• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ TAUAN GONZALEZ SPOSITO. RABECA: aspectos de sua identidade na música brasileira

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ TAUAN GONZALEZ SPOSITO. RABECA: aspectos de sua identidade na música brasileira"

Copied!
42
0
0

Texto

(1)

TAUAN GONZALEZ SPOSITO

RABECA:

aspectos de sua identidade na música brasileira

MARINGÁ 2012

(2)

TAUAN GONZALEZ SPOSITO

RABECA:

aspectos de sua identidade na música brasileira

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Música da Universidade Estadual de Maringá (UEM), como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Instrumento - Violino.

Orientador:

Prof. Dr. Marcus Alessi Bittencourt

MARINGÁ 2012

(3)

BANCA EXAMINADORA

Aprovado em 13/11/2012

___________________________________________

Professor Dr. Marcus Alessi Bittencourt Departamento de Música

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

___________________________________________

Professor Paulo Egídio Lückman Departamento de Música

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

___________________________________________

Professor Ms. Rael Bertarelli Gimenes Toffolo Departamento de Música

(4)

AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo aquilo que me fez e por todas as oportunidades que me apresentou, sou infinitamente grato.

Aos meus pais, Nilceia e João, e à minha irmã, Arinê, que em todos os momentos me apoiaram em minhas escolhas.

À minha namorada, Ana Paula, que foi essencial para a conclusão do trabalho.

A meu professor, Dr. Marcus Bittencourt, que influenciou não somente com suas orientações, mas com sua experiência como compositor.

À amiga e professora Jacqueline, e ao amigo João Gabriel, pessoas muito importantes em minha vida, que me ajudaram a tomar a decisão de seguir pelo caminho da música.

A Silvana, que com suas palavras me ajudou a superar diversas barreiras. A todos aqueles que acreditaram em mim.

(5)

RESUMO

A rabeca, um instrumento de origem anterior à colonização do Brasil, caracteriza-se como uma peça notável no folclore e na música do país. Sua contribuição em manifestações populares como o cavalo-marinho, o fandango caiçara e a folia de reis, por exemplo, é marcante, e algumas características ressaltam sua importância no cenário musical. Apesar dessas peculiaridades e de uma longa história, ainda hoje muitas pessoas confundem a rabeca com uma espécie de “violino malfeito” ao compará-la, tanto no formato quanto na sonoridade, com seu primo “erudito”. O presente Trabalho de Conclusão de Curso se desenvolve a partir dessas comparações, investigando o fato de a rabeca ser, ou não, uma imitação de outro instrumento, passando por questões sobre sua origem, sua construção e presença na música brasileira, assim como aspectos de sua sonoridade, forma de execução e uma visão sobre o instrumento na atualidade. Pretende-se contribuir com o estudo e o conhecimento sobre a rabeca.

(6)

ABSTRACT

The rabeca, a musical instrument originated before the Brazilian colonization, is a notable piece of the folk and music of this country. Its contribution in popular manifestations like the cavalo-marinho, the fandango caiçara and folia de reis, for example, is outstanding, and some of its characteristics show its importance in the musical scenario. Despite these peculiarities and long history, even today many people mistake the rabeca with a kind of “ill-made violin” when compare it to the forms and sonority of its “classical” cousin. This Course Conclusion Assignment is developed by comparison, investigating wether or not, rabeca is an imitation of other musical instrument, going through questions about its origins, construction and presence in Brazilian music, and also aspects of its sonority, way of playing and a vision about this instrument nowadays. It is intended to contribute with the review and knowledge about the rabeca.

(7)

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Rabeca construída por Anísio Pereira . ... 10 Figura 2 - Parts of the violin (modificada) ... 21

(8)

LISTA DE TABELAS

(9)

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ... 9 2 ORIGEM ... 14 3 CONSTRUÇÃO ... 17 4 MANIFESTAÇÕES ... 23 4.1 CAVALO-MARINHO ... 23 4.2 FOLIADEREIS ... 24

4.3 DANÇADESÃOGONÇALO ... 24

4.4 FANDANGO ... 25

4.5 MARUJADABRAGANTINA... 26

5 O SOM E A PRÁTICA DE EXECUÇÃO DA RABECA ... 27

6 A RABECA HOJE ... 31

(10)

1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história, o homem apresentou diversos modos de se expressar através dos sons e da música. Uma das maneiras encontradas foi através da criação e do desenvolvimento de instrumentos musicais, divididos em vários grupos, como o dos instrumentos de percussão, os instrumentos de sopro, de cordas, instrumentos eletrônicos e atualmente, o computador. A rabeca é um instrumento de cordas em que o som é produzido principalmente pela fricção de um arco contendo cerdas animais ou sintéticas, como o náilon.

Por todo o mundo encontram-se instrumentos com o som produzido pela fricção de um arco, sendo eles dos mais variados tipos de construção, execução e sonoridades. O sarangi e a dilruba (Índia), o rebab (Marrocos, Pérsia e países muçulmanos), erhu (China), hardanger

violin (Noruega), nyckelharpa (Suécia) e a rabeca, utilizada por todo o nosso país e

encontrada como rabeca chuleira (Portugal) e violín, violón, virucho, chamula, etc (países latino-americanos) são exemplos dessa diversidade musical.

A rabeca é uma herança árabe na cultura ocidental, sendo utilizada e desenvolvida na Península Ibérica antes mesmo da colonização do Brasil. Desde sua chegada ao país, a rabeca se manteve em ambientes isolados da industrialização e urbanização (FIAMINGHI; PIEDADE, 2009), sendo encontrada em grande parte das manifestações populares ocorridas no país. Somente a partir de algumas décadas atrás o instrumento passou a ganhar novas funções sociais, introduzida em novos meios e não fazendo parte apenas das manifestações folclóricas, mas também com sua utilização por músicos de diversas vertentes, entre os quais Antonio Nóbrega, Siba e Luiz Paixão.

Pode-se dizer que em cada região ou tipo de música (inclusive por cada rabequeiro), a rabeca é tocada de uma maneira diferente. São muitos os sons produzidos na rabeca, sendo praticamente impossível estabelecer um padrão, uma maneira “correta” de fazer música com o instrumento. Entra em questão a não-padronização da rabeca, uma de suas características mais marcantes. Gramani (2003) comenta que essa não-padronização atinge todos os pontos do instrumento, desde a maneira de se tocar à sua maneira de ser construída.

Esse fator contribui para o resultado sonoro que se obtém com a rabeca. Diferentemente do violino, em que se espera um som potente, ao mesmo tempo límpido e equilibrado em graves e agudos, de uma rabeca o que se espera é uma surpresa. “O inesperado parece uma constante no trabalho de construção das rabecas, atitude [...] cada vez mais ausente no mundo da arte, tamanha a carga de fórmulas e receitas de como se fazer isto ou

(11)

aquilo” (GRAMANI, 2003, p. 14). E assim, tem-se que cada rabeca desenvolve um universo próprio.

Figura 1 - Rabeca construída por Anísio Pereira. Fonte: acervo pessoal.

Há quem diga que a rabeca é meramente um violino malfeito, levando em consideração apenas questões como sua sonoridade e seu formato, ambos próximos (num primeiro momento) ao do violino. Certas generalizações ocorrem inclusive em textos de origem acadêmica, como o estudo de Ubatuba nos cantos das praias – um estudo do caiçara

paulista e sua produção musical, realizado pela compositora Kilza Setti e publicado em 1985.

O trabalho, desenvolvido durante a década de 1970, aborda de forma muito competente as questões musicais do homem do litoral paulista, sendo um capítulo voltado aos instrumentos utilizados por eles, entre os quais a rabeca. A definição de “violino caiçara” adotada por Setti veio de uma análise do pensamento dos próprios músicos da região. A distinção entre as palavras “rabeca” e “violino” ocorre apenas pelo fato de uma ser mais antiga que a outra. Segundo Setti (1985), os rabequeiros da região litorânea de São Paulo deixaram claro que “rabeca” era uma denominação antiga, enquanto “violino” era mais atual, além de apontarem

(12)

para uma certa “rusticidade” em relação à rabeca e um aspecto mais “aperfeiçoado” do violino.

A autora constatou que além dessas, existem outras denominações que, na música “erudita”, tem outro sentido do adotado pelos músicos da região. É o caso da palavra tom, por exemplo. Para a população caiçara, tom é uma palavra “usada genericamente para distinguir uma feição sonora, seja no tocante a características de timbre, duração e altura” (SETTI, 1985, p. 126), explicando o fato de a rabeca ser referida como violino pelos músicos entrevistados. Quanto ao som de aspecto “rústico” da rabeca, pode-se apontar para um modo de fazer musical que não se relaciona com a sonoridade límpida e suave que um violino pode oferecer.

