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RASTREANDO A PRESENÇA DA DIFERENSA

CAPÍTULO III – PINTANDO UMA NOVA TELA

3.1 RASTREANDO A PRESENÇA DA DIFERENSA

Retornemos ao último item do capítulo anterior, aquele em que falamos sobre Próspero. Para efeitos de análise, consideremos, portanto, que Marina Warner, de fato, organizou a sua trama de maneira a tornar possível conceber a onipresença de Kit Everard como um elo entre o passado e o presente da família Everard. De forma similar, percebemos os aspectos que escolhemos cotejar no segundo capítulo como deslocamentos realizados pela escritora que também o vinculam ao texto dramático escrito na Inglaterra jacobina, possibilitando ao leitor conhecedor dos dois textos fazer a conexão entre eles. Alguns traços são óbvios, como sinalizam os nomes de algumas personagens; outros, mais sutis, requerem uma leitura mais atenta, como nos pareceu ser o caso do possível vínculo entre Próspero e os dois Kits.

Contudo, independente do quão evidente sejam estes pontos de conexão, texto-de- partida e texto-de-chegada estarão sempre vinculados, ainda que estes mesmos pontos ajudem a tornar Indigo um texto absolutamente autônomo, com características e marcas próprias que nada devem ao que lhe serviu de ponto-de-partida. Este jogo que consiste em trazer elementos da anterioridade para ressignificá-los dentro de um novo contexto nos remete ao conceito derridiano de rastro, um dos elementos que caracterizam o dialogismo intertextual existente nos processos de tradução por vincular qualquer texto traduzido aos seus antecessores.

Desenvolvido por Jacques Derrida, o rastro seria

[...] a unidade de um duplo movimento de protensão e retenção, em que um elemento sempre se relaciona com outro, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca de sua relação com o elemento futuro. (DERRIDA, 1972/1991d apud RODRIGUES, 2000, p.199)

Seja ele explícito ou não, o rastro é considerado, nos Estudos de Tradução, um dos constituintes que possibilitam a identificação de uma determinada obra como releitura de outra que a antecedeu, ou ainda, os vários ecos de outras obras que, simultaneamente, se imiscuem num mesmo texto. Através desse vínculo, texto-de-partida e texto-de-chegada mantêm um diálogo constante e permanecem conectados através dos tempos, possibilitando aos leitores perceber as relações existentes entre eles. Seria neste sentido que os elementos que escolhemos aqui analisar constituiriam exemplo de rastros que Indigo possui em relação a

A Tempestade. A forma como as presenças de Miranda, Sicorax e Caliban, por exemplo,

foram exploradas no romance intensificariam os laços de intertextualidade que o romance possui com o texto dramático escrito no século XVII.

Pensar o conceito derridiano de rastro no campo dos Estudos da Tradução requer uma reflexão e revisão acerca da inexistência do que se costuma conceber, tradicionalmente, como

texto original. O termo origem, assim como tantos outros que remetem a uma crença

platônica idealizada – fidelidade, essência, equivalência, entre outros – sofre forte questionamento quando analisado sob a ótica desconstrutivista de Jacques Derrida. Não seria o caso de destruir a noção ou abolir o termo, sob o risco de se sair de um extremo e caminhar rumo a outro; mas de repensar o conceito, admitir novas formas de concebê-lo, sob novas perspectivas, desconstrui-lo e fazer dele um uso consciente e justificado. Ao trabalhar com tradução, diante da impossibilidade de se chegar à causa ou ao princípio primordial e único do que quer que seja, torna-se mais adequado pensar em um ponto-de-partida que, por sua vez, evoca muitas outras referências, que evocam outras referências... Até o momento em que já não é mais possível rastreá-las. Sobre esta questão, o próprio Derrida afirma que “o rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer dizer aqui [...] que a origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi retroconstituída a não ser por uma não-origem, o rastro que se torna, assim, a origem da origem”. (DERRIDA, 2011, p. 75).

