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Diferentemente do que se pensa, a rabeca na atualidade não é mais um instrumento destinado somente a festividades e manifestações populares. O instrumento, quase exclusivamente de tradição oral, pode ser encontrado hoje em diversos outros ambientes musicais, como o da música pop e da “world music” – música do mundo (SANTOS, 2011). A tendência musical das últimas décadas – de uma mistura de estilos e sonoridades – tem contribuído para que a rabeca seja incorporada em novos cenários da música brasileira, ainda que nem tanto nas áreas do estudo científico (SANTOS, 2011).

Lima (2001) conclui que:

[...] há um determinado tipo de música de rabequeiros que gradativamente se transfere para a periferia das médias e grandes cidades, em função do êxodo rural, provocado pelas sucessivas crises na economia agrária nordestina. Nesse ínterim, observou-se que jovens músicos de centros urbanos começam a tocar rabeca em grupos musicais, cuja formação tem por base a guitarra, baixo elétrico, bateria, violão, etc (LIMA, 2001, p. 1).

Isso mostra que a rabeca passa por uma aceitação maior do ouvinte e do intérprete, que ao entrar em contato com essa sonoridade marcante, percebe que o instrumento tem um importante valor musical.

O renascimento de instrumentos esquecidos (como o violino barroco e a rabeca) e a “estrangulação” da linguagem musical do Ocidente, consequência da “cultura do progresso”, formam um contexto que possibilitou o surgimento, de um lado, da Performance Historicamente Informada, que permite que antigas práticas musicais sejam resgatadas, ao lado de um intérprete que age agora como coautor da obra musical; e de outro lado, uma ressignificação de práticas musicais regionais, que enfrentam a indústria cultural denominada de “world music” (FIAMINGHI; PIEDADE, 2009).

Devemos falar de duas manifestações artísticas ocorridas no Brasil que, de diferentes formas, contribuíram para novos olhares sobre a rabeca. A primeira, surgida na década de 1970, foi encabeçada por Ariano Suassuna e denominada Movimento Armorial. O movimento visava à realização de uma arte erudita calcada nas raízes populares. Tendo representantes em diversas áreas artísticas, como a literatura, o teatro, o cinema e a dança, na música um de seus grupos mais expressivos foi o Quinteto Armorial, contendo alguns dos instrumentos mais representativos da cultura brasileira: flauta/pífano, rabeca/violino, violão, viola sertaneja e marimbau nordestino. Antonio Nóbrega, o rabequeiro e violinista do grupo, com sua

formação erudita e experiência na música popular contribuiu para que a rabeca fosse divulgada dentro e fora do país, no quinteto e posteriormente em sua carreira solo, com seus espetáculos repletos de dança, teatro e música, acontecendo desde 1976.

A segunda manifestação foi o Mangue Beat, movimento originado no Recife do início dos anos 90, com uma música influenciada por ritmos regionais nordestinos (maracatu, coco etc.), o funk, o hip hop, o rock e a música eletrônica, e tendo como principal expoente Chico Science, líder do grupo Nação Zumbi, que segundo Tesser (2007, p 72) era um nome “forte em sentido: uma nação de escravos rebeldes”. Entende-se o movimento como uma revolta de uma camada social que queria também fazer o uso da palavra, e a autora define: “o artista do Mangue Beat afirma a sua condição e se serve da arte como um grito de inserção” (TESSER, 2007, p. 74). A rabeca aparece com o grupo Mestre Ambrósio, tocada pelo músico Siba, filho de Mestre Salustiano, rabequeiro mestre de cavalo marinho. O nome Mestre Ambrósio vem justamente de uma figura do cavalo marinho, realçando as raízes do grupo.

Desses dois importantes movimentos da música brasileira, ambos ocorridos no nordeste do país, podemos ter acesso exemplos sonoros de diversos modos de se tocar rabeca. De um lado, o aspecto medieval/ibérico/nordestino do Quinteto Armorial, e de outro, o jeito regional brasileiro do Mestre Ambrósio, com pitadas generosas de forró, caboclinho e outros ritmos brasileiros.

