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Relações familiares e formação individual: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA DEPARTAMENTO DE LETRAS – DELET PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM – PPgEL. MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL. RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário. MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO. NATAL-RN 2015.

(2) 1. MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO. RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de mestre em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Rosanne Bezerra de Araújo.. NATAL-RN 2015.

(3) MIDIÃ ELLEN WHITE DE AQUINO. RELAÇÕES FAMILIARES E FORMAÇÃO INDIVIDUAL: dilemas e aprendizagens das heroínas de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a conclusão do curso de Mestrado em Literatura Comparada. Data da defesa: 23 de março de 2015.. BANCA EXAMINADORA. ___________________________________________ Dra. Rosanne Bezerra de Araújo Orientadora – UFRN. ___________________________________________ Dr. Derivaldo dos Santos Presidente da banca – UFRN. ___________________________________________ Dr. Andrey Pereira de Oliveira Examinador interno – UFRN. ___________________________________________ Dra. Cássia de Fátima Matos dos Santos Examinador externo – UERN.

(4) 3. À minha família.

(5) 4. AGRADECIMENTOS. O final de uma trajetória sempre indica que o percurso de formação foi acompanhado não só de obstáculos, mas também (e principalmente) de muitos aprendizados. Por isso, é muito importante agradecermos aqueles que no decorrer de uma etapa nos apoiaram e nos ajudaram de alguma maneira. Assim, agradeço a Deus em primeiro lugar, porque minha fé n’Ele é a força que me mantém firme todos os dias. À minha orientadora, professora Rosanne, pela paciência, pela delicadeza, pelo apoio e por ter despertado em mim o interesse pelo Bildungsroman, o qual foi essencial para o norte do meu trabalho. Ao querido amigo Thiago Gonzaga, por ter sido o primeiro leitor do meu texto e pelas observações preciosas. À escritora Lygia Fagundes Telles, por ter proporcionado fruição e formação à minha vida por meio de sua literatura. Aos professores Derivaldo e Andrey, pelas contribuições dadas à minha pesquisa na qualificação. À professora Cássia, por acompanhar minha jornada acadêmica desde a graduação e especialização e por ter aceitado participar da minha banca. Aos amigos conquistados nas salas de aula do Mestrado. Aos meus professores. Muito Obrigada!.

(6) 5. Me leia enquanto estou quente. (Lygia Fagundes Telles).

(7) 6. RESUMO. Esta dissertação apresenta um estudo comparativo entre os romances Ciranda de Pedra (1954) e Verão no Aquário (1963), de Lygia Fagundes Telles (1923 -), com o objetivo de analisar a representação da família e a formação individual das protagonistas ante as tensões familiares e afetivas. Esses primeiros romances da escritora paulista têm em comum o fato de trazerem como heroínas duas jovens mulheres, Virgínia e Raíza, respectivamente, que sofrem violentas crises de identidade ocasionadas, sobretudo, pelos conflitos provenientes das relações familiares. Em ambas as obras, a família é marcada pela ausência de afetos e pela desordem em sua estrutura: os laços parentais são frágeis e o amor é quase inexistente. Nesses lares, em que reina a hipocrisia, o modelo de família nuclear burguesa é desconstruído e as consequências dessa desestruturação é o surgimento de filhos perturbados emocionalmente e carentes de referências para formarem-se como indivíduos autônomos. Sendo assim, sob a perspectiva do Bildungsroman, foi realizada a análise da construção das personagens Virgínia e Raíza com a intenção de verificar como se estabelece o aperfeiçoamento individual dessas heroínas ante o desajustado ambiente familiar. Nas duas narrativas, a trajetória de aprendizagem das personagens principais é complexa, contudo, mesmo com as adversidades em decorrência da família, a bildung/formação das protagonistas culmina em desfechos positivos. Como suporte para análise e desenvolvimento desta pesquisa, o trabalho teve como orientação os estudos de Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) e José Guilherme Merquior (1997), quanto aos pontos referentes à representação social da literatura, e ainda Mikhail Bakhtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) e Cristina Ferreira Pinto (1990) sobre as definições e estrutura do Bildungsroman. Palavras-chave: Romance lygiano. Família burguesa. Bildungsroman. Personagem. Formação..

(8) 7. ABSTRACT. This master’s thesis presents a comparative study between Lygia Fagundes Telles (1923 -)’s novels Ciranda de Pedra (1954) and Verão no Aquário (1963) and its main objective is to analyze the protagonists of such novels when it comes to family representation as well as the individual shaping of the protagonists towards familial and affective clashes. These first novels of the São Paulo writer portray two young women as heroines like a common factor, Virginia and Raíza, respectively, who happen to go through violent identity crisis mainly due to conflicts brought up by family relationships. Both novels depict family households strongly enhanced by the absence of affection and structural disarray as well: parental ties are fragile and love is almost nonexistent. In these homes, where hypocrisy reigns, the model of a traditional bourgeois nuclear family is deconstructed and the consequences of this disruption is the emergence of emotionally troubled and needy children who lack references in order to beacon themselves as autonomous individuals. Thus, from the Bildungsroman perspective, an analysis on the way the characters Virginia and Raiza are built was carried out with the purpose to verify how the individual improvement of such heroines was established within their uncanny family atmosphere. Moreover, the learning course of the main characters is complex, however, even with the adversities due to their family household, the bildung/shaping of the protagonists is reached out with positive outcomes. Throughout the analysis and development of our academic research, we used the work of Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) and José Guilherme Merquior (1997) on the social representation of literature, as well as Mikhail Bakhtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) and Cristina Ferreira Pinto (1990) on the definitions and the structure of the Bildungsroman concept.. Keywords: Telles’ novels. Bourgeois family. Bildungsroman. Characters. Shaping..

(9) 8. RESUMEN Esta disertación presenta un estudio comparativo entre los romances Ciranda de Pedra (1954) y Verão no Aquário (1963), de Lygia Fagundes Telles (1923 -), con el objetivo de analizar la representación de la familia en la formación individual de las protagonistas frente a las tensiones familiares y afectivas. Esos primeros romances de la escritora tienen en común el fato de traer como heroínas dos jóvenes mujeres, Virgínia y Raíza, respectivamente, que sufren violentas crises de identidad ocasionadas, sobre todo, por los conflictos provenientes de las relaciones familiares. En ambas obras, la familia es marcada por la ausencia de afectos y por el desorden en su estructura: los lazos parentales son frágiles y el amor es casi inexistente. En estos hogares, en que reina la hipocresía, el modelo de familia burguesa es deconstruida y las consecuencias de esa desestructuración es el surgimiento de hijos emocionalmente perturbados y carentes de referencias para se formaren como individuos autónomos. Siendo así, sobre la perspectiva de Bildungsroman, fue realizada el análisis de la construcción de los personajes Virgínia y Raíza con la intención de verificar como se establece el perfeccionamiento individual de esas heroínas ante el desajustado ambiente familiar. En las dos narrativas, la trayectoria de aprendizaje de los personajes principales es compleja, con todo, mismo con las adversidades en recurrencia de la familia, la formación/bildung de las protagonistas culmina en deshechos positivos. Como soporte para el análisis y desarrollo de esta investigación, el trabajo tuvo como orientación los estudios de Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) y José Guilherme Merquior (1997), cuanto a los puntos referentes a la representación social de la literatura, y Mijail Bajtin (1997), Marcus Vinicius Mazzari (2010) y Cristina Ferreira Pinto (1990) sobre las definiciones y estructura do Bildungsroman. Palabras Clave: Romance lygiano. Familia burguesa. Bildungsroman. Personajes. Formación..

