• Nenhum resultado encontrado

3 A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO REGIME DEMOCRÁTICO E O PODER COMO

3.1 As Raízes do Simbólico

A ideia de “dimensão simbólica” da sociedade, dos direitos e do poder não é autoevidente, apesar de os termos “simbólico” e “símbolo” serem objeto de uso frequente nas diversas áreas da produção cultural. É curioso que o emprego dessas expressões seja muitas vezes feito desacompanhado de uma predefinição de seu sentido, como se estivéssemos diante de expressões de significado unívoco, partilhado “universalmente” pelos seus utentes. Isso porque, como anota Marcelo Neves, “simbólico” pode ser considerado um dos mais ambíguos termos da semântica social e cultural.144 Para que possamos, então, utilizá-lo com alguma consistência, é preciso oferecer uma definição prévia do respectivo sentido. A concepção de “simbólico” utilizada aqui – para designar um plano, um campo, uma dimensão, uma matriz ou um polo145 do social (da sociedade) e do político (do poder e do Direito) – seguirá o sentido que Claude Lefort lhe empresta. Ainda assim há um problema: está muito longe de ser tarefa fácil definir esse sentido na extensa e predominantemente ensaísta obra lefortiana. Hugues Poltier, um dos poucos intérpretes do pensamento do filósofo político francês, alerta para essa dificuldade, referindo que a noção de simbólico é uma daquelas “mais ou menos obscuras” de que lança mão o autor.146

A própria origem ou filiação filosófica da dimensão simbólica em Lefort é alvo de controvérsia. Bernard Flynn147 e Warren Breckman148 – também intérpretes da obra

144 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 5. 145 Essas expressões – quando referidas à adjetivação “simbólica” – serão empregadas indistintamente.

Lefort não se preocupa em delimitar o alcance semântico de cada uma delas. O importante, como veremos, é termos presente a noção de que o simbólico se relaciona à representação do poder e da sociedade, bem como estarmos seguros acerca do modo pelo qual essa representação opera. Creio, portanto, que a opção por utilizar “plano”, “campo”, “dimensão”, “matriz”, “polo” ou (merleau- pontyanamente falando) “ordem” de maneira intercambiável não prejudicará o argumento do trabalho, desde que fique claro – insisto – o modo como funciona o simbólico no exercício do poder. 146 Assim como “lugar do poder”, “formalização e colocação em cena”, “determinação-figuração” do lugar do poder, dentre outras um tanto enigmáticas expressões lefortianas. Vide: POLTIER, Hugues. Claude Lefort: el descubrimiento de lo político. Trad. Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005. p. 40.

147 FLYNN, Bernard. Lefort y lo político. Trad. Gabriel Merlino. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. p. 171 e 228 e 230.

148 BRECKMAN, Warren. Lefort and the Symbolic Dimension. Constellations, [S.l.], v. 19, n. 1, p. 30- 36, 2012.

lefortiana – enxergam alguns ecos de Lacan nessa construção (advindos da diferenciação lacaniana entre real, simbólico e imaginário), mas ambos enfatizam que não se trata de uma influência marcante, direta, sem derrogações. Breckman, por exemplo, sustenta ser o engajamento de Lefort com Lacan relativamente superficial.149 Isso nos leva, quase que em um movimento natural, a buscar as raízes do simbólico lefortiano em seu mestre Merleau-Ponty. Essa é a postulação de Marilena Chaui, que inclusive rejeita a possibilidade de Lacan ter sido o responsável por essa noção em Lefort.150 A “ordem” simbólica é trabalhada já no início da frutífera carreira merleau-pontyana, mas é possível notar a permanência dessa ideia – ainda que implicitamente – na transgressora e tardia noção de “carne” do social (há pouco descrita). O simbólico, então, aparece no livro “A estrutura do comportamento”151 vinculada a um debate que não deixa de perpassar toda a obra do autor, debate esse travado com a – por ele chamada – “tradição cartesiana” (formada, como ressalta Chaui,152 pelos dualismos “corpo-consciência”, “fato-ideia” e “sujeito-objeto”,