No Brasil, a rabeca está inserida em diversos ambientes e manifestações populares, como o cavalo-marinho, o reisado, a folia de reis, o lundu marajoara, o fandango caiçara e a dança de São Gonçalo. Segundo Gramani (2003, p. 12), “nas Folias de Reis, por exemplo, ela é indispensável. Se não houver rabequeiro disponível, pode-se até tocar, mas a rabeca vai fazer falta, a sonoridade da Folia não vai estar completa”. No instrumental do cavalo-marinho, a rabeca também é uma marca característica (MURPHY, 2008). Na música dessas manifestações se observam sonoridades que se fundem com o som da rabeca. O bater dos tamancos no fandango, por exemplo, é algo que está coerente com o universo da rabeca caiçara, assim como o som das violas (sertaneja ou caipira) são familiares ao instrumento de arco na folia de reis ou cavalo-marinho. Seria diferente se a música fosse um dos quartetos de cordas do compositor Joseph Haydn. Podemos entender que cada instrumento possui seu lugar e seu uso mais apropriado. É claro que não se excluem as possibilidades de uma interpretação “rabequeira” de música erudita, como o caso do disco Na pancada do ganzá (1996), onde Antonio Nóbrega interpreta o Concerto em Ré menor de Bach, originalmente escrito para dois violinos – na ocasião, tocado na rabeca e na flauta; ou então uma representação “erudita” da rabeca, como o caso de Mourão, de Guerra-Peixe, em sua versão para orquestra de cordas.

Pode-se comparar a música da rabeca com a música africana para se entender algumas questões sobre o trato sonoro. O historiador Roland de Candé (1978) em seu livro História

universal da música aborda alguns tópicos sobre as características da música africana. O

quarto tópico diz o seguinte:

Se os instrumentos falam, eles devem falar a língua da comunidade que os utiliza. É por isso que a confecção e prática instrumentais não obedecem, em parte alguma da África, a regras fixas. Cada instrumento reflete a cultura e a personalidade do

(13)

músico que o toca – ele é, em geral, aquele que o confecciona –, como o faria um timbre de voz ou entoações particulares. Também reflete a língua que está destinado a falar, e a afinação de um mesmo instrumento varia de um grupo linguístico a outro. A variedade dos timbres e suas singularidades importam mais que os refinamentos da confecção: serão utilizados os materiais mais simples, cuja sonoridade são naturais e familiares, podendo a habilidade dos músicos tirar um proveito extraordinário de qualquer corpo sonoro. O mais surpreendente, para nós, é a tendência de todas as músicas africanas a evitar os timbres puros e claros que buscamos com tanto cuidado. Por toda a parte, procura-se misturar o som quando ele é demasiado límpido, procura-se enriquecê-lo com ruídos, como se tempera uma comida insípida: peças metálicas que vibram com as cordas dos alaúdes ou as lâminas dos sanzas, chocalhos fixados nos pulsos dos músicos, apitos adaptados nas caixas e nos ressonadores de cabaça, ou grãos secos introduzidos dentro destas, anéis e penduricalhos no contorno dos tambores, etc. A mesma prática se encontra entre os negros dos Estados Unidos, em particular entre os cantores de blues, que deformavam o som de suas guitarras munindo as cordas de pequenos anéis metálicos móveis, entre o estandarte e o cavalete. As próprias vozes africanas raramente são claras e puras, sobretudo entre os profissionais. Nos grupos étnicos mais diversos, encontra-se a mesma preocupação de transformar a voz por meio de artifícios: ouvidos fechados, nariz tapado, vibração da língua, jodel (pigmeus, bosquímanos), ressonadores postos diante da boca, apitos, etc (CANDÉ, 1978, pp. 163-164).

Como podemos perceber, ruídos e sonoridades “estranhas” ao instrumento são aceitas e inclusive incorporadas na música africana. O caso da rabeca é parecido: o som “anasalado” e “áspero” que ressoa é algo de sua característica, e não deve ser entendido como um erro do tocador.

Esdras Rodrigues, em um texto extraído do livro Rabeca, o som inesperado, de Gramani (2003), nos conta um pouco sobre sua experiência com a rabeca:

Para que usar um “violino mal acabado”, mais difícil de se tirar som, quando se tem o próprio violino à mão? [...] Porém, quanto mais tocava a rabeca, mais percebia quão inadequada seria a sonoridade “sofisticada” de um violino, [...] a própria maneira de tocar, carregada do perfeccionismo erudito [...] provou ser alienígena ao vocabulário do grupo [Trovadores do Vale] (RODRIGUES, 2001, in GRAMANI, 2003, p. 37).

Lendo o texto nos encontramos com o pensamento errôneo de quem se depara com a rabeca pela primeira vez: uma tentativa falha de imitação do violino, um instrumento desvalorizado, violino popular. Essas generalizações são feitas a partir de um padrão estabelecido no que foi, há séculos, difundido e conhecido pelo mundo como referência sonora. Dessa maneira comparando os dois instrumentos, ao contrário de distinguir suas funções musicais e reconhecer a identidade própria que contém cada um deles (FIAMINGHI, 2008).

Levando em consideração informações como essas, o presente trabalho procura abordar as questões características da rabeca: sua construção, maneira de execução, origem,

(14)

assim como sua presença e importância em determinadas manifestações, para, por fim, responder à seguinte questão: a rabeca, afinal, é um violino malfeito?

Para tanto, a pesquisa bibliográfica feita para a realização do trabalho traz autores dentre os quais estão: Lima (2001), José Eduardo Gramani (2003), Fiaminghi (2008), Murphy (2008), Daniella Gramani (2009), Fiaminghi e Piedade (2009) e Santos (2011). Também foram utilizados materiais em áudio (CDs e LPs) e em vídeo (extraídos de endereços eletrônicos), para maior entendimento da prática musical dos rabequeiros e da sonoridade do instrumento.

No segundo capítulo do trabalho, o assunto abordado será a origem da rabeca – descendente direto da cultura árabe. No terceiro capítulo, aspectos sobre a sua construção serão apresentados: os costumes e o conhecimento dos artesãos, aplicados à sua maneira de construir a rabeca, contribuindo para a criação de um dos instrumentos mais característicos da cultura brasileira. O quarto capítulo tratará de algumas das manifestações populares em que podemos encontrar a rabeca como um dos principais instrumentos: tradições que ainda resistem à globalização excessiva em que vivemos. Questões sobre o som e a prática de execução da rabeca serão encontradas no quinto capítulo, que contém informações sobre seu modo de tocar, suas afinações e argumentos que justificam sua sonoridade peculiar. O sexto capítulo terá como assunto a rabeca no mundo contemporâneo: tendências, dificuldades e soluções que a música e a prática da rabeca presenciam nas últimas décadas.

(15)

2 ORIGEM

Em diversos aspectos existem certas limitações na pesquisa quando falamos de instrumentos populares com uma tradição quase que exclusivamente oral como a rabeca, a viola de cocho e a viola de buriti, por exemplo. Materiais escritos sobre suas trajetórias históricas são escassos, e muitas vezes, imprecisos. Fiaminghi (2008, p. 41) argumenta que “É natural nos depararmos com a completa ausência de registros acerca das práticas musicais que envolvem a rabeca no período romântico e também nos subsequentes”.

Devido a este fato, tirar conclusões referentes à origem da rabeca torna-se uma tarefa muito complicada, mantendo certas teorias em um meio hipotético: a maioria das evidencias sobre a origem de instrumentos de cordas friccionadas são oriundas de pinturas, esculturas ou alguma literatura; além disso, o instrumento possuiu inúmeras denominações, tamanhos e afinações ao longo da história (GRAMANI, 2009).

Fiaminghi (2008) aborda a questão da história do instrumento através de uma análise das raízes linguísticas:

Pela etimologia da palavra “rabeca”, chega-se em rabab, instrumento de origem árabe muito antigo, ainda hoje existente na música tradicional do Marrocos, cuja história confunde-se com a própria origem dos cordófonos friccionados por arco. Do

rabab ou rehbab derivam suas inúmeras variantes: rubeba, rebec, rabé, rabel, ribeca, rebeca. Tantas variações lingüísticas mostram uma das características deste

instrumento que se espalhou na área de influência árabe no Mediterrâneo: a não-padronização. A rabeca brasileira provém, portanto, desta longa linha que nos liga ao Oriente, por intermédio de nossos ancestrais ibéricos (FIAMINGHI, 2008, p. 156).