(10) 9. SUMÁRIO. CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 10 CAPÍTULO I – A ESCRITA DA DISCIPLINA, A TESSITURA DO AMOR: particularidades da prosa lygiana .............................................................................. 15 1.1 Dentro da obra, o pulsar da vida ......................................................................... 17 1.2 Do medo ao mistério: a escritora por si mesma .................................................. 25 CAPÍTULO II – DUAS CASAS, UM MESMO RETRATO: a desconstrução da família burguesa ................................................................................................................... 30 2.1 Romances Representativos: O desvelar da família por meio do espaço-simbólico .................................................................................................................................. 32 2.2 Os Laços de família: a família burguesa em desordem ..................................... 40 CAPÍTULO III – ITINERÁRIOS DE APRENDIZAGEM: o Bildungsroman lygiano ..... 51 3.1 O Bildungsroman e algumas definições teóricas ................................................. 53 3.2 A trajetória de formação das heroínas lygianas .................................................. 59 3.2.1 Virgínia ou “A Pergunta”............................................................................. 64 3.2.2 Raíza ou “A Catedral Submersa” ............................................................... 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 86 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 89.

(11) 10. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. Para escrever é preciso ter a competência, que junta percepção e paciência, e o amor, aquela entrega total que significa convivência. (...) A literatura pode melhorar as pessoas sim. Pode desviar do vício, da loucura. Pode estancar a loucura através do sonho. Eu tenho um impulso cristão pelo próximo. Eu tenho vontade de servir ao próximo verdadeiramente. E a literatura me proporciona isso. No fundo, a literatura é uma forma de amor. (Lygia Fagundes Telles). Nos estudos da literatura lemos muito sobre o seu papel na sociedade; sobre o seu efeito; o seu poder. Mas afinal, a literatura pode alguma coisa? Como vimos na epígrafe acima, na concepção lygiana de literatura, ela pode muito, visto que é uma forma de amor que pode melhorar o outro a partir do interior. Nessa perspectiva, vemos em muitos críticos que a literatura é uma ponte para o conhecimento de si e do outro, para a reflexão do mundo e, segundo Antonio Candido (2011b), é também um instrumento de humanização. Por ser transfiguração da vida real, a literatura pode ser uma experiência capaz de lapidar personalidades, transformar psíquico e moralmente uma pessoa, tanto de acordo com as convenções sociais como contrária a elas, isso porque a literatura é “força indiscriminada de iniciação na vida” (CANDIDO, 2011b, p. 176). Ela nos faz conhecer e vivenciar experiências de uma realidade distante da nossa, tanto no tempo como no espaço, uma vez que, como nos mostra Tzvetan Todorov (2009, p. 77) “a realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente a experiência humana”. É partilhando dessas ideias que situamos este trabalho, visto que Ciranda de Pedra (1954) e Verão no Aquário (1963) são narrativas que nos permitem refletir sobre as angústias existenciais de seres em formação frente aos estilhaços da estrutura familiar, que se apresenta fragmentada pelas tensões afetivas, sociais, morais e financeiras. Esses romances representam o contexto patriarcal burguês em decadência e trazem personagens perpassadas por sentimentos de culpa e rejeição..

(12) 11. Nessas obras, Lygia Fagundes Telles escreve sobre medos, loucura, amor, perdão, busca e descoberta do eu; assuntos tão intrínsecos à natureza humana e seus mistérios. Dona de uma vasta obra, a qual abrange desde romances e contos a crônicas, Lygia sempre atraiu a crítica literária e acadêmica por sua qualidade estética e temática. A prosa lygiana seduz e fascina pelos recursos linguísticos escolhidos com perfeição e por sua aguçada sensibilidade para escrever sobre a vida. A sua ficção, segundo Alfredo Bosi (2010, p. 167), vai além da análise apurada do cotidiano, pois ela explora a interioridade das personagens abordando temas universais sobre a existência humana. Ainda conforme esse autor, “as palavras, os gestos e o silêncio ameaçador”, que circundam a prosa de Lygia, vão além do delinear da angústia, da assolação do dia a dia, pois “decompõem os mecanismos implacáveis que não cessam de operar dentro do sujeito e da sociedade que nele se introjetou. É um realismo cru, cruel, cruento”. Também na narrativa de Lygia Fagundes Telles, os espaços simbólicos são eloquentes; entrelaçados ao destino das personagens estimulam as emoções, gerando complexos momentos de divagações e descobertas. Conforme nos afirma Régis (1998, p. 96), é grande a capacidade de Lygia de imergir intimamente na alma de suas personagens e de envolvê-las em cena com os objetos do ambiente, ligando-os de maneira a constituir “uma estrutura simbólica coesa”. Deste modo, os espaços e os objetos sempre apontam para os sentimentos particulares ou “surpreendem o instante de convulsão das personagens, desafiando sua realidade”. Os primeiros romances dessa escritora paulista, Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, respectivamente, se enquadram nessa linha introspectiva. Lygia dedicase ao registro das particularidades que constroem o eu das heroínas1, Virgínia e Raíza, a partir de sucessivos embates nos relacionamentos familiares, os quais são decisivos para o desencadeamento do mundo interior dessas personagens, contribuindo para a realização e formação particular destas. Em Ciranda de Pedra, encontramos o “avesso na descrição de uma família”, como nos afirma Silviano Santiago (2009, p. 205). Nesse romance prevalece a hipocrisia no núcleo familiar, assim como na educação e nos relacionamentos amorosos. Em Verão no Aquário, a heroína vive um tenso relacionamento com a Neste trabalho o uso do termo heroína “designa, genericamente, protagonista, ou personagem principal”, conforme definição de Massaud Moisés (2013, p. 225). 1.

(13) 12. mãe; cativa das lembranças da infância, Raíza sofre com a saudade do colo paterno e do calor familiar de outrora. A falta de calor humano e afetivo da família, que desestrutura as jovens heroínas dificultando a construção do eu, é transfigurada nos romances Ciranda de Pedra e Verão no Aquário como fatores preponderantes para o desencadear das ações do enredo. Em ambos os romances, as crises familiares e afetivas das protagonistas são simbolicamente resumidas nos títulos. Segundo Paes (1998, p. 76), as palavras que formam os títulos dessas obras “não foram agenciados num rol de metáforas convencionais, mas tomados in loco à própria circunstancialidade da ação dramática”. Em Ciranda de Pedra acompanhamos o drama de Virgínia frente à rejeição do círculo inacessível formado por sua família e amigos íntimos, além da batalha interior da protagonista para ingressar a qualquer custo nesse grupo simbolizado pela ciranda dos cinco anões de jardim: “‘Quero entrar na roda também!’, exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mais próximos. Desapontou-se com a resistência dos dedos de pedra. ‘Não posso entrar? Não posso?’” (TELLES, 2009, p. 79)2. Na obra Verão no Aquário é a crise existencial causada pelo conturbado relacionamento familiar que desestrutura a personagem Raíza; nessa narrativa, mãe e filha não conseguem entender uma a outra, cada uma vive no seu recôndito particular carregado de ressentimentos e silêncios. Por sua vez, o pequeno aquário com dois peixes em cima da prateleira da cozinha ganha destaque ao ser transferido para cima da mesa. Ali assume funções figurativas a partir de uma troca de palavras entre Raíza e Patrícia, sua mãe; aquela o vê como lugar de proteção, esta como um lugar de estagnação (PAES, 1998, p. 76).. A proteção familiar, desejada pelas jovens protagonistas, não é alcançada e essa falta de apoio as obriga a saírem da inércia e a crescerem. No caminho da aprendizagem Virgínia e Raíza sofrem avanços e recuos; o caminho é pedregoso, os obstáculos são gigantes, mas em meio aos entraves ocasionados especialmente pela família o destino das heroínas é esperançoso. Esses romances de maneira simultânea tanto representam como revelam os costumes de uma sociedade e de um tempo histórico, por isso buscamos, neste trabalho, compreender como o texto literário foi construído no intuito de desvendar A partir desta nota, toda citação da obra Ciranda de Pedra terá a abreviatura CP seguida do número da página. 2.

