimas porque eu tinha medo de que um dia o espelho se quebrasse e nos perdêssemos um do outro. Quem cuidaria do meu pai, delicado como uma folha murcha, dessas que caem no primeiro vento?! E do tio, balofo como um fruto que apodreceu antes de amadurecer, quem cuidaria dele, quem? No espelho, só no espelho eu via que fazíamos parte da mesma árvore, a árvore detestável que minha mãe aceitava em silêncio e que tia Graciana, distraidamente, fingia não ver (VA, p. 17).

Segundo Marques (2010, p. 225), em meio a tantos espelhos que aparecem em Verão no Aquário, o do sótão da antiga casa da família é para Raíza “o que lhe devolve a imagem que ela mais aprecia”, ou seja, era naquele espelho que ela tentava se aproximar do seu eu autêntico. O espelho do sótão simbolizava a busca pela sua verdadeira identidade: “Lancei um olhar ao espelho da mesa de toalete. Eu teria que procurar minha imagem em outro lugar, lá em meio das manchas do espelho do sótão e que há anos me guardava intacta, como num retrato” (VA, p. 30). Era através do espelho do sótão que Raíza mantinha incólume a lembrança do seu pai. Naquela superfície amarelada ambos permaneciam presos ao passado e ali ela conseguia manter o seu eu ideal, isto é, aquele eu da época em que era boa menina, que amava livremente porque não tinha em si tantas mágoas e frustrações. Contudo, esse espelho ao mesmo tempo em que a impulsionava na busca de si, também a mantinha presa ao seu duplo, impedindo-a de conseguir a independência em relação à imagem do outro. Independência essa que era motivada pelo segundo duplo da protagonista, ou seja, sua mãe. Nos diálogos com a filha, Patrícia deixa transparecer que a moça precisa amadurecer e encontrar a si mesma. Na analogia feita com os peixes do aquário com os quais a heroína se identifica, podemos ver no discurso da mãe esse impulso:

─ Vou pedir à titia que vista uma roupa de fada e me transforme num peixe. Deve ser boa a vida de peixe de aquário – murmurei.

─ Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com nada, há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água... Uma vida fácil sem dúvida, mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar lá adiante.

─ No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.

─ Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida (VA, p. 137).

Ora, como afirma Cavalcanti (1992), o olhar da mãe é o primeiro espelho, é o olhar que confirma a existência do filho logo na infância. Assim, a imagem materna é de extrema relevância para o eu em formação, porque ela reflete segurança e dá subsídio ao filho para reconhecer suas próprias necessidades, uma vez que “o reflexo da mãe é fundamental e indispensável para o estabelecimento da identidade” (CAVALCANTI, 1992, p. 209). Ao alertar a filha sobre a restrita vida do aquário, Patrícia mostra que naquele pequeno mundo estagnado não há crescimento. Entretanto, a protagonista persiste em contrariar o reflexo da sua mãe em si: mesmo a amando, Raíza a despreza, estabelecendo então um comportamento sádico no qual a faz vivenciar um amor carregado de dor, um amor masoquista, que mesmo sendo tão profundo não a impede de ser cruel. E é desse lado perverso que Raíza almeja se libertar no transcorrer do enredo; ela tenta reagir contra essa personalidade, todavia faltava-lhe coragem, faltava-lhe força: “Até para o vício é preciso ter coragem, até para o mal era preciso ter alguma fibra. [...] eu ali estava em disponibilidade, sem coragem para o mal, sem coragem para o bem, os braços abertos na indecisão” (VA, p. 66).

Nessa identificação com os pais, Raíza passa pelo processo de autoconhecimento. Isso acontece porque contíguo ao processo de identificação incide também a diferenciação do eu por meio de dois processos antagônicos, isto é, o espelhamento e a frustração. Sobre isso, Cavalcanti (1992, p. 209) nos explica que no processo de espelhamento ocorre uma colaboração do outro para a formação da imagem do eu; enquanto que a frustração faz o eu perceber os seus limites e meditar sobre eles. Ambos os processos são necessários para que o eu possa se autorrefletir e assim alcançar a sua independência. Segundo o crítico Fábio Lucas (1999, p. 72), para Raíza a sua autonomia incidiria em sair do aquário simbólico e assim “ganhar os amplos espaços da vida, seguindo, deste modo, os conselhos da mãe”; para tanto, ela precisaria mergulhar no mar em busca da sua autorrealização:

“Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar” (VA, p. 137).

A alusão às águas tão recorrente em Verão no Aquário também está intimamente ligada à formação de Raíza. Sejam da fonte, do aquário, do mar, da chuva ou simplesmente da torneira, as águas marcam cada momento da trajetória da personagem.

Como símbolo narcísico, a água atua como espelho, o qual, conforme Bachelard (1997, p. 23), “serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco da inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima”. Diferente dos outros espelhos, a água permite uma continuidade porque sua naturalidade sugere infinitas possibilidades. Nela nosso reflexo pode mudar a um simples toque das nossas mãos; nas águas também se pode mergulhar. No entanto, não é possível penetrar o espelho de vidro, ao tocá-lo somos impedidos pela sua estrutura rígida de prosseguir, visto que esses espelhos “dão uma imagem por demais estável” e, portanto, só “tornarão a ser vivos e naturais quando pudermos compará-los a uma água viva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder receber a participação dos espetáculos da fonte e do rio” (BACHELARD, 1997, p. 24).

De tal modo, podemos entender que, em Verão no Aquário, Lygia parece ter consciência dessa renaturalização dos espelhos comuns. A heroína desse romance em alguns devaneios oníricos entra no espelho do sótão como se mergulhasse nas águas: “Corri na direção do espelho, entrei nele e encontrei meu pai e tio Samuel sentados num rolo de tapete” (VA, p. 77). Vemos aqui a concretização do que