O instrumento árabe apresentado ainda é utilizado no Marrocos, e varia de duas a três cordas. O rabab pode conter um tampo de couro esticado, assim como se fazia em certas rabecas medievais, e é tocado sobre as pernas do músico ou apoiado em seu peito. Na época da ocupação árabe da Península Ibérica, enquanto os alaúdes eram instrumentos apreciados pela Corte, o rabab era de uso dos músicos de rua (FIAMINGHI; PIEDADE, 2009).

Um dos autores acrescenta que:

As culturas árabes, persa, hindu e do Oriente foram, de fato, as fontes de onde os músicos europeus aprenderam e copiaram seus inúmeros instrumentos e de onde moldaram suas formas instrumentais medievais, baseadas em variações que expandem determinadas figuras rítmicas e melódicas. Do saltério ao alaúde, das rabecas aos instrumentos de palheta, o traçado da origem destes e de outros instrumentos passa inevitavelmente pelas fronteiras externas do Ocidente. (FIAMINGHI, 2008, p. 104).

(16)

A presença dos árabes imprimiu na cultura ibérica influências em todas as áreas; a convivência de judeus, católicos e muçulmanos possibilitava trocas, sendo a rabeca um resultado desse intercâmbio (FIAMINGHI, 2008).

Os primeiros registros sobre as rabecas medievais datam de antes do século XIII, havendo semelhanças entre essas e a rabeca encontrada no Brasil hoje. Com relação à construção do instrumento, a técnica medieval ainda é aplicada nas rabecas brasileiras atuais: braço e corpo são esculpidos em um único bloco de madeira, trabalhado como uma espécie de “cocho” (SOARES, 2007), sendo que esses modelos tinham um formato de corpo arredondado, assemelhado a uma “pera”. Mary Remnant (1968-1969) conta que diversos escritores da Idade Média apontam para a afinação em quintas das rabecas de três ou duas cordas. Entretanto, o caso torna-se confuso tendo em vista as inúmeras imagens que retratam rabecas possuindo de uma a cinco cordas, e em vários outros casos, a presença de cavaletes sem curvatura alguma (REMNANT, 1968-1969). A autora chama a atenção para o fato de que com um cavalete desse tipo todas as cordas seriam tocadas juntas; com uma afinação em quintas justas, a sonoridade soaria repulsiva ao músico medieval, reforçando a ideia de que outra afinação seria necessária.

A atual utilização do bordão na música da rabeca também remete à prática musical da Idade Média (FAÇANHA JÚNIOR, 2004), um fator que pode evidenciar aspectos relevantes sobre sua origem. Aplicava-se a técnica ao se tocar viela, outro instrumento medieval de cordas friccionadas por arco que, segundo o autor, manteve-se presente “[...] na tradição dos cegos de feira [...]. Os jograis cegos são mencionados já na corte de Carlos de Navarra, em 1384” (FAÇANHA JÚNIOR, 2004, p. 968). Foi o caso de alguns repentistas nordestinos, como o já falecido Cego Oliveira (Juazeiro do Norte – CE), que se acompanhava da rabeca em suas cantorias, e Fabião das Queimadas (RN), que também utilizava o instrumento, apesar do costume da região de utilizar a viola sertaneja (LIMA, 2001).

Pode-se traçar claramente uma linha evolutiva que começa com a unificação timbrística na Renascença, passa pelo surgimento do violino, seguindo pela paleta sonora da orquestra sinfônica, até chegarmos ao extremo do desenvolvimento da tecnologia sonora que permite hoje a unificação total em um simples teclado sintetizado. Destaca-se aqui justamente a questão fundamental em relação à rabeca: ela é uma sobrevivente de um mundo em extinção. Sendo produzida por comunidades que não foram ainda completamente absorvidas pelo mundo pós-revolução industrial, não é de se estranhar que estes instrumentos são relacionados mais fortemente com seus pares medievais do que com aqueles modernos [violino], do qual, por relação temporal e geográfica, deveriam fazer parte (VALENTE, 2000, p. 26 apud FIAMINGHI, 2008, p.48).

(17)

Acredita-se que a rabeca tenha aportado no Brasil junto dos colonizadores portugueses e espanhóis. Lima (2001) menciona a presença da rabeca em diversas manifestações, apontando a existência de registros feitos por viajantes e cronistas no período colonial. Indo de encontro com pensamento de que a rabeca brasileira é um violino, o autor defende que “[...] o instrumento trazido por portugueses e espanhóis foi a rabeca, que aqui se popularizou, e não o violino – este ainda sendo forjado na recente lutheria italiana do final do século XVI” (LIMA, 2001, p. 10, grifo nosso).

Luiz Fiaminghi (2008) cita o etnomusicólogo José Alberto Sardinha, mostrando que, assim como no Brasil, em Portugal a rabeca teve uma trajetória diferente dos caminhos percorridos pelo violino. Alguns textos e iconografias indicam a possibilidade de “uma importante atividade musical envolvendo as rabecas (e não violinos nomeados como rabecas) em Portugal em um período anterior ao séc. XIX” (FIAMINGHI, 2008, p. 166).

Podemos conjecturar que esse tão primitivo instrumento musical terá sido, no Portugal de Oitocentos, bem mais popular do que poderíamos imaginar. E note-se que, não obstante ser de construção rudimentar, o instrumento havia de ter boa afinação, dado que concertava com flautas e por vezes clarim, servindo também o instrumental de acompanhamento ao canto.(...) A ausência de referências literárias da época ao dito instrumento deve explicar-se pelo facto de ser pouco conhecido entre as classes cultas e, quando conhecido, considerado inferior, por popular. Ao invés, junto do povo, é de concluir, pela alusão à citada “música das cabaças”, ter possuído grande difusão (SARDINHA, 2000, p. 403 apud FIAMINGHI, 2008, p. 166).

O que se pode perceber é que, apesar da escassez de material bibliográfico, documentos ou registros acerca da origem da rabeca e sua trajetória da Europa para o Brasil, existem diversos indícios de que o instrumento se desenvolveu paralelamente ao violino. Em dado momento, é claro, os dois se encontraram, e o fato de o violino ser mais “bem visto” pela sociedade acabou influenciando, em alguns casos, artesãos de rabeca em suas técnicas de construção e as características de suas rabecas, algumas tendendo a se aproximar do formato de um violino.

Independentemente de semelhança e parentesco, a rabeca possui, como veremos nos capítulos seguintes, formas de construção, sonoridade, afinações e utilização bastante diferentes do violino.

(18)

3 CONSTRUÇÃO

Os aspectos organológicos da rabeca e do violino são diferentes em vários pontos. No que diz respeito ao formato do instrumento, os dois sofreram modificações desde a sua origem (LIMA, 2001). No entanto, as mudanças exercidas sobre o violino foram maiores, entre elas a adoção de peças que visam facilitar a execução e tornar a postura mais adequada ao instrumento (violino). Entre as novas peças, estão a queixeira (para apoio do queixo, facilitando a sustentação do instrumento em mudanças de posição – para atingir notas mais agudas, por exemplo), cavaletes mais altos, mudanças no tamanho do espelho, entre outras, que permitiram o virtuosismo técnico, buscado por instrumentistas e compositores a partir de meados do século XVIII. Também é necessário dizer que o arco do violino passou a ser côncavo e flexível, ao contrário do arco da rabeca, que se manteve rijo e sem muita curvatura: “no fim do século XVIII, Tourte [importante luthier1 francês] desenvolveu, a pedido do violinista italiano Giovanni Battista Viotti (1755 – 1829), um arco côncavo ao invés do antigo arco convexo” (BERGMANN FILHO, 2010, p. 46).

Deve-se observar inclusive a não padronização na construção das rabecas. Cada rabeca possui uma característica que a diferencia – não existem duas rabecas iguais. Medidas, formato, arcos, madeiras e cordas diferentes contribuem para que cada instrumento tenha uma personalidade própria. As rabecas de Minas Gerais são diferentes das do Paraná ou de São Paulo, assim como em outros estados (GRAMANI, 2003). O autor ainda comenta que a rabeca faz parte de um reduzido grupo de instrumentos folclóricos que não são produzidos em série (industrialmente), e sim construídos artesanalmente, sendo “um instrumento que se diferencia da quase totalidade dos outros por uma característica fundamental: a ausência de padrões no seu processo de construção” (GRAMANI, 2003, p. 12).

Da arte da construção das rabecas existem apenas algumas referências e poucas informações técnicas. Destas minguadas informações sobre a rabeca, sua construção e sua música, grande parte não se pode aceitar sem preocupação. Muitas são generalizações incabíveis, que causam conceitos distorcidos (GRAMANI, 2003, p. 14).