(14) 13. as questões: como se constrói a impressão de realidade comunicada nessas obras? Como as relações familiares são representadas? As famílias interferem no processo de amadurecimento das protagonistas? Há formação positiva mesmo em meio ao caos familiar? Assim sendo, nesta dissertação nosso objetivo é fazer uma análise comparativa das obras Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, de Lygia Fagundes Telles, averiguando como os laços familiares são representados esteticamente nesses romances e ainda investigar a trajetória de formação pessoal das heroínas, a partir da perspectiva do Bildungsroman. Em suma, buscamos, fazer uma reflexão sobre a representação da esfera familiar observando como se estabelece a relação entre forma literária e processo social. A abordagem da relação forma e conteúdo, neste trabalho, parte do pensamento de Candido (2004, 2008), o qual propõe uma crítica dialética e integradora entre esses dois elementos, a qual seja “capaz de mostrar [...] de que maneira a narrativa se constitui a partir de materiais não literários, manipulados a fim de se tornarem uma organização estética regida por suas próprias leis” (CANDIDO, 2004, p. 9). Em uma obra literária é a conexão inseparável da mensagem com o código, os quais formam um todo organizado, que garante o efeito da criação literária. A forma permite a lógica textual e significativa do conteúdo, proporcionando ao intérprete uma maior apreensão do conteúdo, intensificando assim a sensibilidade para “ver e sentir”. Portanto, almejamos interpretar e compreender o elemento social “família” como um artifício de construção artística, considerando que o externo “importa, não como causa nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura, tornando-se interno” (CANDIDO, 2008, p.14). Ante o exposto, nesta dissertação, nossas reflexões foram organizadas em três capítulos: no primeiro, fazemos uma leitura sumária de como se caracteriza a prosa lygiana, discorrendo sobre os principais assuntos presentes em seus romances e contos e ainda apresentamos o ponto de vista da autora sobre a sua criação e sobre a maneira como os seus textos são elaborados. No segundo capítulo, damos início a nossa análise sobre as obras escolhidas como corpus, discutindo sobre a crise na família burguesa, que aparece de maneira intensa nos romances em estudo. Nossa interpretação parte das definições sobre verossimilhança e representação social na literatura, segundo.

(15) 14. Antonio Candido (2004, 2008), Luiz Costa Lima (2000) e José Guilherme Merquior (1997). Assim, construímos a análise observando o desenvolvimento simbólico dos espaços e a desenvoltura das personagens frente aos desajustes do lar. O terceiro capítulo é dedicado à análise da construção das personagens principais de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, observando como se dá a formação das heroínas perante as complicadas relações familiares e afetivas pelo viés do Bildungsroman. Por conseguinte, a partir da composição destes capítulos traçamos nossas considerações finais observando se os objetivos deste trabalho foram alcançados..

(16) 15. CAPÍTULO I A ESCRITA DA DISCIPLINA, A TESSITURA DO AMOR: particularidades da prosa lygiana. A função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé. Isso requer amor, o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração. (Lygia Fagundes Telles). A escritora paulista Lygia Fagundes Telles (1923), tem expressado continuamente em entrevistas, que o seu ofício literário é movido pelo princípio do amor. Interessada por testemunhar seu tempo, seu povo, seu país, a escritora costuma afirmar que tem com o leitor certa relação de cumplicidade. Com cerca de vinte obras publicadas3, Lygia tem a disciplina como lema, assim, trabalha em seus textos como uma tecelã, fio a fio vai montando a densa estrutura de suas obras. A ficção lygiana possui características que possibilitam ao seu leitor o prazer e a angústia de “vivenciar o sofrimento das opressões, sentir o peso dramático das casualidades a desviar os planos individuais, aceitar nossa fragilidade e sorrir das idiossincrasias do nosso comportamento” (RÉGIS, 1998, p. 88). Por essa razão, a intensidade de sua obra ultrapassa os limites do enredo, pois de acordo com Paes (1995) continuamos interessados nas ficções lygianas mesmo após a leitura “quando, vivas ainda na memória a ressonância das situações emblemáticas representadas no livro, ficamos a matutar no esquivo significado das figurações que enriquecem a semântica do dito com as investigações do não-dito ou do quase-dito”.. Ciranda de Pedra (romance, 1954), Histórias do Desencontro (contos, 1958), Verão no Aquário (romance, 1963), Antes do Baile Verde (contos, 1970), As Meninas (romance, 1973), Seminário dos Ratos (contos, 1977), A Disciplina do Amor (contos, 1980), Mistérios (contos, 1981), As Horas Nuas (romance, 1989), A Estrutura da Bolha de Sabão (contos, 1991), A Noite Escura e Mais Eu (contos, 1995), Invenção e Memória (contos, 2000), Durante Aquele Estranho Chá (ensaios e crônicas, 2002), Meus Contos Preferidos (contos, 2004), Histórias de Mistério (contos, 2004), Meus Contos Esquecidos (contos, 2005), Conspiração de Nuvens (crônicas, 2007), Passaporte para a China (crônicas, 2011), O segredo e outras histórias de descoberta (contos, 2012), Um Coração Ardente (contos, 2012). 3.

(17) 16. Preocupada não apenas com a sua criação literária, mas também com a recepção, com o efeito dos seus textos sobre o público, a escritora sempre demonstra determinação para envolver o leitor com a sua arte, para atraí-lo ao seu emblemático universo das palavras. Por isso, sua participação em feiras literárias, em programas de TV, congressos, seminários e eventos científicos é ainda tão ativa, mesmo com a avançada idade4. Lygia não só é uma inventora de histórias extraordinárias, como também é uma encantadora de leitores. Seu jeito de conversar sobre o texto literário, de falar sobre como produz os seus contos, como arquiteta as suas personagens, como idealiza cada novo enredo, é sublime e excêntrico. Quando vemos uma de suas entrevistas, ou um dos seus depoimentos ou mesmo uma de suas palestras ficamos estonteados sem sabermos ao certo se o que é falado por ela faz parte do real ou da fantasia. Assim sendo, como método de trabalho, para a confecção deste capítulo fizemos a leitura de alguns livros da escritora, a fim de conhecermos o seu estilo literário. Também analisamos algumas de suas entrevistas, depoimentos e palestras recolhidos em livros, jornais, sites e programas de TV. E consultamos a fortuna crítica sobre a autora com o propósito de entendermos como se estrutura a obra lygiana. Em suma, nesta seção, abordaremos sobre o fazer literário de Lygia, sobre sua relação com a sociedade e seu engajamento, buscando compreender como os fatores externos se internalizaram na sua obra. Para isso observaremos as características da sua narrativa e quais temas são mais explorados pela autora. Uma vez que, como nos esclarece Candido (2008, p. 83), embora os fatores internos sejam os mais significativos para a compreensão da obra literária, porque é onde habita o mistério da palavra escrita, os fatores externos servem como explicação para os elementos sociais presentes na obra tornando-se, então, necessários para a “sondagem profunda das obras e dos criadores”.. A autora tem atualmente 92 anos, porém, mesmo cansada, ainda participa de alguns eventos para os quais é convidada. 4.