149 “As with Merleau-Ponty, Lefort’s engagement with Lacan was, I think, relatively superficial. Consider his rather imprecise usage of key Lacanian terminology. Of Lacan’s triadic distinction between symbolic, imaginary, and real, it is really only the ‘imaginary’ that Lefort periodically uses in Lacan’s sense, as, for example, in the essay ‘The Image of the Body and Totalitarianism.’ Other times, he seems to be using ‘imaginary’ in a way that seems closer to Castoriadis or even just in the ordinary sense of the imagined. [...] We can note that this sets Lefort at some distance from Lacan, who distinguished between ‘reality,’ which is what society designates as real, and the ‘real,’ which is beyond symbolization, indeed even beyond the possibility of symbolization. Lefort’s notion of the real is actually closer to the Lacanian definition of a symbolically instituted ‘reality’ than to the Lacanian ‘real.’ A real beyond all symbolic orders is not a concern for him, nor does he thematize an unsymbolized and unsymbolizable real as a permanent source of disruption and trauma for the symbolic order in the way that is so fundamental to the political thought of Ernesto Laclau and Slavoj Zizek.” Ibid., p. 31-32.

150 Em intervenção oral feita por ocasião de um colóquio em homenagem a Claude Lefort (Colóquio Internacional: Claude Lefort: a invenção democrática hoje), realizado pela Universidade de São Paulo entre os dias 13 e 16 de outubro de 2015, Chaui sustenta que estaria equivocado “atribuir a distinção entre simbólico, imaginário e real à formulação de Lacan. Não. Lacan deve essa formulação a Merleau-Ponty, na ‘A estrutura do comportamento’ (a distinção entre a ordem física, a ordem vital e a ordem humana). É a ordem humana que introduz o simbólico. E Merleau-Ponty vai definir o simbólico como a relação com o ausente. E por causa dessa relação com o ausente, ele vai dizer ‘onde eu vejo o simbólico?’: no trabalho, na linguagem, na história, no ato revolucionário. A relação com o ausente, portanto, é a relação com o contingente, é a relação com o não-ainda. E é isso que depois, já nos artigos que Lefort está escrevendo para o ‘Tempos Modernos’, nos anos 1940, isso já se anuncia com a noção do ‘vazio’. Está sendo anunciado desde lá. E é só depois que o Lacan se apropria disso, ligado ao trabalho de Lévi-Strauss, que vai ter essa configuração [...]. Então, digamos, [...] a história conceitual que leva Lefort na direção do ‘lugar vazio’ não é o Lacan. É o Merleau-Ponty e a ordem simbólica. E, ao contrário, é o Lacan que é devedor dessa história”. A intervenção da autora ocorre a partir das duas (2) horas e nove (9) minutos de duração do vídeo. MESA 01 - Democracia Lefortiana. São Paulo, 7 nov. 2015. (146 min). Apresentado no Colóquio Internacional: Claude Lefort: a invenção democrática hoje. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4DJnZNvxmGg&t=7910s>. Acesso em: 7 jun. 2018.

151 MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 189-200 e 250-286.

dualidades que marcaram o pensamento ocidental com as filosofias da consciência e o objetivismo científico). Para que possamos compreender, pelo menos minimamente, o simbólico em Merleau-Ponty, é necessário que tenhamos presente o que significa para o filósofo o termo “estrutura”.

O conceito de “estrutura” exsurge como tentativa de alcançar uma nova racionalidade, livre do intelectualismo e do subjetivismo filosóficos, bem como do realismo e do objetivismo científicos. Uma tentativa, pois, de reatar os laços entre a atividade filosófica e a científica por meio de “uma ontologia em que as coisas e as ideias, os fatos e as significações, o mundo e o pensamento se apresentem como dimensões simultâneas de um ser indiviso e internamente diferenciado”. Esse o papel da estrutura: um caminho fora da correlação sujeito-objeto, historicidade imanente, posição e reposição de uma unidade global e inacabada, que carrega em si mesma sua produção. Nem coisa nem consciência, a estrutura é “forma”, mas não uma espécie de “dom que viria a dar forma à matéria caótica, imprimindo-lhe do exterior um sentido que lhe é estranho”. A estrutura, ainda assim, é forma, mas o é enquanto “sentido encarnado”, enquanto produção de uma inteligibilidade espessa que se realiza anteriormente à reflexão. Os instrumentos de conhecimento – modelos científicos elaborados para alcançar a estrutura – são exigidos pela própria estrutura, que funciona, nesse aspecto, como um princípio interior de distribuições observáveis, sem ser – ela mesma – observável.153 Merleau-Ponty compara essa característica da estrutura com as faces de Janus: de um lado, é sentido, porquanto organiza os elementos que a constituem por meio de um princípio interior; de outro, é opaca, ou seja, o sentido que carrega é indefinido.154 Chaui interpreta essa natureza “jânica” da

