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2. CAPÍTULO 2 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.2 UTILIZAÇÃO DAS ÁGUAS DE REÚSO

2.2.4 Reúso na aquicultura

Segundo Felizzatto (2000), a aquicultura é o processo de produção em cativeiro de organismos com hábitat predominante aquático, em qualquer estágio de desenvolvimento, ou seja: ovos, larvas, pós-larvas, juvenis ou adultos. Portanto a piscicultura, que consiste na criação de peixes, faz parte dessa atividade.

A partir da década de 1980, iniciou-se a ascensão da piscicultura no Brasil, que teve como principais fatores desencadeadores a elevação dos custos de transporte de pescado fresco para o interior, a deterioração dos recursos hídricos, a diminuição do potencial de peixes dos cursos d água e o reconhecimento do grande potencial econômico desta atividade no setor primário. Diante deste panorama, o uso de esgotos na piscicultura tem crescido e constitui uma fonte alternativa de produção de proteína a baixo custo, e também uma forma de reciclagem de nutrientes (BASTOS et al., 2003).

Segundo MOTA et al., (2007) a literatura indica as seguintes formas de reúso de esgotos no cultivo de peixes:

• Adição de esgoto (ou excretas) aos tanques piscícolas (diluição de cerca de 100 a 150 vezes);

• Tanques de cultivo de peixes utilizando efluentes de estações de tratamento de esgoto. A qualidade do efluente tratado é um fator primordial na garantia da sustentabilidade da prática do reúso em piscicultura. É de extrema relevância realizar o controle das cargas orgânicas sobre os níveis de Oxigênio Dissolvido, bem como a toxicidade da salinidade, teor de amônia, metais pesados, dentre outros contaminantes presentes nos efluentes. A remoção de nutrientes é um fator quase obrigatório no reúso aplicado à piscicultura, principalmente no que se refere à amônia, que é tóxica a maioria das espécies em concentrações relativamente reduzidas (BASTOS et al., 2003).

Diversos trabalhos, com experiências em escala real ou no âmbito de pesquisa, registram a viabilidade do uso de esgotos sanitários em piscicultura e indicam que, com adequado manejo, é possível alcançar boa produtividade e minimizar os riscos à saúde, além da aceitabilidade do mercado de consumo. Destacam-se os trabalhos que são desenvolvidos em Lima, Peru, desde 1983, pelo Centro Panamericano de Engenharia Sanitária e Ciências do Ambiente (CEPIS), utilizando lagoas de estabilização (MOSCOSO et al., 1992, BASTOS, 2003, apud MOTA et al., 2007).

A produção estimada de esgoto doméstico na Índia é de aproximadamente 100L/hab/dia. O esgoto é rico em compostos orgânicos e nutrientes, e, após um tratamento simples, podem ser utilizados na produção de peixes e camarão. Diversos estudos conduzidos na Índia e em outros locais (DASGUPTA, 2008 apud GHOSH et al., 1999; DATTA et al., 2000; AYYAPPAN, 2000; CHAKRABARTY, 2002; BHAKTA e JANA, 2006; BUNTING, 2007; MUKHERJEE e JANA, 2007) comprovam a eficiência da utilização do esgoto tratado na produção de peixes. Os estudos demonstraram que a produção é segura do ponto de vista sanitário, mesmo em períodos de grande seca.

Na Índia, existem mais de 130 sistemas de piscicultura com tanques alimentados com águas residuárias, em uma zona de 12.000 hectares; a maioria encontra-se em Bengala Ocidental. Calcutá e tem o sistema de aquicultura alimentado com águas residuárias mais extenso do mundo; as águas residuárias, sem tratamento, e a água pluvial da cidade são conduzidas através de um canal principal, que distribui o líquido por um complexo sistema de canais secundários e terciários até um extenso sistema de tanques com uma superfície de 4.400 hectares, produzindo carpa e Tilápia, que são importantes como alimento na Índia, e em 5 a 6 meses alcançam o tamanho comercial (STRAUSS e BLUMENTHAL, 1990; EDWARDS, 1992).