(18) 17. 1.1 Dentro da obra, o pulsar da vida Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta uma tinta negra para que a água em redor fique turva e assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta do medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem que vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor. (Lygia Fagundes Telles ). “Comecei a escrever antes de aprender a escrever”, disse Lygia Fagundes Telles em Durante aquele estranho chá (2010d, p. 69) sobre o princípio da sua vocação para a literatura, quando sua principal motivação era o “medo” causado pelas histórias assombradas narradas por suas pajens. Como superar então o medo? Para Lygia, a melhor maneira era transferindo-o para o outro, por meio da contação das histórias aprendidas e transformadas conforme a sua imaginação permitia. A passagem da oralidade à palavra escrita veio com uma dificuldade: na hora de escrever a trama “o que era importante e o que não era importante?” E assim a pequena autora usava as últimas páginas em branco do seu caderno escolar para a sua, até então, “inocente criação”. Mais tarde, aos 15 anos, a moça de boina publica seu primeiro livro Porão e sobrado (1938), renegando-o posteriormente assim como rejeita também as obras Praia viva (1944) e O cacto vermelho (1949), consideradas por ela como joviais e imaturas. Essa rejeição por seus primeiros livros de contos mostra o capricho com que a escritora organiza e trata a sua obra, evidenciando o seu trabalho artesanal com as palavras. Deste modo, por exigência da própria Lygia, o conjunto da sua obra passou a ser contado a partir de Ciranda de pedra (1954), “o divisor de águas dos livros vivos e dos outros” (TELLES, 2010d, p. 84). Decisão também aprovada pelos críticos, como Candido (2011a, p. 249) que considera o primeiro romance lygiano como o marco do amadurecimento literário da escritora e também Vicente Ataíde (1974, p. 91), para quem foi a partir dessa obra que Lygia Fagundes Telles “se aperfeiçoou, conquistou palmo a palmo o terreno em que se projeta sua criação ficcional”. Com histórias de cunho dramático ou cômico, social ou fantástico, de suspense ou de tragédia, oriundas da memória ou da invenção, o universo ficcional lygiano possui múltiplas tendências. No entanto, alguns temas são constantes em.

(19) 18. seus livros, existe certa predileção por assuntos como loucura, morte, solidão e desencontros, presentes nos quatro romances da escritora e também em muitos dos seus contos. Atreladas a essas temáticas, outras vão sendo desencadeadas; todas impulsionadas por um único objetivo: desvendar ou mesmo revelar o mais profundo da alma humana por meio da ficção. Daí a presença tão forte da introspecção em toda a obra de Lygia. A veia intimista da literatura lygiana, mostra a característica contemplativa da autora ante a pulsão da vida. Por meio dos intensos diálogos das personagens com elas mesmas, os sonhos e as frustrações, as dúvidas e os medos – que há também em um mundo real – aparecem na ficção de Lygia para nos deixar inquietos e ao mesmo tempo fascinados pela inteligência e humanidade com que são representados. Em muitas das suas narrativas, o grande dilema das personagens está no encontrar-se, na busca pelo eu, perdido em algum tempo ou lugar, longe ou perto. Por essa razão, prevalece nas histórias de Lygia Fagundes Telles, o foco narrativo em primeira pessoa e um tempo que oscila entre o presente e o passado sem que o leitor seja avisado sobre isso. O tempo, que na narrativa lygiana tem sua ordem cronológica desfeita, é concebido “segundo a existência temporal da personagem”, conforme nos explica Ataíde (1974, p. 102). Por isso, seja no presente ou rememorando o passado, as experiências desses seres fictícios são desveladas ante o leitor por meio de monólogos ora lúcidos, ora delirantes; ora densos, ora límpidos em um violento fluxo de consciência. No posfácio de Um coração ardente (2012), Ivan Marques chama a atenção para o fato de o eu narrativo lygiano ser semelhante a um eu lírico, isto é, carregado pelo lirismo confessional de um mundo interior “em frangalhos”. Para o crítico, as personagens de Lygia são seres mascarados que vão se descobrindo ante o leitor, que aos poucos vão se desnudando, retirando as máscaras. Em contos como “As cartas”, “O noivo”, “O encontro” e “As cerejas”, presentes na coletânea supracitada, as minúcias do interior das personagens são reveladas nas entrelinhas, no não dito, no que é insinuado. Semelhante ao estilo machadiano, na prosa de Lygia nem tudo é enunciado. Muitas informações pairam no silêncio, deixando situações abertas, sem desfecho, suscitando o mistério: afinal, quem era o tal Renato que escreveu as cartas para Luisa, em “As cartas”? E quem era a noiva esquecida, em “O noivo”?.

(20) 19. O mistério é mais um dos recursos de Lygia Fagundes Telles, usado para “seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho.” (TELLES, 2010d, p. 81). E é também nesse mundo onírico, de delírios ou de fantasias que várias personagens lygianas se deparam. É o que podemos observar no conto “As formigas”, no qual a fantasia e o suspense vão sendo construídos a partir da descrição do espaço: “um velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes” (TELLES, 2009f, p. 9). Nesse lugar sinistro, típico de filme de terror, duas jovens estudantes são tomadas pelo medo depois que veem formigas reconstruindo o esqueleto de um anão, esquecido em um caixão, no sótão da velha hospedaria. O mesmo clima de mistério também é visto nos contos “A caçada”, “Natal na barca”, “A chave na porta”, “O crachá nos dentes”, “A fuga” e “A mão no ombro”, os quais são envoltos pelo sobrenatural e o fantástico. E por falar em espaço, na literatura de Lygia Fagundes Telles esse elemento da narrativa aparece carregado de poder simbólico. Sempre reduzido, fechado e reservado, o espaço envolve a personagem na sua interioridade, tocando-a no instante de divagação e, em alguns momentos, fundindo-se a ela. São os jardins, os sótãos tão tenebrosos e escuros como as almas das personagens, ou mesmo quartos e escritórios que em suas minúcias refletem o eu dos seus donos. Como podemos observar no romance As horas nuas (1989) quando as características da personagem Ananta são refletidas na descrição do seu consultório, o qual “era de uma profissional sem vaidade. Disciplinada. Refletindo (como num espelho) o seu despojamento” (TELLES, 2010c, p. 69). Por conseguinte, quando saem do ambiente privado, os espaços na prosa de Lygia recorrentemente envolvem a natureza ou lugares sombrios como os cemitérios, é o que vemos em “Venha ver o pôr do sol”, conto que discorre sobre o ciúme doentio de um ex-namorado que escolhe o cemitério para enclausurar a moça amada, deixando-a a própria sorte ou morte. Nesse espaço propício ao tema fúnebre, vemos a representação do amor de uma maneira que mais se aproxima do mal posto que culmina na crueldade. A respeito do amor, na narrativa lygiana, tanto podemos vê-lo de forma branda como intensa. Ele pode aparecer belo e puro como em “Herbarium”, mas também pode surgir trágico e vingativo como já mencionamos em “Venha ver o pôr do sol”, ou possessivo e incondicional como em “Pomba enamorada ou Uma história de amor”. Tudo isso porque, para Lygia, o amor é semelhante a uma bolha de sabão: fina e transparente, que mesmo pequena ou grande é majestosa, aliás,.