Como visto anteriormente, as rabecas brasileiras, em sua forma original, não foram concebidas para apresentações artísticas de técnica virtuosística, e sim para suprir a necessidade de um grupo musical de determinadas manifestações populares. Por muito tempo, a rabeca esteve associada ao teatro de mamulengos, bailes de forró e aos repentistas nordestinos, como Cego Oliveira, de Juazeiro do Norte (CE) e Fabião das Queimadas (RN), ambos já falecidos (LIMA, 2001). Lima (2001) menciona que aos poucos, a rabeca se distanciou dessas manifestações, causando certo pesar nos rabequeiros mais antigos, que não encontram mais lugar para desenvolver suas atividades.

Se poucos são os relatos de rabequeiros repentistas ou cantadores de romances, de outra parte, muitos rabequeiros citam que com a popularização da sanfona no interior do Nordeste, a rabeca foi gradativamente perdendo seu espaço nos bailes de forró. Isto demonstra que a especialização dos rabequeiros aqui no Nordeste do Brasil foi, gradativamente, tornando-se a de músicos participantes de conjuntos instrumentais que fazem a música de alguns folguedos (LIMA, 2001, p. 9).

Hoje, no entanto, existem algumas orquestras de rabeca pelo país, como a Orquestra de Rabecas do Sertão (Montes Claros – MG), com 16 integrantes; a Orquestra Rabecônica do Brasil (Curitiba – PR), composta por 40 instrumentos entre rabecas de diversos tamanhos

(tamanho de rabeca normal, tamanho de viola erudita, de cello e de contrabaixo), machetes, machetões, violas (de fandango), adufos, caixas, tamancos e colheres, um projeto do Mestre Aorélio da Rabeca, importante músico do fandango do litoral paranaense. Também existem outros grupos, como a Orquestra de Rabecas Cego Oliveira (CE) e a Orquestra de Rabecas de Pedras de Fogo (PB), todos desenvolvendo desde um trabalho com músicas tradicionais até, como no caso da Orquestra Rabecônica, uma opereta popular, Açucena, com arranjos musicais de Rodrigo Melo e Carla Zago.

Sendo um instrumento que possui vários modelos, como o de cocho, de cabaça, de três cordas, e até de bambu, que pode ser ouvida no CD Crisálida (1996), de Roberto Corrêa (rabeca de bambu executada por José Eduardo Gramani), também passou por experimentações de diversos artesãos. Podemos citar o exemplo de Chico Barbeiro (CE), que criou a “Rabeca do Sonho”, confeccionada de PVC, sem caixa de ressonância, eletrificada, e de Luiz Costa (CE), com sua rabeca de lata (SANTOS, 2011). No modelo de rabeca de lata, também encontramos João Fernando Arrais Serodio, com sua “Rabelata” de duas cordas.

As rabecas construídas em oficinas de luteria, atualmente, tendem a ser semelhantes aos violinos em sua construção. O ensino coletivo do instrumento pode ser a causa dessa semelhança, assim como a facilitação do processo de construção em uma escala maior (SANTOS, 2011).

O ensino coletivo de instrumento musical é uma atividade que vem crescendo cada vez mais em nosso país, através de vários projetos sociais que contemplam, entre outras áreas, a música. Santos (2011) se refere à tentativa, já no início dos anos 2000, de uma sistematização para o ensino da rabeca, realizada por Luís Mário Rocha Machado, que ministrou algumas aulas em sua casa, mas faleceu antes de desenvolver plenamente o projeto; e ao projeto Conexão Felipe Camarão, que na cidade de Natal proporciona a estudantes da rede pública oficinas baseadas na tradição oral do bairro (Felipe Camarão). Entre as diversas oficinas oferecidas, estão a de Boi de Reis, Musicalização de Rabeca e a de Luteria de Rabeca. Desde seu inicio, no ano de 2004, muitos professores já passaram pelo projeto, contribuindo para que conhecimentos e valores fossem acumulados ao longo do tempo, e para a realização de um ensino coletivo da rabeca através da tradição oral (SANTOS, 2011). Segundo o autor, a oficina de luteria foi criada para suprir a dificuldade que se tinha em encontrar artesãos de rabeca.