a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. VII.

153 CHAUI, Marilena. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. In: CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 218, 223 e 229.

154 A tradução dessa – em alguma medida – enigmática passagem está assim publicada no Brasil: “Como Janus, a estrutura tem duas caras: de um lado, organiza os elementos que nela entram de acordo com um princípio interior, é sentido. Porém, este sentido que carrega é, por assim dizer, um sentido pesado”. (MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. Trad. Marilena Chaui. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 196. (Os Pensadores). No livro “A estrutura do comportamento”, o autor atribui essa opacidade do sentido da estrutura ao fato mesmo de não ser ela “nem coisa nem consciência”, nestes termos: “A estrutura do comportamento, tal como se oferece à experiência perceptiva, não é nem coisa nem consciência, e é isso que a torna opaca para a inteligência”. Eis aí o paradoxo constitutivo do fenômeno da estrutura: “o comportamento não é uma coisa, mas também não é uma ideia, não é o invólucro de uma pura consciência e, como testemunha de um comportamento, não sou uma pura consciência. É justamente o que pretendíamos ao dizer que ele é uma forma. Encontramos pois com a noção de ‘forma’ o meio de evitar as antíteses clássicas tanto na análise do ‘setor central’ do comportamento quanto na de suas manifestações visíveis. Geralmente essa noção não nos põe em face da alternativa de uma filosofia

estrutura da seguinte e – ao que me parece – adequada maneira: “A opacidade exige o modelo, mas este, instrumento de conhecimento, não se confunde com aquilo de que é conhecimento. O modelo é a ‘objetivação manifesta’ de uma ‘organização latente’, e é esta e não aquela que deve ser denominada estrutura”.155

É, em suma, uma “nova maneira de ver o ser”, para além da metafísica substancialista ou “do dualismo da res cogitans e da res extensa”. Passamos, a partir da noção de estrutura, a vê-lo (o “ser”) como “ser de indivisão, pois as estruturas qualitativamente distintas são dimensões do mesmo ser”. Não devemos mais, então, falar em “ser posto” ou “ser constituído”, uma vez que não pode permanecer reduzido às categorias e aos conceitos que o entendimento lhe impõe. Em outras palavras, “com a estrutura, deixamos a tradição do que é posto ou constituído pelas operações intelectuais e alcançamos o há originário, mais velho do que nossas operações cognitivas, que dele dependem e que, esquecidas dele, imaginam constitui-lo”. Mas ainda mais importante do que isso (pelo menos para os fins desta investigação), a noção de estrutura também “nos afasta da tradição científica fundada em explicações causais de tipo mecanicista ou funcionalista ou em explicações finalistas”, aquelas que recorrem a princípios externos para (tentar) dar conta tanto da gênese como das transformações de uma realidade qualquer. A gênese da estrutura está nela mesma, dotada que é de um princípio interno e imanente de autorregulação. A estrutura também possui um princípio interno e imanente de transformação, sendo, por isso mesmo, “pregnante”, “fecunda”, “produtiva”, o que significa que carrega consigo o motor de seu próprio devir.156

Parece brotar dessas reflexões merleau-pontyanas uma amostra da influência que o respectivo autor exerceu sobre Lefort, notadamente sobre as suas ideias de

“político” e de “mise en forme da sociedade”, bem como sobre as suas críticas à

causalidade da ciência política. É interessante observar, acerca desse assunto, a forma como Merleau-Ponty mobiliza a categoria filosófica “estrutura” para pensar a sociedade. O autor, examinando a abordagem de Marcel Mauss acerca do fenômeno da “troca” entre os homens em tribos indígenas (e a leitura que dela faz Claude Lévi-

que justapõe termos exteriormente associados e de uma outra filosofia que vê em todos os fenômenos as relações próprias do pensamento. Mas, justamente por essa razão, ela é ambígua”. MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 199-200.