(21) 20. quanto maiores mais correm perigo (TELLES, 2010b, p. 07). E com essa metáfora a autora vai tecendo as suas histórias de amor. Amores profundos como o de um menino órfão pelo seu cachorro, em “Biruta”, ou cegos como o do velho professor pela sua esposa assassina em “Anão de Jardim”. Há também o amor ao próximo, que surge ardentemente quando a escritora denuncia em sua obra o sofrimento humano e as opressões sociais. Ainda sobre a temática lygiana, também merece destaque o caráter engajado da sua ficção. A escritora é enfática ao declarar que sua obra “não é inocente”, ao contrário, é comprometida com a sociedade da qual ela é testemunha (TELLES, 2010d, p. 107). Quer de maneira lírica e com delicadeza, como na história fantástica do anão de pedra que observa, sem poder reagir, a trama de um crime em “Anão de Jardim”. Quer em uma linguagem crua e angustiante, como em “O X do problema”, conto que mostra a realidade de uma família miserável que vive em uma situação desumana; o social na prosa de Lygia retrata as consternações dos que jazem à margem de uma sociedade discriminatória, opressiva, repressora, racista, desigual. Consciente de que o seu dever como escritora é o “de apontar as chagas da sociedade e não curá-las” – como declarou em entrevista a Helton Gonçalves de Souza, no programa Vereda Literária (1996) – Lygia opta por uma forma de engajamento que segundo Noemi Jaffe (2010, p. 208), é diferente porque “não se trata de militância escancarada, mas de posições perfeitamente integradas à atmosfera geral de ficção e de enigma”. De tal modo, a consciência política de Lygia Fagundes Telles se manifesta em sua obra sem partidarismos; de maneira fascinante, sua literatura denuncia a realidade movida por valores éticos e humanitários. É assim que em As meninas (1973), seu romance mais político, os dilemas e os dramas de três jovens mulheres são narrados paralelamente ao contexto histórico da ditadura militar no Brasil. As três moças: a burguesa Lorena, a drogada Ana Clara e a subversiva Lia, vivem as suas consternações pessoais em sincronia com o momento de agonia pelo qual passava o país, cada uma com as suas fragilidades, cada uma com a sua voz narrando mundos diferentes, que se encontram e colidem na mesma condição, no mesmo desespero. Conforme disse Paulo Emílio Sales Gomes (1973), na orelha da primeira edição, As meninas é, portanto,.

(22) 21. um livro perturbador, de uma inocência que emociona porque é pura. [...] Livro tão belo quanto inquietante - vivo e corajoso testemunho de um tempo com suas perplexidades, suas paixões, sua atmosfera cotidiana de tensão e suspense como se a sorte da própria condição humana estivesse em jogo a cada minuto.. Em seu engajamento, Lygia busca representar a realidade social usando a palavra artística como denúncia através de uma privilegiada heterogeneidade linguística; diversidade que é social e se concretiza por meio das vozes particulares que formam o enredo. É o que podemos observar na linguagem dos marginalizados dos contos “Pomba enamorada ou Uma história de amor”, “O X do problema” e “A confissão de Leontina”. Este último, narra a história de uma moça pobre que sai do interior para a cidade grande à procura de uma vida melhor, mas acaba se envolvendo com a prostituição e com o assassinato de um homem rico e influente. Nesse conto, a protagonista, que fora condenada moralmente pela sociedade, nunca teve a oportunidade de ter sua voz ouvida, somente no cárcere ela faz sua confidência para um interlocutor sem nome, sem ação na narrativa, mas que, pela primeira vez, a escuta sem fazer censuras: “Já contei esta história tantas vezes e ninguém quis me acreditar. Vou agora contar tudo especialmente pra senhora que se não pode ajudar pelo menos não fica me atormentando como fazem os outros” (TELLES, 2010b, p. 75). E é por meio do seu discurso de marginalizada, com sua linguagem rude e precária que a personagem narra os tortos trajetos de sua existência. Que Leontina misture expressões espontâneas com lugares-comuns populares ou extraídos da cultura de massa não devem causar estranheza: é o que acontece quando se tenta fazer história oral a partir de depoimentos de homens e mulheres iletrados. O que vale é aquele mínimo de coerência moral, que vai se constituindo ao longo do relato dando notável dose de verossimilhança. [...] Esta ficção de Lygia Fagundes Telles traz a voz do povo ao âmbito da obra literária (BOSI, 2010, p. 171, grifo nosso).. Com predomínio da voz do marginalizado, em especial a da mulher, Lygia, por meio desse conto, proporciona um diálogo sobre a precária condição na qual muitas mulheres são impelidas à exploração, sem nenhuma oportunidade para escolha. O crítico Fábio Lucas (1985, p. 35), ao escrever sobre o caráter social da ficção brasileira diz que nas escolas literárias anteriores ao século XX, a mulher era.

(23) 22. uma minoria e como tal era submetida ao silenciamento. Logo, com sua voz abafada ela era subjugada pelos desejos masculinos, “despojada de volição”. Por conseguinte, Lucas nos explica que foi somente com a literatura de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles que a “manifestação da consciência feminina” se expandiu. Lygia, que se diz feminista antes mesmo de saber o que era feminismo, não abre mão de em seus livros abordar sobre a situação da mulher brasileira ante a sombra do patriarcalismo, seja para desvelar a opressão feminina ou para revelar o surgimento da sua nova face, isto é, a de mulher livre dos estereótipos patriarcais. Assim, a autora escreve além de temas como o aborto em “Que se chama solidão” e “A sauna”, também sobre a liberação sexual, a educação e participação política das mulheres, assuntos presentes em “A dança com o anjo” e “Nada de novo na frente ocidental”. Nesses dois últimos contos, narrados em plena Segunda Guerra Mundial, enquanto o planeta era definhado pelo sangue e a paz parecia perdida, as moças não podiam pensar em participar da luta armada, elas deveriam lutar sim, mas para não perderem a virgindade antes do casamento: o mito da castidade ainda na plenitude, nem o mais leve sinal da bandeira feminista hasteada nestas palmeiras. E o nosso sabiá ainda não sabia da pílula, não sabia de nada. O anunciado mercado de trabalho para O segundo sexo (que Simone de Beauvoir ainda nem tinha inventado) estava apenas na teoria (TELLES, 2009e, p. 25).. Mesmo que a revolução feminina caminhasse lentamente, as protagonistas de “A dança com o anjo” e “Nada de novo na frente ocidental” sabiam o que queriam e não era só o casamento, mas a conquista dos seus direitos como cidadãs, a conquista da liberdade.. E para isso era necessário ingressar no universo dos. homens, apesar das reações contrárias: “o que significava aquilo? As mocinhas também iam combater?” (TELLES, 2009e, p. 116). Não bastava ser escritora e estudar em uma escola só de homens? Não! Para a heroína de “Nada de novo na frente ocidental” era preciso também ser soldado, se necessário ir à guerra, defender a pátria e ser capaz de fazer a diferença. Ao utilizar a literatura para tornar visível ao leitor as mazelas sociais, Lygia deixa transparecer a sua esperança por um mundo mais digno e por meio da sua palavra engajada ela se arrisca dando à sociedade a oportunidade de se autoanalisar e, por conseguinte mudar. Sobre isso, o filósofo Sartre em Que é Literatura? (2004, p. 65) diz que se a sociedade se vê na literatura “e sobretudo se.

