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4 REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO

4.4 RDD: uma ofensa aos direitos e garantias fundamentais

Conforme restou demonstrado nos capítulos iniciais da presente monografia, a Constituição Federal de 1988 inaugurou em nosso ordenamento uma concepção de Estado Democrático de Direito baseada na manutenção dos direitos humanos e demais garantias constitucionais do indivíduo.

O Direito Penal, como ciência destinada a proteger os valores e bens fundamentais do homem, deve se guiar pelas diretrizes constitucionais, de forma que haja uma (re)leitura e (re)interpretação das normas adjetivas infraconstitucionais à luz da nova ótica de Estado Constitucional. É evidente que nem toda norma vigente é também válida, limitando-se, com isso, o arbítrio judicante e legiferante estatal (como legitimado agente racionalizador de conflitos) no poder de punir (WUNDERLICH, 2001).

A lei 10.792/2003, a qual alterou dispositivos da Lei de Execução Penal para nela incluir o Regime Disciplinar Diferenciado, tem sido objeto de acirradas críticas, sendo considerada um acinte aos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna.

Entre as hipóteses de aplicação do RDD, prevê o caput do art. 52 da LEP a prática de crime doloso configurando conduta que enseja a inserção do delinqüente nessa modalidade de sanção disciplinar. “É de se cogitar, então, que o princípio do devido processo legal (art. 5º, inciso LIII da CF/88) é descumprido se cotejado com o texto legal da referida norma já que há

um procedimento criminal previsto no Diploma Processual Penal que engloba tais delitos”26.

Destarte, pode-se afirmar que há um bis in idem na referida hipótese, uma vez que o agente que supostamente praticou crime doloso, antes mesmo da instauração de inquérito para apuração do fato, já pode sofrer uma sanção disciplinar nos rigorosos moldes do RDD.

Afirma a doutrina que esse dispositivo estaria ainda a atingir os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, uma vez que pode dar ensejo à punição de um preso que, por haver furtado apenas uma caixa de fósforos de seu colega de cárcere ou outro objeto de pouco valor, teve sua conduta severamente punida através da aplicação do regime disciplinar diferenciado, quando, em circunstâncias normais, seria absolvido em razão do princípio da insignificância. Entende Muller:

“Há violação do princípio da proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados e ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, ou seja, manifesta” (1978, apud BONAVIDES, 1993, p. 315).

Ademais, a simples prática de fato previsto como crime doloso, sem que haja subversão da ordem ou disciplina internas, não constitui fato por si só capaz de ensejar aplicação do RDD. Deve o juiz da execução interpretar cautelosamente o devido dispositivo, de forma que não sejam violados princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como que a pena resguarde seu caráter ressocializador e não meramente utilitarista.

A segunda hipótese, prevista no art. 52, §1º da LEP, diz respeito aos presos que representam alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. O direito penal deve se basear não na pessoa do desviante, consoante preconiza o direito penal

26 SOUSA, Elisa Maria Pinto de, RDD – Uma mácula à Constituição, capturado em

do autor, que se dá com fulcro na personalidade ou periculosidade do agente desviante, e sim no fato, no desvio, na conduta efetivamente praticada.

Para Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 115 e 116), embora não haja um critério específico que determine o que vem a ser o direito penal do autor, há que considerá-lo, todavia, uma “corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva”. Ressaltam ainda que, não obstante inexistir sistema penal plenamente baseado em um direito penal “de ato”, deve-se refutar teses que, em qualquer medida e mediante qualquer argumento, postulem um direito penal do autor.

A terceira situação encontra-se descrita no art. 52, §2º da LEP, prevendo a aplicação do RDD ao preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

Ao prever a inserção nesse regime de presos sobre os quais recaiam “fundadas suspeitas”, feriu o referido dispositivo o princípio constitucional da presunção de não-culpa (art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988). Destarte, não define a lei o que vem a ser “organização criminosa”, atingindo igualmente o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX da Carta Magna). A lei penal deve ser específica, de forma que não se devem admitir dispositivos genéricos e abrangentes, refutando-se expressões como “fundadas suspeitas” e “organizações criminosas” sem que haja uma definição legal.