Apesar dessas muitas generalizações, é permitido observar que historicamente, a rabeca não é derivada do violino, assim como sua utilização não ocorre para suprir uma falta de violinos, e sua existência na cultura popular é independente da existência do violino na zona urbana (LIMA, 2001). “[...] Somente a análise das dimensões e de outros aspectos

(19)

físicos da rabeca e do violino não é suficiente para uma tentativa de comparação direta da rabeca, colocando-a como instrumento musical derivante do violino” (LIMA, 2001, p. 25).

O fato de algumas rabecas possuírem um formato e dimensões parecidos com o violino às vezes é entendido como uma maneira de imitar o instrumento, de seguir um padrão ditado por uma cultura dominante. Em sua pesquisa para a dissertação de mestrado, Lima (2001) pôde perceber que:

[...] a construção de rabecas com dimensões próximas às de um violino não é, por si, um indicativo direto de mudança nos procedimentos dos artesãos em busca de uma aproximação ao modelo do violino. O que se pôde constatar como fato mais importante, que as dimensões das rabecas variam conforme cada artesão nas suas tentativas particulares de equalização entre aspectos de sonoridade e beleza visual do instrumento. [...]

Não se desconsidera que, numa troca de informação com outros segmentos culturais, alguns aspectos do modelo do violino estejam vindo a influenciar a construção de rabecas. Mudanças nos procedimentos de construção que poderiam advir de um contato maior dos rabequeiros artesãos com o violino ou viola de orquestra, ou seja, com a migração de parte dos rabequeiros para as periferias das grandes cidades nas últimas décadas. Afinal, no processo de homogeneização da cultura o violino, enquanto instrumento símbolo de um segmento cultural hegemônico, é apresentado aos outros segmentos como modelo a ser copiado (LIMA, 2001, p. 23).

Existe ainda uma importante passagem, que deve ser destacada:

O artesão Nelson da Rabeca, do Estado de Alagoas, comenta que começou a construir rabecas há poucas décadas, a partir de um violino que viu na televisão. Porém, muitas de suas rabecas têm dimensões e formatos bastante diferentes de um violino.

Embora saiba da existência do violino e demonstre admiração por este instrumento, Artur Ermínio [artesão] é taxativo ao afirmar que há uma diferença entre rabeca e violino e que um dos aspectos distintivos entre ambos é o seu tamanho.

Apesar da influência da cultura do violino entre os rabequeiros e artesãos de rabeca, não parece haver uma tendência direta e clara para uma adequação da rabeca ao violino. O que é claro é que, embora os rabequeiros apresentem, em determinados momentos, alguns sentimentos de inferioridade em relação aos violinistas, no diálogo cultural intermitente que travam com outros segmentos culturais, estes músicos optam por manter aspectos do seu saber e fazer musicais como formas de manutenção das suas identidades. Tudo indica ser este o caso dos artesãos de rabeca como Artur Ermínio que, apesar da admiração pelo violino, continuam construindo suas rabecas de maneiras bem diferentes, uns dos outros (LIMA, 2001, pp. 24-25).

No caso, mesmo esse sentimento de inferioridade não fez com que os artesãos perdessem ou abandonassem seus antigos costumes.

No final da década de 1990, José Eduardo Gramani iniciou uma importante pesquisa acompanhando a construção de rabecas por quatro artesãos: Martinho dos Santos (Morretes – PR), Julio Pereira (Paranaguá – PR), Arão Barbosa (Iguape – SP) e Nelson da Rabeca (Marechal Deodoro – AL). O pesquisador faleceu antes de concluir o trabalho, que depois foi

(20)

organizado e transformado em livro por sua filha, Daniella Gramani. No livro, encontram-se várias informações relevantes para entender o pensamento dos artesãos sobre o procedimento de construção das rabecas.

A arte de construir a rabeca é muitas vezes desenvolvida de maneira autodidata. É o caso do artesão Martinho dos Santos, de Morretes, litoral do Paraná, que teve de aprender a construção de instrumentos observando escondido o pai, também artesão, que não permitia que o filho ficasse junto (GRAMANI, 2003).

Martinho trabalhava as diversas partes, como o tampo, a lateral e o fundo, separadamente, para depois uni-las em um único instrumento (GRAMANI, 2003). Assim como essa maneira de construir, muitos outros artesãos utilizam a técnica mencionada no capítulo anterior, que consiste em escavar a madeira numa espécie de “cocho” para a construção do corpo do instrumento. Além desse processo, em algumas rabecas nota-se a utilização de cabaças para a construção do corpo (assemelhando ao formato de “pera” da rabeca medieval), uma vez que esses instrumentos são confeccionados a partir dos materiais disponíveis ao artesão.

Os artesãos observados por Gramani por diversas vezes construíam inclusive algumas de suas ferramentas, como o cepilho (espécie de plaina), cunhas, sargentos e suportes, para auxiliá-los no processo de construção. Outras ferramentas que faziam parte da atividade eram o enxó, o serrote, o facão, faca de cozinha, martelo, pregos, lixas e serrinhas etc. Colas de base vegetal eram muito empregadas.

O arco de suas rabecas era feito sem curvatura, reto (diferentemente do violino, que deve ser côncavo e com certo nível de flexibilidade), ou ligeiramente curvo, sem qualquer mecanismo para esticar as cerdas, que eram de crina de cavalo, linha de pesca de náilon ou até linha de costura. No caso de alguns outros instrumentos de cordas friccionadas, como o violino, o arco necessita de cuidados diferentes em sua manufatura, havendo uma categoria de

luthiers, chamados de archetiers que se dedicam especialmente a essa etapa.

As madeiras e materiais utilizados por eles eram encontrados na localidade, como a caxeta, imbuia, araribá, canela e até compensado de pinho, por exemplo, sendo essa uma diferença crucial entre a construção de rabecas e violinos. No segundo, as madeiras específicas muitas vezes vêm de localidades distantes, sendo até importadas de regiões da Europa como Alemanha, Áustria, Hungria e Suíça (SOARES, 2007).

Outro ponto importante encontrado nos relatos é o de que as madeiras eram trabalhadas, muitas vezes, enquanto ainda estavam verdes, pois dessa maneira são mais fáceis de cortar e entalhar. No violino, o procedimento é diferente. As madeiras escolhidas devem

(21)

passar por uma secagem, natural ou artificial, podendo durar anos, sendo que da maneira natural (ao ar livre, abrigada da chuva e da luz do sol), o resultado é mais satisfatório (SOARES, 2007). Cada madeira escolhida para o violino é destinada a uma parte. Ébano para espelho, estandarte; abeto para tampo, alma, barra harmônica, contrafaixas; acero para fundo, braço, voluta, faixas etc. Mesmas madeiras em tampo e fundo geralmente resultam em um som pobre; é preferível trabalhar com madeiras diferentes, que permitem as diversas alturas que darão ao violino uma capacidade maior de vibração (SOARES, 2007).

Na rabeca, quanto ao “acabamento” também não existe regra. Assim como na viola-de-cocho (instrumento de cordas dedilhado, utilizado na região pantaneira do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), algumas rabecas não recebem acabamento especial, com verniz ou goma laca, sendo apenas lixadas, mantendo a madeira “crua”: “A madeira não deve ser envernizada, pois não fica parecendo artesanato”, diz o artesão Martinho dos Santos em entrevista com Gramani (2003, p. 23). Outros construtores, como Mestre Antônio Pinto, preferem dar o acabamento para preservar a madeira (RABECA, 2011). É uma questão de opinião dos artesãos.

Murphy (2008) descreve brevemente a maneira de construir rabecas na região da Zona da Mata Norte. Ele observou que primeiro, o artesão escolhe uma prancha de madeira de paraíba (dureza média), para o tampo e fundo (relembrando que no violino, tampo e fundo são feitos com madeiras diferentes), traçando os mesmos com o uso de um gabarito. Depois, se corta a madeira com uma pequena foice e aplaina-a com uma faca. Para as laterais, jenipapo (flexível), para o braço, espelho e cravelhas, pau amarelo (dura), que depois é pregado e colado ao instrumento. São madeiras com resistências diferentes para cada uma das partes. A alma é inserida antes de fechar o instrumento. O acabamento é feito com um óleo de madeira, para escurecer o corpo do instrumento, e o braço é pintado de marrom. As cordas, assim como em todas as outras rabecas observadas em diversas pesquisas, são de outros instrumentos, no caso, de violão de aço. O arco é feito de pau amarelo e cerdas de linha de pesca de náilon.