(24) 23. ela se vê vista, ocorre, por esse fato mesmo, a contestação dos valores estabelecidos: [...] o escritor lhe apresenta a sua imagem e a intima a assumi-la ou então a transformar-se”. Tudo isso pode parecer utópico se considerarmos o público de leitores do nosso país, visto que na nossa cultura a leitura ainda é privilégio de poucos e a grande massa não tem o hábito de interagir com o universo literário. Como então alcançar esse público tão distante para que possamos acreditar, de fato, em uma transformação social? Segundo Sartre, para que isso aconteça, é preciso escrever para esse público, aproximá-lo da literatura. O escritor se lançará então no desconhecido: falará, no escuro, a pessoas que desconhece, a quem nunca ninguém falou, a não ser para mentir-lhes; emprestará a sua voz às cóleras e inquietações dessa gente; através dele, homens que nunca se viram refletidos em espelho algum, e que aprenderam a sorrir e a chorar como cegos, sem se ver, encontrar-se-ão de súbito em face da própria imagem (SARTRE, 2004, p. 198).. O escritor engajado lança-se então a uma “esperança cega”, como afirma Lygia, que resiste às adversidades do subdesenvolvimento protestando e participando da realidade do seu tempo com tudo o que há de positivo e negativo na sociedade: “inspiração para os escritores é o que não falta” (TELLES, 2009e, p.138). E é inspirada no cotidiano, que Lygia Fagundes Telles traça os seus enredos. Contemporânea de duas ditaduras (Vargas e Militar) a autora amadureceu em meio a repressão, a censura; participante ativa da vida política do país vivenciou na sua época de estudante muitas manifestação em favor de mudanças sociais; também foi às ruas pedir pela instauração da democracia, pelas eleições diretas e pela liberdade de expressão: “Assim é Lygia. Da vida para a literatura, e daí para a vida de novo” (MONTEIRO et. al., 1980, p. 5). Além dessa forte inspiração na contemporaneidade histórica do Brasil, outra marca muito presente na construção dos enredos lygianos é a presença da intertextualidade. Em Invenção e Memória (2000), por exemplo, em todos os contos do livro há referências diretas a outros textos e a partir deles as tramas vão sendo construídas: seja à cantiga de roda “Se essa rua fosse minha” e o poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves, em “Que se chama solidão”, ou o conto “Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde, em “O Cristo da Bahia”, também o poema “Se”, de Rudyard Kipling, em “Se és capaz”, ou mesmo o romance Nada de novo na frente Ocidental, de.

(25) 24. Remarque, no conto homônimo, muitos outros grandes textos e escritores são citados como elemento estético para o desdobramento e compreensão das narrativas. Dentre esse diálogo intertextual destacamos o conto “Dia de dizer não”, presente na coletânea mencionada, que faz alusão à Cidade de Deus, de Santo Agostinho e também ao poema “A flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade (2003, p. 27). Dessa relação dialógica entre esses textos Lygia vai delineando a sua indignação ao “invasor da vontade”, isto é, o “político-invasor” que não respeitando os nossos direitos invade a nossa liberdade, comprometendo-a. E ante o sim do “comodismo e da servidão” dos que não conseguem reagir ao invasor resta apenas a desesperança e o medo nessa “cidade dos homens” maus, inescrupulosos de onde não se pode fugir: “Mas fugir para onde se a Miséria e a Violência (as irmãs gêmeas) estão em toda parte num só galope, montadas nos pálidos cavalos do Apocalipse”. E daí paira a dúvida “o homem ficou mais cruel ou ele foi sempre desse jeito mesmo?” (TELLES, 2009e, p. 59-60). A isso podemos também acrescentar a indagação de Drummond: “Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?”. Contra a ênfase ao capitalismo dessa nauseante sociedade materialista, nesse conto, Lygia Fagundes Telles dá à narradora a oportunidade de dizer “Não!”. Não ao político falando na rádio. Não ao hospital sem estrutura para acomodar os doentes. Um não que urge como uma revolta à marginalização do outro. Uma pequena palavra que é usada como “resistência de ferro” às injúrias da opressão política, um não que representa uma ação contra o sistema desumano que assola o terceiro mundo: “Não, Não... vou repetindo e no cansaço faço agora apenas um gesto meio vago para o mendigo que me aborda na calçada e que fixa em mim um olhar interpelativo” (TELLES, 2009e, p. 65). Por conseguinte, o não em evidência nesse conto lygiano reflete não somente uma resistência do ser perante a desordem social, também é uma forma de resistência da palavra artística, ou seja, é a própria literatura reagindo contra a ideologia dominante tal como uma flor que brota no asfalto e vai perfurando-o ao mesmo tempo em que abranda “o tédio, o nojo e o ódio”, conforme escreveu Drummond. E é por meio dessa palavra de resistência que Lygia Fagundes Telles constrói uma prosa de impacto e de ânsia, mas que também deleita-nos por sua.

(26) 25. intensidade e profundidade ao escrever tão bem sobre a condição humana. Que seria, então, essa condição humana narrada na obra lygiana? Ora, segundo Hannah Arendt (2007, p. 17), todo ser humano já nasce condicionado porque tudo no qual, no decorrer de sua vida, ele entra “em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Logo, na literatura lygiana, como na vida, todas as pequenas e grandes coisas, tanto no âmbito existencial como social, que de alguma maneira tocam a vida humana ou entra “em duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição humana”. Assim sendo, a narrativa de Lygia faz jus às palavras de Alfredo Bosi (2002, p. 135) quando afirma que a literatura “descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real”, uma vez que “por ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente”.. 1.2 Do medo ao mistério: a escritora por si mesma Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a responsabilidade com o imaginário, faço ficção em cima da ficção, ah! (Lygia Fagundes Telles). Lygia Fagundes Telles em depoimentos sobre o seu ofício e a sua obra costuma dizer que prefere ser amada a ser compreendida. Isso porque, para a ficcionista a recompensa do seu trabalho é o amor dos seus leitores, o que a faz se sentir honrada ainda em vida, enquanto que a compreensão de uma obra é difícil de ser alcançada, pois o sentido da palavra literária é bastante ambíguo, uma vez que “o escritor pensa em ambiguidade, o escritor contorna, ele também não abre muito o jogo, ele joga” (TELLES, 1996a). E assim, Lygia confessa: “eu sou uma jogadora”. Seu vício? A invenção. Sua aposta? As palavras. A escritora, então, atrai o leitor para o jogo conquistando-o por meio da palavra, deixando-o à vontade para construir suas reflexões sobre o que está explícito no texto e também sobre o que se encontra implícito. Aqui, autor e leitor interatuam como coniventes, como parceiros do ato criador “que é ansiedade e.