Ressalte-se ainda que o princípio da legalidade, sob o prisma material, é considerado “um apoio constitucional aos direitos humanos e fixa o conteúdo de incriminar regras, não permitindo um tom genérico da ofensa, sem precisão preliminar da conduta castigável (...)”27.

Destaque-se que o RDD macula ainda o princípio da progressão de regime, porquanto pode dar ensejo ao cumprimento de até um sexto da pena em regime integralmente fechado, ainda que outro tenha sido o regime aplicado pelo juiz da sentença, de forma a obstacularizar o sistema de progressão, a depender da pena imposta.

Trouxe ainda a lei 10.792/2003 a possibilidade de RDD preventivo, que, segundo parte da doutrina, violaria o princípio da não-culpabilidade (art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988), o qual considera o réu inocente até sentença com trânsito em julgado em que se prove o contrário. Na concepção de Elisa Maria Pinto de Sousa28, o regime disciplinar diferenciado preventivo constitui uma insulto à Carta Magna de 1988 e também a outros tratados internacionais que asseguram os direitos humanos. Prevê o art. 60 da LEP que poderá haver inclusão do preso no RDD, preventivamente, no prazo máximo de dez dias, ainda que posteriormente seja o mesmo considerado inocente.

O mais célebre caso de inserção no Regime Disciplinar Diferenciado é o do traficante carioca Luiz Fernando da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”, transferido para o regime em maio de 2003, após liderar uma rebelião no Presídio de Segurança Máxima Bangu I, no estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de matar Ernaldo Pinto Medeiros, o “Uê”, e outras lideranças do “Terceiro Comando”, facção rival do “Comando Vermelho”, resultando na morte de outros presos de facções rivais, bem como na rendição de agentes penitenciários. A

27 Oliveira, Edmundo. Direito Penal e Direitos Humanos, in Revista Jurídica Eletrônica Consulex, ano VII, nº

158, 15 de agosto de 2003 apud SOUSA, Elisa Maria Pinto de, RDD – Uma mácula à Constituição, capturado

em <http://www.fesmip.org.br/publicacao_listar.php> em 20 de abril de 2006.

28 RDD – Uma mácula à Constituição, capturado em <http://www.fesmip.org.br/publicacao_listar.php> em 20 de

rebelião demonstrou a impotência dos orgãos de segurança brasileiros em relação à ação dos grupos do crime organizado, resultando na transferência de Beira-Mar para a Penitenciária de Presidente Bernardes, em São Paulo, aplicando-se-lhe o RDD. Atualmente, o traficante aguarda transferência para o recém-inaugurado Presídio de Catanduvas, no estado do Paraná, especialmente destinado aos criminosos mais perigosos do país, tendo custado aos cofres públicos nada menos que R$ 22 milhões de reais.

Entre os direitos fundamentais assegurados no art. 5º da Constituição Cidadã de 1988, previu o constituinte o princípio da humanidade das penas, vedando portanto a instituição penas cruéis (art. 5º., XLVII, “e”). Assegurou ainda aos presos, sem qualquer distinção, o respeito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX) e garantindo, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III).

Nesse diapasão, cumpre ressaltar a função fundamentadora dos princípios no sistema constitucional brasileiro, de forma que na previsão de isolamento em cela individual durante 360 ou 720 dias, podendo alcançar até um sexto da pena do preso submetido ao RDD, mostra- se flagrante o desrespeito a esses princípios fundamentais. Buscou o legislador reforçar o encarceramento como medida de política criminal e penitenciária, indo de encontro à tendência mundial que busca um direito penal mínimo, bem como penas alternativas.

Atualmente, proclama-se uma nova política criminal, um sistema penal mais humano e eficaz, de forma a se reduzir o caráter severo das penas, assegurando-se a coesão e a sobrevivência do corpo social e respondendo à necessidade de segurança das pessoas e dos bens. A pena de prisão constitui medida de extrema ratio e não recupera, apenas aniquila o homem e jamais o reintegra (D’URSO, 1999, p. 23).