Diante do que nos sugere o filósofo francês, torna-se necessário abandonar o apego ao clássico sistema conceitual metafísico, que entende o mundo sob o ponto de vista dicotômico que, no nosso entendimento, limita as possibilidades do jogo dialógico que se pode estabelecer através do exercício tradutório. Um destes pares binários, o da presença/ausência, parece-nos estar particularmente associado ao conceito de rastro, no sentido de ser este um traço que, ao mesmo tempo em que anuncia uma presença, apresenta também a marca de sua diferença em relação à anterioridade.

Neste sentido, Derrida propõe o que chama de différance79, ou diferensa em português, termo que remete à palavra francesa différence, mas que, por apresentar uma pequena rasura perceptível apenas em sua forma escrita, tornou-se um termo representativo do questionamento que Derrida faz das tradições logocêntrica e fonocêntrica, que promovem, respectivamente, a centralização da palavra e do discurso oral como produtores inquestionáveis de sentido. A diferensa também participa de sua defesa por uma maior valorização do que denomina escritura, ou seja, de uma produção escrita livre do poder e da autoridade de quem o produz ou o intermedia. Sobre a relação que percebemos existir entre rastro e diferensa, Derrida diz que

[...] deve-se reconhecer que é na zona específica desta impressão e deste rastro, na temporalização de um vivido que não é nem no mundo nem num “outro mundo”, que não é mais sonoro que luminoso, não mais no tempo que no espaço, que as diferenças aparecem entre os elementos ou, melhor, produzem-nos, fazem-nos surgir como tais e constituem textos, cadeias e sistemas de rastros. Estas cadeias e estes sistemas podem-se desenhar somente no tecido deste rastro ou impressão. A diferença inaudita entre o aparecendo e o aparecer [...] é a condição de todas as outras diferenças, de todos os outros rastros, e ela já é um rastro. Assim, este último conceito é absolutamente e de direito “anterior” a toda problemática fisiológica sobre a natureza do enagrama ou metafísica sobre o sentido da presença de que o rastro se dá, desta forma, a decifrar. O rastro é verdadeiramente a origem absoluta do sentido em geral. O que vem afirmar mais uma vez, que não há origem absoluta do sentido geral. O rastro é a diferencia que abre o aparecer e a significação.80 (DERRIDA, 2011, p.79-80)

A reflexão de Jacques Derrida seria uma das bases sobre as quais se sustenta nossa posição em defesa de Indigo como ressignificação contemporânea de A Tempestade. Conforme nosso entendimento, todos os pontos que escolhemos abordar, configuram rastros que, ao mesmo tempo em que garantem a existência de uma relação dialógica de semelhança entre Indigo e A Tempestade, vinculando-os através do tempo e do espaço, também carregam elementos que marcam a releitura de Marina Warner com características próprias que tornam o seu texto tão inovador quanto alguém pode conceber o texto escrito por Shakespeare no século XVII. Para estas marcas que assinalam uma obra de ressignificação como portadora de caráter próprio, Derrida apresenta um outro conceito, também freqüentemente utilizado na

79 Segundo Evandro Nascimento (2013, p.12), o termo francês différance já foi traduzido para a língua

portuguesa como diferença, diferência, diferensa, diferaença, entre outras possibilidades (NASCIMENTO, 2003). Paulo Ottoni confirma os esclarecimentos de Nascimento (OTTONI, 2005). A partir de nossas leituras, optamos pela grafia diferensa em língua portuguesa, pois acreditamos ser este o signo em nossa língua de chegada que mais se aproxima do jogo linguístico e semântico proposto por Derrida, segundo nossa compreensão do termo/conceito.

80 Todos os grifos da citação foram mantidos conforme se apresentam no próprio texto de Gramatologia

área dos Estudos de Tradução, que nos auxilia na abordagem mais contemporânea dos processos tradutórios. Além dos conceitos de rastro e diferensa, o suplemento derridiano compõe a tríade sobre a qual optamos por fundamentar nossa argumentação.