(27) 26. sofrimento. Busca e celebração” (TELLES, 2010d, p. 84). Mesmo sabendo que o público não é tão grande como o desejado – amarguras do subdesenvolvimento – Lygia, então, lança as suas fichas à sorte: “Se este livro não der certo. O outro dará. Lembro do meu pai: ‘Amanha a gente ganha’. É o jogo, é o jogo” (TELLES, 1998, p. 43). A autora arrisca-se porque para ela escrever é buscar “paraísos perdidos”, mas também é encontrar-se. Deste modo, ao tentar reconstituir um universo perdido, Lygia perscruta da memória às motivações que no início surgiram do medo e depois eclodiram no mistério da invenção. Assim sendo, para a ficcionista, “a invenção e a memória se misturam muito. É impossível fazer uma separação fria, calculada” (TELLES, 2014). Isso porque o imaginário se apodera do real, acrescentando-o, modificando-o, tornando a realidade em fantasia e nos deixando a dúvida: a memória se transforma em invenção ou a invenção se disfarça de memória? A resposta da escritora, é imprecisa: “Minha memória pode não ser minha memória, não tem importância o fato da realidade existir ou não ali. O importante é a sedução com o leitor” (TELLES, 2014). Quando questionada sobre a origem das suas histórias, a ficcionista costuma responder que as ideias de suas narrativas não têm uma procedência certa, algumas vezes pode ser fruto de um sonho, outras vezes de algo vivenciado por ela, também pode surgir a partir de uma frase ou notícia lida em algum lugar e até de uma imagem: “tudo é sombra. Mistério” (TELLES, 2010d, p. 116). Para Lygia não é simples explicar a raiz da sua criação, porque tudo parece meio obscuro e os detalhes são muitos, com “indevassáveis signos e símbolos”. Partindo do princípio de que o texto literário é formado a partir de três elementos essenciais: a ideia, o enredo e a personagem; a autora elabora uma metáfora a fim de ilustrar o seu processo criador: a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobre) a aranha e nhac! prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco (TELLES, 2010d, p. 82).. Na urdidura lygiana, portanto, a ideia pode ser despontada de qualquer lugar, a qualquer momento, da realidade ou da própria ficção. Sua trama é.

(28) 27. disciplinadamente tecida, revisada e se preciso reescrita, mas sem danos a essência primária do texto. Suas personagens, mesmo presas ou sugadas pela ideia (aranha) clamam pela liberdade, algumas até ressurgindo com novas faces, recusando o desfecho de suas histórias: “como se me pegasse pela manga e dissesse: olha, não fui bem aproveitada” (TELLES, 2007). Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (1998), a escritora fala de sua vocação exaltando o prazer de fazer o seu trabalho, assim como a imensa paixão que sente pela tessitura de seus textos e a atenção que dá à forma de suas narrativas. Minuciosa e rigorosa, Lygia considera seu ofício de escritora uma luta diária que se assemelha a uma luta de boxe: com a mesma garra para vencer, caindo e levantando para começar de novo, suando, dando o seu sangue, o seu melhor. Segundo Eric Nepomuceno (1997, p. 12), nessa batalha o adversário da ficcionista “são as emoções do leitor. Quando ele percebe, está exaurido, e nocauteado. Tudo feito de forma delicada, suave, misteriosa”. A delicadeza da escritura lygiana, no entanto, não impede a autora de tratar com crueza e realismo os problemas sociais, o que leva-a em Durante aquele estranho chá a pedir desculpas ao leitor “por não ser mais otimista quando lido com a crueldade. Com a violência e com o medo” (TELLES, 2010d, p. 83). Ante isso, a ficcionista usa uma estratégia para não perder o leitor, caso ele fique aborrecido com as chagas da sociedade sendo desveladas por meio da literatura: “recorro ao humor, quero a graça da ironia para que o leitor não fuja entediado, Espera um pouco! Eu peço a esse leitor. Espera que posso até ficar engraçada mesmo em meio dos acessos de indignação, afinal, não estamos no Terceiro Mundo?” (TELLES, 2010d, p.83). E vivendo na realidade de um país subdesenvolvido, Lygia, na condição de escritora e de mulher, sofreu com as repressões no decorrer do seu processo de crescimento pessoal e profissional. Na sua juventude, ela enfrentou preconceitos por escolher fazer duas faculdades consideradas de exclusividade masculina – Direito e Educação Física – e também por decidir escrever em prosa, o que para época era ofício reservado especialmente para os homens. Em entrevista a Ana Lúcia Vasconcelos, no ano de 1980, a escritora diz que nos quatro primeiros decênios do século XX, havia menos mulheres ousando escolas de homens, e ousando profissões masculinas. Poetisa podia, prosadora já era uma coisa.

(29) 28. esquisita, o pessoal estranhava. Havia naquela época poucas mulheres que quebravam este preconceito, este convencionalismo. A mulher quando escrevia devia ser uma poetisa para falar do homem, exaltar seu amor através dos versos. A mulher não podia ser a prosadora que tentasse trazer uma realidade que só os homens traziam. Elas tinham que se circunscrever a temas mais pueris, mais inocentes. Eu, quando comecei a escrever já fui tentando meus temas todos. O que, aliás, causou estranheza num crítico que disse: mas esta moça, esta menina – eu era muito jovem – escreve como um homem. Para mim foi o maior elogio (TELLES, 1980).. Ao longo de sua vida e carreira literária, Lygia rejeita os estereótipos atribuídos à mulher se distanciando do título de “mulher-goiabada” – expressão criada pela escritora para referir-se às mulheres acomodadas à submissão – e lutando pela libertação social e individual destas. A autora também prefere não falar de sua obra como uma “ficção feminina” que se diferencia ou se distancia da literatura masculina, porque, para ela, “em literatura, não se deve fazer distinção de sexo, só de qualidade” (TELLES, 1998). Visão compartilhada por Clarice Lispector (2010, p. 116), que, ao entrevistar Lygia Fagundes Telles, declara: “Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores”. Essa competência da ficcionista é autêntica porque ela não se limita a tratar em seus livros apenas das agruras femininas em uma sociedade patriarcal, ao contrário, sua literatura aborda sobre as aflições e também as alegrias do ser humano, independente do gênero. É pensando a condição humana que, com prudência e comprometimento, Lygia enfatiza que mesmo ante o azedume da vida é necessário não perder a fé, nem a capacidade de sonhar. Considerando-se uma espiritualista, a autora acredita no amor ao próximo como desencadeador de mudanças, por essa razão põe sua literatura como “uma ponte” entre ela e o outro e por meio dos seus escritos ambiciona: “Se eu puder ajudar o meu próximo, veja bem, no seu sofrimento, no seu medo, na sua luta que é a minha luta também, que é o meu medo, que também é o meu sofrimento, se eu puder ajudar com essa palavra, missão cumprida!” (TELLES, 1996a). Esse medo que é tão mencionado por Lygia e tão real na sua obra é o sentimento essencial da sua criação, porque através dele as fragilidades humanas ficam translúcidas e o contato com o outro se torna mais tangível. Se para a escritora a literatura é uma forma de amor, ao falar sobre nossas fraquezas ela mostra o poder da literatura de alcançar o nosso íntimo e nos inquietar, transformando-nos de alguma maneira. Deste modo, declara a escritora: “Diante de.

(30) 29. si mesmo, diante do papel o escritor se sente grande porque sua tarefa é digna. Pode ser corrompido mas não corrompe. Pode ser louco mas não vai enlouquecer o leitor, ao contrário, poderá até desviá-lo da loucura” (TELLES, 2010a, p. 150). Daí então, o mistério..