A Luteria completa o ciclo de aprendizado do instrumento: a história, a tradição, a execução e o fabrico da rabeca. Zé da Rabeca [rabequeiro, professor do projeto] comenta que um dos entraves para a implantação do projeto foi a dificuldade para se

conseguir um construtor de rabecas, e parece que esse ainda é um dos grandes problemas na luteria do projeto. [...] A verdade é que a luteria do Conexão não funciona plenamente; não há aulas, apenas reparos simples e ajustes feitos pelos próprios alunos. Contudo, Janildo [artesão de rabecas] vem irregularmente nos finais de semana, e conserta uma fila enorme de rabecas com danos mais sérios. [...] Todas as rabecas existentes no projeto são rabecas-violino. Um detalhe curioso, nas rabecas produzidas por Janildo para o projeto, consiste na variação de tamanho do instrumento, oscilando de acordo com comprimento e envergadura da criança. As demais são feitas em dimensões para adulto (SANTOS, 2011, pp. 58-59).

No estado do Pará também é possível encontrar a prática do ensino coletivo da rabeca, iniciativa que ocorreu principalmente pelo fato de os rabequeiros e artesãos de rabeca da região estarem com uma idade avançada e não existirem discípulos, o que tornava preocupante o futuro da principal manifestação da região: a Marujada de Bragança, onde a rabeca exerce um papel fundamental (ALIVERTI; MORAES; SILVA, 2007). Assim como no projeto Conexão Felipe Camarão, em Bragança o ensino coletivo da rabeca foi complementado pela oficina de construção de rabecas.

Além dessa preocupação em passar os ensinamentos de como tocar o instrumento a novos discípulos, atualmente um dado curioso a ser observado é o de que os antigos rabequeiros estão deixando a rabeca para utilizar o violino. A falta de artesãos para construir rabecas, o preço acessível do violino e sua sonoridade diferente são algumas causas dessa troca, que é justamente o oposto do que acontece com os novos rabequeiros, que procuram rabecas “de verdade”, e não violinos (SANTOS, 2011).

Alguns dos novos artesãos dispõem de recursos materiais, como ferramentas de precisão, a que os rabequeiros mais antigos, isolados do mundo urbano, certamente não tiveram acesso. É provável que não fosse mesmo necessário para a fabricação de suas rabecas do passado. Contudo, o acesso à informação escolar de luteria (às vezes, informalmente) por esses novos artesãos parece ter dado mais uniformidade aos instrumentos – provavelmente com o fim de atender à demanda das novas gerações de rabequeiros e das recentes “escolas de rabeca”. Algumas são projetos governamentais de inclusão social; outras, de iniciativa mista e incluem outras atividades. O fato é que esses novos rabequeiros do mundo pop parecem necessitar de instrumentos mais práticos e rabecas mais versáteis, recorrendo a microafinadores, cravelhas macias e espelho anatômico capazes de atender às dimensões de concerto, às vezes exigindo virtuosismo do instrumento (SANTOS, 2011, p. 28).

Apesar de encontrarmos a rabeca em diversas manifestações populares, Lima (2001) comenta que a participação de rabequeiros nessas manifestações vem diminuindo, e algumas delas não se encontram nem registros, como o caso de repentistas rabequeiros, ou bailes de forró ao som da rabeca (LIMA, 2001). Segundo o autor, há um risco desses folguedos

desaparecerem; os mesmos são mantidos no Nordeste, por exemplo, aparecendo em periferias de centros urbanos, trazidos há décadas por imigrantes da zona rural.

É possível que algumas das manifestações mais importantes do Brasil sobrevivam, no futuro, apenas com o incentivo de algumas organizações e através de projetos e oficinas, como o caso da Conexão Felipe Camarão, com o resgate do tocar e construir rabecas.

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