A fertilização de sistemas de piscicultura com excreta ou águas negras é praticada principalmente no sudoeste de Java Oeste, na Indonésia. Em quatro regências (áreas administrativas) de Bandung, Ciamis, Garut e Tasikmalaya, onde a prática é mais comum, possuem uma população aproximada de 8 milhões de habitantes. A produção anual de peixes é de 33.000 toneladas e em lagoas de 10.000 hectares de superfície, o cultivo predominantemente é de carpa comum, tilápia do Nilo e Javanesa. A produtividade anual varia de 1600 a 2800 kg/ha e o lodo de fundo dos tanques é utilizado como condicionador de solo e fertilizante para a produção de arroz. Em algumas lagoas, cultivam-se também plantas aquáticas - water spinach (Ipomoea aquatica) - para consumo humano, preparando-as de forma cozida. A doença do tipo diarréia não é o maior problema nas vilas, com a frequencia de somente um episódio por pessoa por ano. As concentrações de coliformes fecais nas lagoas de peixes variam de 104 a 105 NMP/100mL. São ausentes as infecções causadas por trematódeos (Clonorchis, Fasciolopsis e Schistosomas). Na Indonésia, a prática da fertilização das lagoas de peixes com águas negras não parece promover, com significante excesso, qualquer doença relaciona com as excretas humanas (MARA e CAIRNCROSS, 1989).

A China produz 60% dos peixes mundiais em apenas 27% de áreas cultivadas em sistemas de piscicultura, enquanto os chineses produzem 2,25 milhões de toneladas anuais em 7.000 km2 de superfície em lagoas; o restante do mundo, em 18.000 km2, produz 1,5 milhões de toneladas anuais. O rendimento médio chinês é de 3.200 kg/hectare, mas, se bem manejado em policultura intensiva, poderá ser de 7.000 kg/hectare. O uso de excreta não tratada para

Na América Latina, em particular no Peru, a partir de 1958 iniciou-se a operação da estação de tratamento de águas residuárias provenientes da zona sul de Lima. O sistema é chamado de Lagoas de San Juan de Miraflores, e, em 1975, realizaram-se vários estudos com tendência forte ao reúso em aquicultura do efluente tratado por essa estação (MOSCOSO e GALECIO, 1978). A partir de 1983, implementou-se um projeto o qual, certamente, representa o centro de referência piloto de reúso em aquicultura da América Latina ainda hoje.

O uso de esterco animal para alimentação de peixes a muito é entendido como alternativa barata de produção de proteína de alta qualidade nutritiva. No oeste de Santa Catarina, o policultivo de peixes integrado a suinocultura apresenta custo médio de produção de R$ 0,30/kg de peixe, enquanto no litoral norte do Estado, o monocultivo de tilápias com ração tem custo médio de R$ 0,90/kg de peixe. A Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina estima que 70% do cultivo de peixes de águas doces sejam obtidos a partir de dejetos suínos como principal insumo aportado nos viveiros (BOLL et al., 1999, apud BASTOS et al., 2003).

A criação de peixes pode ser desenvolvida em sistemas extensivos e intensivos diferenciados, basicamente, pelo controle implementado, incluindo o tipo de alimentação e a produtividade alcançada. Na criação extensiva, a alimentação é natural, disponível nos tanques de peixes e a produtividade é próxima a obtida em condições naturais. Nos cultivos semi-intensivo ou intensivo caracterizados, dentre outros fatores, pela utilização de doses menos ou mais completas de alimentação artificial, o objetivo é maximizar a produção em áreas compactas (BASTOS et al., 2003).

Aspectos como hábitos reprodutivos, hábitos alimentares, sensibilidade com relação ao meio, adaptação climática e à qualidade da água e facilidade de manejo devem ser observados no momento da escolha da espécie que será utilizada na piscicultura com efluentes tratados. Dentre as espécies já pesquisadas com a utilização de efluentes tratados, a tilápia e carpa vêm se destacando.

Segundo Bastos et al., (2003) o pH ideal para cultivo de peixes encontra-se na faixa de 6,5 a 9,5, onde a presença de bicarbonatos é predominante. A transparência deve ser a maior possível, pois a mesma tem uma relação direta com a atividade fotossintética no meio. A faixa de OD vai variar de acordo com a espécie e as suas variações estão relacionadas às atividades fotossintéticas, à respiração da biota, bem como à variação da carga orgânica no meio líquido. A condutividade elétrica muito elevada também significa salinidade excessiva, que é prejudicial à piscicultura. A faixa ideal de conforto térmico para as espécies tropicais, como a tilápia, fica em torno de 20ºC a 30ºC. O fósforo apresenta-se geralmente em baixas concentrações e a sua forma predominante é o ortofosfato, que é assimilável pelo fitoplâncton e servido de fonte de nutrição para os peixes. A tolerância às diversas formas de nitrogênio também varia de espécie para espécie e, ainda, depende do estágio de vida. Em geral os níveis letais são: de 0,6 a 2,0 mg/L para a amônia, de cerca de 0,5 mg/L para o nitrito e em torno de 5,0 mg/L, no caso do nitrato. A forma mais tóxica é a amônia livre (NH3), sendo que a sua toxicidade sofre variação devido ao pH da água e ainda depende da intensidade da perda no meio por volatilização. Os peixes toleram amônia na faixa de 0,2 a 0,5 mg/L, já a tilápia do Nilo não suporta quantidades superiores a 1,5 mg/L.