155 CHAUI, Marilena. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. In: CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 230. 156 Ibid., p. 231-233.

Strauss), ressalta que a “estrutura” é a maneira como a troca está organizada em um setor da sociedade ou na sociedade inteira. “Os fatos sociais não são coisas nem ideias: são estruturas”. Por isso, sustenta que “imaginar arquétipos imperecíveis que dominariam a vida de todas as sociedades possíveis seria [...] o erro da velha linguística, quando supunha num certo material sonoro uma afinidade natural para um sentido determinado”. Com efeito, “a estrutura não rouba a espessura ou o peso da sociedade. Esta é, ela própria, uma estrutura das estruturas”. E se a sociedade é, de fato, “a estrutura das estruturas”, Merleau-Ponty não vê como não poderia existir relação entre o sistema linguístico, o econômico e o parentesco ali praticados. Mas essa relação é sutil e variável, de maneira que a sociedade, na condição estrutura, “permanece uma realidade facetada, legitimando miras diversas”.157

Lefort também analisa, nas trilhas de seu mestre, o(s) sentido(s) por trás desse fenômeno da troca sob a forma de dons tal como captado por Maus e Lévi-Strauss. A troca, considerada um “fato social total” (ao mesmo tempo econômico, jurídico, moral, religioso e estético), revelaria a totalidade que caracteriza o social, uma espécie de espaço unificado de significados variados. Há um sentido vivido, profundo e anterior a toda reflexão no ato da troca em forma de dons. O intercâmbio, nessa linha de intelecção, supõe “uma experiência primordial graças à qual cada um se sabe implicitamente vinculado ao outro”. A própria ideia de que o dom deve ser restituído carrega em si a suposição de que o outro (o recebedor) agirá como o doador, de maneira que o gesto do retorno manifestado por aquele representa a confirmação da autenticidade do gesto deste. “O dom é, assim, ao mesmo tempo o estabelecimento da diferença e a descoberta da similitude”. Há, portanto, por trás dessas relações de busca por reconhecimento mútuo entre os homens, um movimento da coletividade que pretende comportar-se como uma espécie de “Eu coletivo”. Alerta, contudo, Lefort que esse “Nós” – não tendo, por evidente, o condão de abolir a pluralidade – só existe na medida em que cada indivíduo afirma sua subjetividade pelo dom. “O comportamento dos sujeitos empíricos não se deduz de uma consciência transcendental; esta, ao contrário, constitui-se na experiência”.158 É possível observar, mesmo nessas reflexões antecedentes ao “encontro” de Lefort com Maquiavel, o

157 MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. Trad. Marilena Chaui. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 195 e 197. (Os Pensadores).

158 LEFORT, Claude. A troca e a luta dos homens. In: LEFORT, Claude. As formas da história: ensaios de antropologia política. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes e Marilena Chaui. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 21-35.

embrião do que seria o desenvolvimento do político e de seu respectivo plano simbólico, os quais efetivamente viriam à tona anos depois na obra lefortiana.