Cada parte de um instrumento musical possui um nome específico. Com a rabeca não é diferente. Por exemplo, “A terminologia usada no litoral [paulista] para nomear as diferentes partes dos instrumentos é expressiva, e há sempre uma aproximação destas com o corpo humano” (SETTI, 1985, p. 143). Dessa forma, os músicos acabam atribuindo aos instrumentos a capacidade de falar (SETTI, 1985). A pesquisadora cita partes denominadas como “costas”, “ombro”, “imbigo”, “corpo”, “alma”, “cabecinha” entre outras. Segundo Gramani (2003), o artesão Arão Barbosa chama o arco de “sendem”.

(22)

A Figura 2, para maior compreensão, representa um violino e suas partes numeradas. A tabela comparativa foi desenvolvida com base nas pesquisas de Kilza Setti (1985) e José Eduardo Gramani (2003).

Figura 2 - Parts of the violin (modificada). Fonte: http://www.vickiviolin.com/06-Parts_of_the_Violin.htm

Tabela 1 – Nomenclatura

No. Denominação no violino Denominação na rabeca

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. Voluta Cravelhas Cordas Espelho Lateral Abertura em F Tampo Cavalete Estandarte Queixeira Botão Braço Barra harmônica Alma

Caramujo, rosa, cabecinha Caravelha

Cordas

Escala, forro do cabo ___ Vazado, SS Tampa ___ Rabicho Não possui Imbigo Cabo Não possui Arma

(23)

Sobre o número de cordas, as rabecas variam de três a quatro, dependendo da região. As rabecas do litoral paranaense geralmente possuem três cordas, enquanto as de outras partes do Brasil têm quatro cordas. O Capítulo 5 abordará de maneira mais aprofundada as questões sobre as diversas afinações utilizadas pelos rabequeiros.

(24)

4 MANIFESTAÇÕES

Para compreender a importância da rabeca como instrumento musical, é preciso observar onde, em que região ou festa popular ela é utilizada.

É certo que a rabeca é um instrumento presente em boa parte do território de nosso país. De acordo com Gramani (2003, p. 12), a rabeca é utilizada “principalmente em acontecimentos religiosos e folclóricos, fazendo parte de agrupamentos musicais tradicionais”; ela já está arraigada à cultura brasileira.

Atualmente a rabeca tem estado muito presente nas manifestações da arte do povo brasileiro. Há descrições da utilização deste instrumento na dança de São Gonçalo, cavalo marinho, dança do lelê, bumba meu boi, reisado ou folia de reis, nau catarineta, pastoril, baile de forró, terno de pífanos, mamulengo, ciranda, cantoria, congada, marujada, baião de princesa e fandango (GRAMANI, 2009, p. 55).

Todas essas são manifestações muito antigas no Brasil, calcadas de influências de várias etnias. Algumas das quais definem-se como folguedos populares, por conter, além da música, letras, coreografias e dramatização (CASCUDO, 2001).

Na década de 1970, pelo selo Marcus Pereira foram realizadas diversas coletâneas de música regional brasileira, como por exemplo Instrumentos Populares do Nordeste (1976) e

Música Popular do Sul (1975), e em algumas das faixas ouvimos o som da rabeca. Podemos

também falar sobre a coletânea Cantos de Festa e de Fé – Tradições Musicais Paranaenses (2002), Música do Brasil (2000), Nordeste: Cordel, Repente e Canção (1975), entre outros.

Serão explanadas, de forma breve, algumas das manifestações onde a rabeca está inserida.

4.1 CAVALO-MARINHO

O cavalo-marinho é uma das derivações do Bumba-meu-boi que ocorre na Zona da Mata em Pernambuco e na Paraíba.

Ivanildo dos Santos (2008) nos afirma que o cavalo-marinho é um folguedo com características musicais, cênicas e elementos plásticos.

O nome Cavalo-marinho é originário da corruptela de Capitão do Cavalo-Marinho, ou ainda de Cavalo do Capitão da Marinha [...]. Na origem do [cavalo marinho] estiveram presente [sic] os trabalhadores rurais, os cortadores de cana da região da Zona da Mata pernambucana e paraibana. [...] Os assuntos da vida, a violência dos engenhos de açúcar, a relação de força, exploração e certa cordialidade entre patrões

(25)

e empregados, ou escravo e a questão da mulher, são temas recorrentes no folguedo e têm ligação direta com o mundo de tensão vivido pelos seus brincantes (SANTOS, 2008, p. 65).

No cavalo-marinho, a rabeca possui um papel bem definido. Murphy (2008) aponta que o rabequeiro ocupa um lugar elevado no grupo de instrumentistas do cavalo-marinho e ainda diz que o instrumento é difícil de ser tocado. Se não há rabeca, não há brincadeira! É ela quem faz a melodia das toadas e executa os baianos (cadências de dança).

4.2 FOLIA DE REIS

Terno de reis, folia dos santos reis, santos reis, reis: entre outras denominações, a folia de reis é uma festa de origem antiga, nos primórdios do cristianismo, e acontece até hoje em diversos países. O termo “Reis” se refere aos Reis Magos, que viajaram pelo oriente para adorar e anunciar o Menino Jesus (SANTOS, 2008). A folia chegou ao Brasil em meados do século XVI como uma forma de catequização dos índios pelos jesuítas.

Assim como no cavalo-marinho, os integrantes de um grupo de folia de reis possuem papéis diferentes: embaixador, cantores e instrumentistas, palhaços e foliões são alguns deles. A bandeira é uma representação dos Santos. O grupo instrumental conta com pandeiro, triângulo, reco-reco, viola caipira, rabeca, sanfona, cavaquinho, violão e outros.

Horta (2011, p. 17) conta que “algumas cenas são muito fortes [...] e se são encenadas, é por objetivarem impressionar ou distrair as pessoas [...]. Pedir, receber e agradecer, em versos, é um ritual de Folias de Reis”.

Para Garbosi (1994, p. 13) “A Folia de Reis não é apenas um Folclore, é uma verdadeira demonstração de fé, uma celebração da viagem que os magos fizeram a Belém para adorar o menino Jesus”.

4.3 DANÇA DE SÃO GONÇALO

A Dança de São Gonçalo, de acordo com a professora Valéria Otávio (2004, p. 81), “é uma das inúmeras manifestações tradicionais brasileiras que compõe, ao lado das Folias de Reis, Congadas, Cavalhadas e Moçambiques, o rico mosaico do catolicismo popular brasileiro”.

(26)

De origens lusitanas, a dança é uma festividade a São Gonçalo do Amarante, considerado um santo casamenteiro e protetor dos violeiros. Devotos com dificuldade para se casar, pessoas com problemas de estômago e ventre prometem fazer a dança ou comer uma parte específica do animal abatido para a festa (CASCUDO, 2001). Luiz da Câmara Cascudo (2001) também diz que se dançava com uma formação simples, de doze pessoas divididas em duas fileiras, onde o primeiro homem (guia) vinha tocando uma viola ou rabeca.

Segundo Otávio (2004, p. 91), “quem comanda as evoluções coreográficas da dança são os tocadores de adufo e rabeca, seguidos dos tocadores de violão e pandeiro, mestras-dançadeiras e mestras-dançadeiras propriamente ditas”.

4.4 FANDANGO

Ao lado de tamancos, violas e adufes, a rabeca é uma parte essencial do Fandango, manifestação genuinamente paranaense, realizada no litoral por caboclos e pescadores (GRAMANI, 2002, in GRAMANI, 2003).

Aorélio Domingues, em um texto extraído da internet, comenta que a rabeca, no Paraná, faz parte de um “grupo de instrumentos básicos da cultura popular do litoral do estado” (DOMINGUES, 2011). São manifestações como a folia do Divino, folia de reis, congada e boi de mamão. Além, é claro, do fandango do litoral.

Para alguns pesquisadores, o fandango teria influência ibérica, vindo com os primeiros imigrantes açorianos, no século XVIII (PINTO, 1983 apud GRAMANI, 2009); outras vertentes afirmam que o fandango teria se originado na América, para depois ser introduzido na Europa (BURKE, 1989 apud GRAMANI, 2009). Ao que parece, questões como a origem do fandango ainda não foram o objetivo principal de nenhum historiador (GRAMANI, 2009).

O fandango encontrado nos litorais paulista e paranaense, independente de suas origens, não seria apenas fruto de uma herança musical chegada ao sul do Brasil pelos portugueses. Essa teria se miscigenado com a música que aqui já havia, também de violas e rabecas, nas vilas e caminhos desde os tempos da capitania de São Vicente. Sua musicalidade transitou por terra e mar, pelos canais e ilhas que interligam o litoral paranaense ao de Cananéia e Iguape, em São Paulo, na região conhecida como Lagamar, estendendo-se até o litoral norte de São Paulo (MUSEU VIVO DO FANDANGO, 2012).

Sobre a função da rabeca no fandango, para Patrícia Martins (2006), ela enfeita o fandango, ornamentando as músicas.