A alimentação dos peixes deve ser balanceada e conter componentes alimentares em quantidade e diversidade (proteínas, lipídios, carboidratos, aminoácidos, e ácidos graxos) de acordo com as necessidades da espécie. O conhecimento dos hábitos alimentares do peixe é de fundamental importância para a produtividade. O alimento vivo, em particular as algas, apresenta valor nutritivo inquestionável, sendo considerado a melhor opção nas fases iniciais de desenvolvimento dos peixes. Em linhas gerais, as seguintes características do fitoplâncton são determinantes na seleção e disponibilidade do alimento natural: tamanho e densidade, mobilidade e capacidade de flutuação, valor nutricional, facilidade de absorção e digestão (TAVARES e ROCHA, 2001).

Edwards (1992) apresenta uma extensa revisão de experiências de criação de peixes em todo o mundo, conforme alguns exemplos mostrados na Tabela 2.10.

Tabela 2.7 – Produção piscícola e demanda de água por espécie cultivada e sistema de produção.

Espécie Sistema de produção (país)

Produção (TM/ha/ano)

Demanda de água (TM/ m3)

Bagre africano (Clarias baltrachus)

Intensivo em tanques

(Tailândia) 100-200 50-220

Tilápia (Oreochromis niloticus)

Fluxo mínimo de água e alimentação com detritos (Tailândia) 6,8 1.500-2.000 Tilápia (Oreochromis niloticus) Intensivo em tanques com aeração mecânica

(Tailândia)

17,4 21.000

Carpa comum (CuprInus carpio) e prateada

(Hypophtalmictys molitriz), tilápia

Extensivo em tanques

(Israel) 3 12.000

Carpa comum, tilápia Semi-intensivo em

tanques (Israel) 9 5.000

Carpa comum Intensivo em tanques

de derivação (Japão) 1.443 740.000

Bagre (Ictalurus punctatus)

Intensivo em tanques

(EUA) 3 6.500

Como exposto no relatório de Engelberg (IRCWD, 1985), a preocupação do ponto de vista de saúde pública para o reúso na aquicultura são os trematódeos ou os ovos de: Schistosoma, Fascilopsis e Clonorchis. Sendo que os ovos desses parasitas são mais frágeis do que os de Ascaris e podem ser eliminados em curto período de tempo. Os caracóis são hóspedes intermediários de vários parasitas helmínticos, incluindo a espécie Schistosoma. A infecção ocorre em pessoas no momento do banho nos locais contaminados quando as larvas do esquistossoma penetram na pele humana. O cuidado de contaminação no manejo dos tanques aquícolas deve ser redobrado para os trabalhadores da aquicultura. Certas espécies de peixes são hóspedes intermediários secundários de vários parasitas helmínticos, por exemplo, a espécie Clonorchis.

Até o momento ainda não foram definidos os padrões e normas para a prática do reúso no Brasil. Usualmente, os pesquisadores e empresários adotam os padrões da Organização Mundial da Saúde que define as seguintes diretrizes (WHO, 1989):

• Quantidade menor que 103 CF/1000mL, na água no tanque de piscicultura; • Valores entre 103 e 104 CF/100mL na água afluente ao tanque de piscicultura; • Ausência de ovos de helmintos (trematóides).

Segundo Edwards (1992), Araújo (2000) apud Aquino et al., (2007) o risco de contaminação humana é maior devido à ocupação do homem na cadeia alimentar como consumidor secundário, tendo em vista que os compostos químicos acumulados chegam aos consumidores em doses ainda maiores. Contudo os efeitos toxicológicos no homem devem ser investigados a partir da observação de eventos, para construção de uma base de dados confiáveis. Com o objetivo de garantir a segurança alimentar do pescado cultivado em águas residuárias, faz-se as seguintes recomendações:

ƒ Os peixes devem atender aos padrões de qualidade de produtos de pescado, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) do Ministério da Saúde;