A realidade do sistema prisional brasileiro é degradante. Prevê o art. 5º, XLIX da Constituição Federal que “é assegurado aos presos o direito à integridade física e moral”. Tal preceito, todavia, não ultrapassa o plano dos objetivos juridicamente almejados.

O sistema penitenciário no Brasil sofre de falta de estrutura física necessária, de forma que não existem vagas suficientes para abrigar a população carcerária, ocasionando a superlotação dos presídios e a permanência de presos em delegacias durante anos. Constata- se ainda a permanência na prisão além do tempo da condenação ou no regime mais severo, quando há a possibilidade de progressão. Ademais, ocorre a submissão a degradantes condições de vida nos presídios, cadeias e delegacias por ausência de condições mínimas de salubridade.

Enquanto isso, os presos se organizam, o sistema penitenciário demonstra sua falência e os cidadãos comuns tornam-se os maiores reféns dessa violência social. Falta vontade política por parte dos órgãos executivos, bem como recursos suficiente para solucionar a crise no sistema carcerário.

“A vida dos presos no Brasil é diretamente afetada pelas decisões da justiça a quem está afeto o problema da polícia, dos Defensores Públicos e dos Ministérios Públicos, entre outros. Dessa forma, embora uma reforma do sistema prisional se faz urgentemente necessária, a abordagem abrangente apara reforma deve preocupar com os aspectos dos direitos humanos, em todos os níveis do sistema jurídico, pois será mais eficiente do que uma resolução por partes” (FERNANDES, 2000, p. 130).

Não obstante a premente necessidade de uma reforma em todo o sistema jurídico, os governos continuam adotando medidas paliativas no combate à criminalidade, tornando o regime prisional mais rigoroso e construindo presídios. O RDD é apenas uma dessas medidas, que pouco contribuem para a solução da crise no sistema carcerário. Investem-se milhões de reais na manutenção de um sistema absolutamente ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes encontram-se na desigualdade social presente em nosso país.

Entre os objetos do Direito Penal, destacam alguns doutrinadores que possui como finalidade a segurança jurídica, enquanto, para outros, seria a proteção da sociedade, expressão por vezes substituída por defesa social (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2004). Não se pode, entretanto, colocar a defesa social acima dos direitos e garantias fundamentais.

“Para refutar a criminalidade, o legislador deveria somente tomar uma decisão política de preparar a regra, quando existir a necessidade social que beneficia ou garante a defesa da harmonia e a consciência jurídica de todos os membros do grupo social”29

Ressalta ainda Alexandre Wunderlich30 o novo enfoque do direito processual criminal para que se tenha presente a ideologia democrática que faz com que se pleiteie a visão do processo penal justo através de um devido processo penal, que:

“nada mais será do que a eticização da conduta do Estado enquanto ocupado na prevenção e repressão de condutas desviantes. É buscarmos na dignidade do ser humano, independentemente dos valores religiosos e filosóficos que se reconheçam ou não se reconheçam, a razão de ser dessas regras básicas que a necessária atuação do Estado, por seus agentes, diante das condutas deve obedecer. Segurança de todos sem prejuízo da segurança de cada um.”31

Não se pode olvidar que não obstante seja o Estado responsável pelos indivíduos que se acham preso, ainda que haja indenização daquele por quaisquer atrocidades cometidas, não terá o preso jamais devolvida a sua dignidade (D’URSO, 1999). O mundo moderno deve colocar o Direito diante da necessidade de se restabelecer a segurança e a paz, sem, contudo, violar os direito fundamentais.

29 OLIVEIRA, Edmundo, Direito Penal e Direitos Humanos, in Revista Jurídica Eletrônica Consulex, ano VII,

nº 158, 15 de agosto de 2003 apud SOUSA, Elisa Maria Pinto de, RDD – Uma mácula à Constituição, capturado

em <http://www.fesmip.org.br/publicacao_listar.php> em 20 de abril de 2006.

30 WUNDERLICH, Alexandre (org). Escritos de Direito e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. 31 Adauto Suannes, Os fundamentos éticos do devido processo penal, p. 129 e segs, apud WUNDERLICH,