(27)

Daniella Gramani (2009) também fala algo sobre o papel do instrumento:

Não havia percebido, como Laerte [rabequeiro], que ao preencher os momentos de pausa da voz, a rabeca ganha também uma dimensão rítmica. Ele, inclusive, diz que se não houver os instrumentos de percussão, mas a rabeca estiver, fica tudo igual. Outra função que nunca havia percebido para a rabeca é a de encobrir o erro do cantador, chamando mais atenção do que a voz (GRAMANI, 2009, pp. 113-114).

O fandango agrega várias danças típicas, denominadas marcas. Azevedo (1978) comenta que aproximadamente trinta marcas já foram registradas, entre elas o Anu, Xarazinho, Caranguejo, Queromana, Tonta, Dondon, Andorinha, Cana-verde e Marinheiro. A dança pode ser batida ou bailada (ou valseada): “As primeiras se caracterizam pelo sapateado forte, barulhento, batido a tamanco ou sapato. [...] Na segunda não há sapateado. [...] cada dançarino baila em geral com o mesmo par” (AZEVEDO, 1978, p. 3).

4.5 MARUJADA BRAGANTINA

Surgida no século XVIII, a Marujada de Bragança é um acontecimento marcante no estado do Pará. A festa, em louvor a São Benedito, teve origem quando um grupo de escravos obteve a permissão para criar a Irmandade de São Benedito, também chamado de Santo Preto. Os devotos, em agradecimento, realizaram danças pelas ruas da cidade. Desde então, a manifestação é realizada no mês de dezembro, com a participação de um grande público (AMARAL et al, 2010).

A Marujada Bragantina é essencialmente feminina, e cabe às mulheres a organização e direção da festa; os homes realizam a música, que é executada em instrumentos como a rabeca, banjo, tambor e pandeiro (ALIVERTI; MORAES; SILVA, 2007). Não existem muitas normas a serem seguidas, como número de participantes, papéis a serem desempenhados, dramatizações, nem referência a acontecimentos marítimos; a ordem é estabelecida pela Capitoa e pela Subcapitoa (SILVA, 1981). O ritmo mais marcante é o Retumbão, e essa versão da Marujada se diferencia da versão ocorrida no Nordeste e nas outras partes do Brasil, uma dança dramática com origem ibérica, inspirada em histórias e feitos marinhos (AZEVEDO, 2003).

(28)

5 O SOM E A PRÁTICA DE EXECUÇÃO DA RABECA

A música da rabeca ainda não foi tratada e estudada de maneira consistente, de forma a possibilitar uma maior compreensão sobre suas peculiaridades na cultura brasileira – geralmente ressalta-se mais as manifestações do que o próprio instrumento (LIMA, 2001).

O fato de o Brasil abranger uma grande extensão territorial e cada uma das regiões possuir costumes próprios deve explicar as diversas maneiras de se tocar rabeca, que podem ser observadas em vídeos disponíveis no meio eletrônico, além de LPs e CDs, como Cavalo

marinho da Paraíba – a viagem dos sons (1998), a discografia completa do Quinteto

Armorial (de 1974 a 1980), coletâneas como Museu vivo do fandango (2003/2004),

Cancioneiro paraense – marujada de Bragança [s.d], entre outros. Existem também os

registros de Zé Coco do Riachão, importante nome na música de rabeca e viola. O músico e compositor mineiro construía seus próprios instrumentos musicais e aprendeu muito seguindo os pais nas folias de reis, das quais participou por muito tempo. Somente em 1980, a partir do contato com o violeiro Teo Azevedo, é que pode gravar suas músicas em LPs – Brasil puro (1980), Zé Côco do Riachão (1981) e Vôo das garças (1987) (INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIN, 2012). Seu estilo de tocar era bem característico, não só na rabeca, mas na viola e outros instrumentos. Na faixa “No terreiro da fazenda”, do primeiro disco, os sons que Zé Coco tira da rabeca são bem inusitados, imitando os animais da fazenda através de técnicas estendidas que aplica ao instrumento.

Apesar das diferenças de execução entre os rabequeiros, existem características em comum, como a utilização de cordas duplas (MURPHY, 2008), e a improvisação musical. Geralmente, o tocador da rabeca deixa um bordão, uma nota pedal, e quando tem a oportunidade, executa melodias improvisadas para preencher a música.

A maneira de se posicionar a rabeca no momento da execução também difere da maneira “erudita” atual de se acomodar o violino. Segundo Murphy (2008), a posição da rabeca lembra a posição de peito dos violinos do início do século XVIII. A rabeca é segurada com a mão esquerda (como no violino), mas o fundo é apoiado no peito, próximo ao osso esterno, diferentemente do violino, que é sustentado no ombro esquerdo com o auxílio de suporte (espaldeira, sobre o ombro) e queixeira (sob o queixo). O braço esquerdo, na rabeca, é inclinado para baixo, chegando a algumas vezes encostar-se ao corpo, apoiando-se na coxa ou joelho na hora de tocar. Dessa maneira, o tocador se cansa menos e pode cantar. O arco é segurado pela mão direita, que se mantém relaxada, e a mão esquerda, ao tocar, permanece na maioria das vezes em primeira posição. Ainda existem rabequeiros que optam por uma

(29)

posição diferente, como a postura adotada ao se tocar violoncelo, onde, segurando a rabeca verticalmente com a mão esquerda, apoiam o fundo do instrumento na coxa e controlam o arco com a mão direita. A razão deste fato talvez seja o conforto, pois dessa maneira o instrumentista não precisa sustentar a rabeca no ombro ou peito, assim como uma lembrança da postura adotada ao se tocar a viola da gamba, pertencente a uma classe de instrumentos muito desenvolvida na Idade Média (BERGMANN, 2010), ou seu ancestral rabab, apoiado nas pernas ou sobre o peito (FIAMINGHI; PIDADE, 2008).

Com o processo de construção da rabeca, principalmente se o corpo do instrumento for feito como um “cocho”, podemos perceber que o resultado sonoro é muito diferente do violino. O som “anasalado” e “estridente” que é produzido com a rabeca muitas vezes é visto com maus olhos por músicos do meio erudito, mas isso não parece ocorrer com os próprios rabequeiros, que aceitam e até procuram essa sonoridade definida por alguns como “rústica”.

As afinações utilizadas na rabeca também variam, de acordo com a região e com o artesão que a constrói. Gramani (2003) aponta as seguintes afinações: na rabeca de Martinho dos Santos (4 cordas, de viola caipira), da grave para a aguda – fá-dó-fá-lá; Julio Pereira (3 cordas, de viola ou cavaquinho), da grave para a aguda – relação intervalar de 4ª e 5ª (afinação de fandango); Arão Barbosa (4 cordas) – 4ª, 4ª, e 3ª; Malvino Paz, Eduardo Nunes e José Eduardo Rocha (4 cordas) – em quintas (afinação reiada) ou afinação de fandango; Nelson dos Santos (4 cordas, de viola caipira) – 5ª, 4ª e 3ªM.

Pode-se perceber que há uma variedade de afinações para a rabeca, sendo geralmente feitas a partir de relações intervalares baseadas no “tom” em que se deseja tocar. Lima (2001) comenta que a altura da afinação utilizada pelos rabequeiros surge da busca pela tensão adequada das cordas. Em sua pesquisa, ele percebeu que os rabequeiros, mesmo sem o uso de um diapasão, mantinham a afinação praticamente sem alterações.

Posso citar um exemplo meu. No ano de 2008, após entrar em contato com o grupo de fandango de Mestre Romão, conheci Anísio Pereira, artesão da Ilha dos Valadares, e tive a oportunidade de adquirir uma rabeca de três cordas construída por ele. Pedi a Anísio que a afinasse, o que ele fez sem auxílio de qualquer equipamento. A afinação que obteve foi, como constatei depois, fá#-si-fá#. Em diversas gravações de fandango, percebem-se músicas em tonalidades que dificultariam a execução do instrumento na afinação que apresentei. Mesmo assim, ouve-se a rabeca utilizando bordões, cordas duplas e cordas soltas que, um fato que comprova a variedade de afinações que pode ser utilizada: dependendo da música, ajusta-se a rabeca para outros “tons”, mantendo as relações intervalares de cada modelo de afinação.

(30)

O violino que conhecemos hoje vem de um grande processo evolutivo, provavelmente resultante de uma necessidade de um instrumento de registro mais agudo, com som potente, que pudesse ser utilizado em grandes eventos (KOLNEDER, 1999 apud SOARES, 2007). O parâmetro de avaliação deve ser diferente para cada um dos instrumentos. A rabeca, em sua utilização na música regional, originalmente não foi construída para uma execução solo acompanhada de orquestra, ou mesmo para grandes grupos musicais, com repertórios virtuosísticos. As necessidades que se encontram ao construir e tocar uma rabeca são bem diferentes.