No Ceará, pesquisadores da UFC realizaram um estudo, junto ao Centro de Pesquisa sobre Reúso junto a Estação de Tratamento de Esgoto de Aquiraz-Ce de propriedade da Cagece, com o objetivo avaliar a viabilidade da utilização de esgoto doméstico tratado na alevinagem da Tilápia do Nilo, Oreochromis niloticus. Foram utilizados três viveiros de 50m³ de volume, um deles abastecido com água de poço e outros dois com esgoto doméstico tratado proveniente de um sistema de lagoas de estabilização. Nestes, se avaliou o efeito da aeração adicional utilizando um aerador de sucção com potência de ¾ CV em um dos tanques. Todos os viveiros foram povoados com alevinos de tilápia, revertidos sexualmente para machos, com peso médio de 1,5g, densidade de estocagem de 12 alevinos/m² e 600 alevinos/viveiro. O experimento durou 49 dias, onde os alevinos deveriam chegar ao peso médio final de 40,0g (ideal para a estocagem em tanques-rede padrão da piscicultura atual) com a utilização de aproximadamente 26,0 kg de ração comercial por viveiro. Foram monitorados os parâmetros de crescimento em peso, comprimento e biomassa, além da sobrevivência e conversão alimentar e também os níveis de contaminação por patógenos nos músculos, vísceras e pele dos peixes. Como conclusão comprovou-se a viabilidade da alevinagem da tilápia do Nilo utilizando-se esgotos domésticos tratados em sistemas de lagoas de estabilização com o uso de aeração mecânica adicional e que o peixe produzido atende aos padrões permitidos pela legislação sanitária vigente (SANTOS et al., 2006).

Tabela 2.8 – Exemplos de cultivo de peixes com esgoto sanitário.

País Espécies Características do sistema Observações

África do Sul

Tilápia (Oreochromis mossambicus,

Tilápia sparraman)

Tanques alimentados com efluente

secundário (filtros biológicos) Produtividade: 1,0 t/ha.ano

África do Sul

Tilápia (Oreochromis mossambicus,

Tilápia rendalli), carpa (CyprInus carpio), carpa prateada (Hypophtalmichthys molitrix), bagre,

blackbass (Micropte)

Reservatório (25 ha) alimentado com efluente secundário

Bagres e blackbass mantidos como controle de reprodução das tilápias: 1,0 t/ha.ano

Estados Unidos

Bagre (Icalurus punctatus), tilápia, truta (Salmo gairdneri)

Tanques para pesca esportiva alimentados com efluente de lodos

ativados filtrado

Pequena sobrevivência de trutas, produtividade de bagres e tilápias: 0,8 t/ha.ano

Estados Unidos

Bagre (Icalurus punctatus), tilápia

(Oreochromis aureus)

Quatro lagoas de estabilização em série alimentadas pelo efluente de

lagoas aeradas

Tilápias: bom crescimento, porém com mortalidade considerável no inverno. Bagres: bom crescimento apenas nos estágios iniciais de

desenvolvimento Hong

Kong Tilápia (Oreochromis mossambicu)

Dois tanques alimentados com efluente secundário (lodos ativados)

Bom crescimento e

sobrevivência, produtividade: 2,0 t/ha.ano

Índia

Carpa (CyprInus carpio), carba- cabeça-grande (Aristichthys nobilis),

carpa-capim (Ctenopharyngodon

idella)

Dois tanques em série com os anteriores

Bom crescimento de carpa- comum, carpa-cabeça-grande e carpa-prateada (produtividade: 2,0 t/ha.ano); mortalidade elevada de carpa capim

Carpa (CyprInus carpio) Tanque alimentado com efluente de

lagoas de estabilização (TDH 2 dias) Produtividade: 7,7 t/ha.ano Carpa (CyprInus carpio)

Dois tanques em série alimentados com efluente de lagoas de estabilização (TDH 3 dias)

Produtividade: 11,5 t/ha.ano Carpa (CyprInus carpio), carpa

prateada (Hypophtalmichthys

molitrix), tilápia-do-nilo(Oreochromis

niloticus)

Tanque alimentado com efluente

primário Produtividade: 7,6 – 9,4 t/ha.ano

França

Carpa (CyprInus carpio), carba- cabeça-grande (Aristichthys nobilis),

carpa prateada (Hypophtalmichthys

molitrix), tilápia-do-nilo(Oreochromis

niloticus)

Tanque alimentado, em batelada, com efluente de lagoa de

estabilização

Bom crescimento; ocorrência de mortalidade em razão de amônia OD

Hungria

Carpa (CyprInus carpio), carpa prateada (Hypophtalmichthys

molitrix), carba-cabeça-grande (Aristichthys nobilis), tilápia-do-

nilo(Oreochromis niloticus)

Tanques alimentados por aspersão

com efluente primário Produtividade: 4,4 – 6,1 t/ha.ano

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