O simbólico é, então, essa dimensão não puramente imanente, tampouco absolutamente transcendente que opera na estrutura que caracteriza a sociedade. É possível deduzir essa afirmação a partir da divisão em três distintas “ordens” que Merleau-Ponty faz no seu conceito de estrutura.159 Desse modo, sob a noção de estrutura, distribuem-se as ordens (1) física, (2) vital e (3) humana ou simbólica, que correspondem às três “dimensões do ser”. A estrutura física é um sistema de forças em estado de equilíbrio constante ou de mudança constante, no qual nenhuma lei pode ser formulada para partes isoladas, dadas as relações recíprocas entre os vetores que o compõem. A estrutura vital, por sua vez, é um “organismo”, de maneira que o equilíbrio aí não visa à manutenção da ordem dada, mas é criado pela relação do organismo com o ambiente, exprimindo o seu poder adaptativo e inovador. Essas duas ordens de estrutura não serão objeto de maiores considerações, porque desnecessárias ao argumento. A que interessará mais de perto é a dita “ordem humana”, definida como “estrutura simbólica” do comportamento, presente na percepção, na linguagem e no trabalho. “A estrutura na ordem humana é um movimento de transcendência, que põe a existência como poder para ultrapassar a situação dada por um comportamento dirigido para aquilo que está ausente”. Somente nessa dimensão é que se pode falar, portanto, em “história propriamente dita”. O comportamento, assim concebido, escava “as dobras do mundo”. Não há espectador puro nem ser puro. Também não existe um mundo conceitual evidente, tampouco mundo “em-si” claro e distinto. Mesmo assim, a estrutura simbólica não deixa de ser reflexionante, mas essa reflexão ocorre no corpo e não na consciência, corpo enquanto vidente e visível, preso no tecido do mundo, “sentinela silenciosa sob minhas palavras e meus atos”. O corpo, nessa perspectiva, acaba por inaugurar a própria estrutura simbólica, “destruindo a oposição do objetivo e do subjetivo porque situa o para-si no domínio que parecia pertencer ao em-si”.160

Em Merleau-Ponty, há uma propagação da reflexão corporal nas coisas. Ao se propagar assim, o corpo como que “descobre” o sentido presente tanto nelas (nas

159 MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 201-286.

160 CHAUI, Marilena. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. In: CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 234-241.

coisas) como nele próprio. “Quando o pintor diz que é visto pelas coisas em vez de serem elas vistas por ele, põe a visão no próprio mundo – há uma visibilidade secreta nas coisas, que se transforma em visibilidade manifesta por meio do nosso corpo”.161 Essa – já referida – reversibilidade do sujeito e do mundo, enquanto relação expressiva, dá-se na estrutura simbólica. “Os outros e as coisas se oferecem como polos de desejo e a dialética humana nasce aí, na tentativa de apropriação e negação do mundo natural, fazendo emergir o mundo humano da linguagem e do trabalho”. A linguagem e o trabalho permitem ao homem ultrapassar os dados imediatos dos sinais e dos objetos de uso para recriá-los em uma nova dimensão. Eles revelam que a ação humana não pode ser reduzida à ação vital. Na estrutura simbólica, “há um sentido

imanente que vincula meios e fins, que determina o desenvolvimento da ação como

transformação do dado em fins e destes em meios para novos fins, definindo o homem como agente histórico propriamente dito”. Essa característica da ordem do simbólico permite a Chaui assim defini-la, em perspectiva com as demais ordens de estrutura: “a ordem física é atualidade; a ordem vital é virtualidade; a ordem humana é possibilidade. A estrutura física é presença; a vital, aderência; a humana, relação com a ausência”. A ordem de estrutura simbólica possibilita, portanto, a descoberta do possível, e o que a caracteriza não é tanto a criação de uma “segunda natureza” (econômica, social ou cultural, para além da biológica), mas – antes de tudo – a capacidade de ultrapassagem de estruturas criadas, seja negando-as, seja criando outras novas.162 Esse movimento é visível nos produtos do trabalho163 humano.

161 Ibid., p. 242. Sobre o tema, para melhor compreensão, vale trazer a literalidade de passagem do pensamento do filósofo francês: “Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer... Ora, uma vez dado esse estranho sistema de trocas, todos os problemas da pintura aí se encontram. Eles ilustram o enigma do corpo e ela os justifica. Já que as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo, cumpre que sua visão se produza de alguma maneira nelas, ou ainda que a visibilidade manifesta delas se acompanhe nele de uma visibilidade secreta: ‘a natureza está no interior’, diz Cézanne. Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão a uma certa distância diante de nós, só estão aí porque despertam um eco em nosso corpo, porque este as acolhe”. MERLEAU- PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves e Maria Ermantina Gaivão Gomes