Em sua dissertação, Roderick dos Santos (2011) realizou entrevistas com diversas pessoas, entre elas Siba e Jorge Antunes. As entrevistas mostram suas opiniões sobre o quanto este som característico faz parte do universo da rabeca.

Da entrevista com Siba, Santos destacou:

[...] “a rabeca seria uma versão rude do violino, com critérios de construção menos rigorosos, de sonoridade rude e agressiva possui desequilíbrios harmônicos (comunicação verbal). No seu modo de ver, essas características sonoras não constituem defeitos, mas qualidades. “O violino tem um processo de aprendizado muito longo e rígido, a rabeca tem mais flexibilidade e liberdade tanto no processo de construção como no seu processo de aprendizado”. Indagado sobre a sua opção em tocar a rabeca e não violino, Siba afirma: “a mim, não agrada a sonoridade adocicada do violino, gosto das contradições sonoras da rabeca, as rabecas têm ruídos que formam um timbre que muito me agrada” (SANTOS, 2011, p. 78).

E depois, apresenta o depoimento do maestro Jorge Antunes:

[...] “Imagine-se um violinista tocando uma rabeca e um rabequista tocando um violino. Nessas situações não teríamos as mesmas sonoridades resultantes daqueles casos habituais. A execução da rabeca com vibrato, imediatamente implicará em sonoridade diferente daquela própria da rabeca tradicional. Mas, atendo-me ao tradicional, em que a rabeca é tocada pelo rabequista e o violino é tocado por um violinista, eu diria que os timbres dos dois instrumentos são totalmente distintos. Sob o ponto de vista acústico, as diferenças têm origem nos diferentes espectros sonoros: a rabeca, em razão de sua caixa harmônica, não responde bem a toda a gama de harmônicos e transientes da corda vibrante. A caixa harmônica da rabeca não tem seu traçado, sua forma e seu volume compatíveis com a faixa de resposta das frequências das cordas. Sob o ponto de vista da escuta, para qualificar as diferenças dos dois timbres teríamos que, como sempre, usar adjetivos. Diríamos, então, que o som da rabeca é mais estridente e mais anasalado. Isso acontece na rabeca por causa da verdadeira filtragem que a caixa harmônica provoca no espectro sonoro. O violino, diferentemente, tem sua caixa harmônica perfeitamente projetada e construída de modo a ser bem ressonante a todo o espectro sonoro das quatro cordas. A difusão sonora do instrumento é, além disso, máxima, graças à científica estrutura complementada pela barra harmônica e pela alma, pequena peça cilíndrica que interliga o tampo e o fundo” (Mensagem Pessoal) (SANTOS, 2011, p. 78).

A outra parte das entrevistas foi feita tanto com músicos, rabequeiros ou não, e não-músicos. Através das respostas sobre a questão “em sua opinião, qual a diferença entre a

(31)

rabeca e o violino no que se refere ao seu ‘timbre’, ou, em outras palavras, como você percebe ou distingue o som de ambos?” (SANTOS, 2011, p. 79), pode-se entender que para todos, a rabeca possui um som mais “áspero” e “rústico”; entretanto, a maioria dos entrevistados claramente dizem isso não de forma pejorativa, ressaltando que essa sonoridade é importante e característica do instrumento.

Um dos entrevistados, Beto Brito, rabequeiro e poeta, em comunicação verbal, respondeu que a “rabeca tem o som de carro de boi [...] tem um som característico por sua própria rusticidade [...]. A rabeca traduz o Nordeste. A viola de arco e o violino talvez traduzam a França ou a Suíça. A rabeca é o Nordeste com o som de carro de boi” (SANTOS, 2011, p. 80).

A rabeca traduz algo que está ao seu redor, uma forma de viver bem diferente da que se encontra no ambiente do violino. O que é descartado do som do violino, como ruídos, “sujeiras”, é justamente o que é incorporado ao som da rabeca. Sem essa sonoridade peculiar, a rabeca não seria rabeca, e sim uma imitação de violino. Da mesma forma, um violino sem os devidos cuidados sonoros (excetuando-se certas sonoridades buscadas especificamente em algumas composições) seria uma imitação de rabeca.

(32)

6 A RABECA HOJE

Diferentemente do que se pensa, a rabeca na atualidade não é mais um instrumento destinado somente a festividades e manifestações populares. O instrumento, quase exclusivamente de tradição oral, pode ser encontrado hoje em diversos outros ambientes musicais, como o da música pop e da “world music” – música do mundo (SANTOS, 2011). A tendência musical das últimas décadas – de uma mistura de estilos e sonoridades – tem contribuído para que a rabeca seja incorporada em novos cenários da música brasileira, ainda que nem tanto nas áreas do estudo científico (SANTOS, 2011).

Lima (2001) conclui que:

[...] há um determinado tipo de música de rabequeiros que gradativamente se transfere para a periferia das médias e grandes cidades, em função do êxodo rural, provocado pelas sucessivas crises na economia agrária nordestina. Nesse ínterim, observou-se que jovens músicos de centros urbanos começam a tocar rabeca em grupos musicais, cuja formação tem por base a guitarra, baixo elétrico, bateria, violão, etc (LIMA, 2001, p. 1).

Isso mostra que a rabeca passa por uma aceitação maior do ouvinte e do intérprete, que ao entrar em contato com essa sonoridade marcante, percebe que o instrumento tem um importante valor musical.

O renascimento de instrumentos esquecidos (como o violino barroco e a rabeca) e a “estrangulação” da linguagem musical do Ocidente, consequência da “cultura do progresso”, formam um contexto que possibilitou o surgimento, de um lado, da Performance Historicamente Informada, que permite que antigas práticas musicais sejam resgatadas, ao lado de um intérprete que age agora como coautor da obra musical; e de outro lado, uma ressignificação de práticas musicais regionais, que enfrentam a indústria cultural denominada de “world music” (FIAMINGHI; PIEDADE, 2009).

Devemos falar de duas manifestações artísticas ocorridas no Brasil que, de diferentes formas, contribuíram para novos olhares sobre a rabeca. A primeira, surgida na década de 1970, foi encabeçada por Ariano Suassuna e denominada Movimento Armorial. O movimento visava à realização de uma arte erudita calcada nas raízes populares. Tendo representantes em diversas áreas artísticas, como a literatura, o teatro, o cinema e a dança, na música um de seus grupos mais expressivos foi o Quinteto Armorial, contendo alguns dos instrumentos mais representativos da cultura brasileira: flauta/pífano, rabeca/violino, violão, viola sertaneja e marimbau nordestino. Antonio Nóbrega, o rabequeiro e violinista do grupo, com sua

(33)

formação erudita e experiência na música popular contribuiu para que a rabeca fosse divulgada dentro e fora do país, no quinteto e posteriormente em sua carreira solo, com seus espetáculos repletos de dança, teatro e música, acontecendo desde 1976.

A segunda manifestação foi o Mangue Beat, movimento originado no Recife do início dos anos 90, com uma música influenciada por ritmos regionais nordestinos (maracatu, coco etc.), o funk, o hip hop, o rock e a música eletrônica, e tendo como principal expoente Chico Science, líder do grupo Nação Zumbi, que segundo Tesser (2007, p 72) era um nome “forte em sentido: uma nação de escravos rebeldes”. Entende-se o movimento como uma revolta de uma camada social que queria também fazer o uso da palavra, e a autora define: “o artista do Mangue Beat afirma a sua condição e se serve da arte como um grito de inserção” (TESSER, 2007, p. 74). A rabeca aparece com o grupo Mestre Ambrósio, tocada pelo músico Siba, filho de Mestre Salustiano, rabequeiro mestre de cavalo marinho. O nome Mestre Ambrósio vem justamente de uma figura do cavalo marinho, realçando as raízes do grupo.

Desses dois importantes movimentos da música brasileira, ambos ocorridos no nordeste do país, podemos ter acesso exemplos sonoros de diversos modos de se tocar rabeca. De um lado, o aspecto medieval/ibérico/nordestino do Quinteto Armorial, e de outro, o jeito regional brasileiro do Mestre Ambrósio, com pitadas generosas de forró, caboclinho e outros ritmos brasileiros.