(31) 30. CAPÍTULO II DUAS CASAS, UM MESMO RETRATO: a desconstrução da família burguesa. A família é o lugar donde se procura desesperadamente fugir e o lugar onde nostalgicamente se procura refúgio. Mark Poster. A família, como o primeiro grupo social ao qual o indivíduo é instigado a se adaptar, é a responsável também pelos seus primeiros conflitos. No seio doméstico o ser em formação é posto diante de regras e limitações que o leva, muitas vezes, a querer evadir-se do lar em busca de caminhos próprios, longe da proteção ou imposições dos familiares. No entanto, como mostra Poster (1979, p. 9) na epígrafe deste capítulo, a família tanto pode ser ambiente de prisão como de abrigo, um fardo ou consolo: “E assim transcorrem as coisas no que tange à família, ora progredindo, ora retrocedendo, sem sinais de acordo no horizonte”. É exatamente essa falta de acordo que culmina mais na decadência do que na evolução da família que encontramos como temática recorrente na literatura de Lygia Fagundes Telles. Com ênfase voltada especialmente à questão dos desencontros afetivos entre os membros dessa instituição, as relações familiares na obra lygiana são instáveis, os laços não são firmes, ao contrário, são tão frágeis que chegam ao esfacelamento, muitas vezes sem esperança de serem refeitos. Como pode ser observado no conto “Antes do Baile Verde”, no qual uma filha opta pelo carnaval ao invés de ficar em sua casa cuidando do pai moribundo. Ou ainda no conto “A medalha”, em que mãe e filha vivem o dilema da incompreensão, do preconceito e do rancor, sem expectativa de reconciliação. Da mesma maneira, o conto “O espartilho” retrata a história de desentendimentos entre avó e neta, relação na qual imperam as mentiras, traições e o desejo por manter viva uma tradição familiar já perecida. Somando-se a essas narrativas e que também podem ser analisados sob essa temática destacamos os contos “Você não acha que esfriou?”, “O menino”, “Uma branca sombra pálida”, dentre muitos outros que trazem à reflexão a representação da família como uma instituição em decadência: uma.

(32) 31. família geralmente burguesa que apresenta uma estrutura abalada e principalmente dissimulada pela hipocrisia. Sendo assim, o argumento deste capítulo baseia-se na análise da representação literária da família nuclear burguesa, esta compreende um modelo que surgiu no século XIX e se consolidou no decorrer do século XX, que estruturalmente tinha no centro a figura do pai, como chefe, seguido da esposa/mãe e dos seus descendentes diretos, isto é, os filhos legítimos do casamento. Nesse tipo de família os papéis sociais do homem e da mulher eram bem delimitados: o pai era o símbolo máximo de autoridade e a mãe era o símbolo da ternura e devoção ao lar. Enquanto ao pai era dado o dever de prover o sustento financeiro da família, a mãe era a responsável por todas as atribuições domésticas: limpar e decorar a casa ou orientar os empregados quanto a isso, cuidar da alimentação e da saúde do esposo e dos filhos, educar a prole. Por essa razão, “as relações internas da família burguesa eram consideradas fora da jurisdição da sociedade. A família era um microcosmo privado, um santuário em cujos recintos sagrados nenhum estranho tinha o direito de entrar” (POSTER, 1979, p. 188). Nesse ninho doméstico, que tinha em sua base o princípio do amor romântico primeiramente entre o casal e depois se expandindo para os filhos, crescia os valores e preconceitos da nova classe dominante, fundamentada pelo capitalismo. E assim, no ambiente privado do lar burguês, pais e filhos construíam uma relação de ambivalências e contrastes: autoridade paterna versus subserviência materna; autonomia dos pais versus obediência e insatisfação dos filhos. A esse respeito, Poster (1979, p. 195) explica que: A família burguesa deve ser entendida não apenas como um progressivo e moralmente benéfico ninho de amor, de domesticidade, de “desejo de ser livre” e de individualismo, mas também na medida em que constituiu um padrão emocional particular que serviu para promover os interesses da nova classe dominante e registrar de um modo sem paralelo os conflitos de idade e sexo. Na família burguesa, nasceram novas formas de opressão de crianças e mulheres que dependiam de mecanismos críticos de autoridade e amor, de intensas emoções ambivalentes.. Ante o exposto, vale ressaltar que esse modelo de família na narrativa lygiana não é sólido e aos poucos vai sendo desconstruído. Em sua obra, Lygia Fagundes Telles problematiza a questão das relações familiares em meio às.

(33) 32. grandes mudanças sofridas pela sociedade no século XX, transformações essas que surgiram especialmente por causa da globalização que, segundo Anthony Giddens (2007, p. 16), contribuiu grandemente “para o estresse e as tensões que afetam os modos de vida e as culturas tradicionais”, ameaçando também a estrutura da família. Assim, a autora traz à tona questões como a ausência e o esmaecimento da figura paterna; também coloca a mulher, mãe ou filha, no cerne da sustentação familiar, tanto econômica como moralmente; escreve sobre a falta de diálogo e de amor entre pais e filhos e mostra o quanto as relações parentais vão se tornando cada vez mais frias, distantes enquanto os seres estão cada vez mais individualizados, cada vez mais solitários. Deste modo, a crise na família é o conteúdo social que movimenta os enredos de Ciranda de Pedra e Verão no Aquário, sendo, portanto, essencial para a estrutura e interpretação dessas obras. Isto posto, neste capítulo examinaremos de que maneira esse conteúdo é desenvolvido por Lygia, de modo a causar no leitor o efeito da verossimilhança. Para tanto, veremos como são construídos os laços familiares nesses romances lygianos, isto é, como são organizadas as famílias e de que maneira essas obras se constituem como romances representativos da vida e da sociedade, considerando o social “como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO, 2008, p. 17).. 2.1 Romances representativos: o desvelar da família por meio do espaço-simbólico. Com efeito não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício. (Antonio Candido). Lygia Fagundes Telles (2005), em uma de suas entrevistas, comenta que seu processo criativo parte de “uma observação apurada” da sociedade para em.

(34) 33. seguida entrar em ação “a imaginação”. A escritora que diz arquitetar suas denúncias sociais de maneira “disfarçada” por “certa névoa de sombra ou de mistério” demonstra ter consciência da integração artística entre o estético e o real. A respeito da consciência social do escritor e de sua liberdade criadora, Candido (2008, p. 83), em Literatura e Sociedade, esclarece que o escritor “é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade [...], mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores”. Assim, ao construir seu universo literário a partir de reflexões sobre a realidade, organizadas por meio de um método particular, o escritor abre o caminho das possibilidades para que o leitor possa ser instigado pela impressão de verdade ocasionada pelo texto, isto é, pela verossimilhança. A verossimilhança que, de acordo com Luiz Costa Lima (2000), é bastante “subjetiva” é, de igual modo, ambígua, isso acontece porque em literatura não é necessário que a representação parta de algo concretamente verdadeiro para que “pareça” verdade. Para o crítico, é a semelhança do fictício com o mundo real que eterniza o fascínio de uma obra de arte sobre o público, uma vez que “a imanência da obra sempre dependerá de um argumento que a aproxime do verossímil” (LIMA, 2000, p. 67). É desse ‘parecer sem ser’ que nasce o paradoxo entre mímesis e verdade, pois ao mesmo tempo em que elas se assemelham também se diferenciam, visto que a ficção não reproduz a verdade: “basta a mímesis manter um resto da verdade [...], para sobre este resto, criar sua diferença” (LIMA, 2000, p. 63). Sobre esse assunto, Candido (2004, 2008) explica que a verossimilhança é motivada pela organização coerente do texto literário, assim, a relação da mimese com a realidade só se torna eficaz quando o artista consegue transpor esse paradoxo por meio da técnica. Isso significa que o objeto da representação literária é proveniente da realidade, no entanto, ele somente torna-se verossímil quando se transforma em parte integrante da estrutura da obra. Os elementos sociais atuam como “formadores da estrutura” e são relevantes para a compreensão da obra literária, mas não são determinantes, pois a impressão de verdade causada pela ficção “pressupõe o dado real, mas não depende dele” (CANDIDO, 2004, p. 39)..

Referências

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