Como visto anteriormente, as rabecas brasileiras, em sua forma original, não foram concebidas para apresentações artísticas de técnica virtuosística, e sim para suprir a necessidade de um grupo musical de determinadas manifestações populares. Por muito tempo, a rabeca esteve associada ao teatro de mamulengos, bailes de forró e aos repentistas nordestinos, como Cego Oliveira, de Juazeiro do Norte (CE) e Fabião das Queimadas (RN), ambos já falecidos (LIMA, 2001). Lima (2001) menciona que aos poucos, a rabeca se distanciou dessas manifestações, causando certo pesar nos rabequeiros mais antigos, que não encontram mais lugar para desenvolver suas atividades.

Se poucos são os relatos de rabequeiros repentistas ou cantadores de romances, de outra parte, muitos rabequeiros citam que com a popularização da sanfona no interior do Nordeste, a rabeca foi gradativamente perdendo seu espaço nos bailes de forró. Isto demonstra que a especialização dos rabequeiros aqui no Nordeste do Brasil foi, gradativamente, tornando-se a de músicos participantes de conjuntos instrumentais que fazem a música de alguns folguedos (LIMA, 2001, p. 9).

Hoje, no entanto, existem algumas orquestras de rabeca pelo país, como a Orquestra de Rabecas do Sertão (Montes Claros – MG), com 16 integrantes; a Orquestra Rabecônica do Brasil (Curitiba – PR), composta por 40 instrumentos entre rabecas de diversos tamanhos

(34)

(tamanho de rabeca normal, tamanho de viola erudita, de cello e de contrabaixo), machetes, machetões, violas (de fandango), adufos, caixas, tamancos e colheres, um projeto do Mestre Aorélio da Rabeca, importante músico do fandango do litoral paranaense. Também existem outros grupos, como a Orquestra de Rabecas Cego Oliveira (CE) e a Orquestra de Rabecas de Pedras de Fogo (PB), todos desenvolvendo desde um trabalho com músicas tradicionais até, como no caso da Orquestra Rabecônica, uma opereta popular, Açucena, com arranjos musicais de Rodrigo Melo e Carla Zago.

Sendo um instrumento que possui vários modelos, como o de cocho, de cabaça, de três cordas, e até de bambu, que pode ser ouvida no CD Crisálida (1996), de Roberto Corrêa (rabeca de bambu executada por José Eduardo Gramani), também passou por experimentações de diversos artesãos. Podemos citar o exemplo de Chico Barbeiro (CE), que criou a “Rabeca do Sonho”, confeccionada de PVC, sem caixa de ressonância, eletrificada, e de Luiz Costa (CE), com sua rabeca de lata (SANTOS, 2011). No modelo de rabeca de lata, também encontramos João Fernando Arrais Serodio, com sua “Rabelata” de duas cordas.

As rabecas construídas em oficinas de luteria, atualmente, tendem a ser semelhantes aos violinos em sua construção. O ensino coletivo do instrumento pode ser a causa dessa semelhança, assim como a facilitação do processo de construção em uma escala maior (SANTOS, 2011).

O ensino coletivo de instrumento musical é uma atividade que vem crescendo cada vez mais em nosso país, através de vários projetos sociais que contemplam, entre outras áreas, a música. Santos (2011) se refere à tentativa, já no início dos anos 2000, de uma sistematização para o ensino da rabeca, realizada por Luís Mário Rocha Machado, que ministrou algumas aulas em sua casa, mas faleceu antes de desenvolver plenamente o projeto; e ao projeto Conexão Felipe Camarão, que na cidade de Natal proporciona a estudantes da rede pública oficinas baseadas na tradição oral do bairro (Felipe Camarão). Entre as diversas oficinas oferecidas, estão a de Boi de Reis, Musicalização de Rabeca e a de Luteria de Rabeca. Desde seu inicio, no ano de 2004, muitos professores já passaram pelo projeto, contribuindo para que conhecimentos e valores fossem acumulados ao longo do tempo, e para a realização de um ensino coletivo da rabeca através da tradição oral (SANTOS, 2011). Segundo o autor, a oficina de luteria foi criada para suprir a dificuldade que se tinha em encontrar artesãos de rabeca.

A Luteria completa o ciclo de aprendizado do instrumento: a história, a tradição, a execução e o fabrico da rabeca. Zé da Rabeca [rabequeiro, professor do projeto] comenta que um dos entraves para a implantação do projeto foi a dificuldade para se

(35)

conseguir um construtor de rabecas, e parece que esse ainda é um dos grandes problemas na luteria do projeto. [...] A verdade é que a luteria do Conexão não funciona plenamente; não há aulas, apenas reparos simples e ajustes feitos pelos próprios alunos. Contudo, Janildo [artesão de rabecas] vem irregularmente nos finais de semana, e conserta uma fila enorme de rabecas com danos mais sérios. [...] Todas as rabecas existentes no projeto são rabecas-violino. Um detalhe curioso, nas rabecas produzidas por Janildo para o projeto, consiste na variação de tamanho do instrumento, oscilando de acordo com comprimento e envergadura da criança. As demais são feitas em dimensões para adulto (SANTOS, 2011, pp. 58-59).

No estado do Pará também é possível encontrar a prática do ensino coletivo da rabeca, iniciativa que ocorreu principalmente pelo fato de os rabequeiros e artesãos de rabeca da região estarem com uma idade avançada e não existirem discípulos, o que tornava preocupante o futuro da principal manifestação da região: a Marujada de Bragança, onde a rabeca exerce um papel fundamental (ALIVERTI; MORAES; SILVA, 2007). Assim como no projeto Conexão Felipe Camarão, em Bragança o ensino coletivo da rabeca foi complementado pela oficina de construção de rabecas.

Além dessa preocupação em passar os ensinamentos de como tocar o instrumento a novos discípulos, atualmente um dado curioso a ser observado é o de que os antigos rabequeiros estão deixando a rabeca para utilizar o violino. A falta de artesãos para construir rabecas, o preço acessível do violino e sua sonoridade diferente são algumas causas dessa troca, que é justamente o oposto do que acontece com os novos rabequeiros, que procuram rabecas “de verdade”, e não violinos (SANTOS, 2011).

Alguns dos novos artesãos dispõem de recursos materiais, como ferramentas de precisão, a que os rabequeiros mais antigos, isolados do mundo urbano, certamente não tiveram acesso. É provável que não fosse mesmo necessário para a fabricação de suas rabecas do passado. Contudo, o acesso à informação escolar de luteria (às vezes, informalmente) por esses novos artesãos parece ter dado mais uniformidade aos instrumentos – provavelmente com o fim de atender à demanda das novas gerações de rabequeiros e das recentes “escolas de rabeca”. Algumas são projetos governamentais de inclusão social; outras, de iniciativa mista e incluem outras atividades. O fato é que esses novos rabequeiros do mundo pop parecem necessitar de instrumentos mais práticos e rabecas mais versáteis, recorrendo a microafinadores, cravelhas macias e espelho anatômico capazes de atender às dimensões de concerto, às vezes exigindo virtuosismo do instrumento (SANTOS, 2011, p. 28).

Apesar de encontrarmos a rabeca em diversas manifestações populares, Lima (2001) comenta que a participação de rabequeiros nessas manifestações vem diminuindo, e algumas delas não se encontram nem registros, como o caso de repentistas rabequeiros, ou bailes de forró ao som da rabeca (LIMA, 2001). Segundo o autor, há um risco desses folguedos

Referências

Documentos relacionados

Um teste utilizando observa¸c˜ oes de fra¸c˜ ao de massa do g´ as de aglomerados de ga- l´ axias e SNe Ia foi proposto por Gon¸calves, Holanda e Alcaniz (2012)[ 41 ]. Eles

nuestra especialidad por su especial proyección en el ámbito del procedimiento administrativo y el proceso contencioso administrativo, especialmente los alcances de la garantía

Para al´ em disso, quando se analisa a rentabilidade l´ıquida acumulada, ´ e preciso consid- erar adicionalmente o efeito das falˆ encias. Ou seja, quando o banco concede cr´ editos

En combinant le moment fléchissant (repris par les hourdis) et l’effort tranchant (repris par les âmes), il a aussi observé une très faible interaction. En 2008,

MELO NETO e FROES (1999, p.81) transcreveram a opinião de um empresário sobre responsabilidade social: “Há algumas décadas, na Europa, expandiu-se seu uso para fins.. sociais,

Crisóstomo (2001) apresenta elementos que devem ser considerados em relação a esta decisão. Ao adquirir soluções externas, usualmente, a equipe da empresa ainda tem um árduo

Os gerentes precisam decidir se atribuirão apenas os custos privados, ou se todos os custos sejam atribuídos (custo total). Depois, precisam decidir usar uma abordagem por função

Promover medidas judiciais e administrativas visando responsabilizar os causadores de poluição ou degradação ambiental e aplicar as penalidades administrativas previstas em