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Não cabe aqui recontar a história das relações Brasil--China, mas apenas notar que as percepções brasileiras sobre a China são diversas e em sua maioria negativas, ao contrário do que sugere a designação de “parceria estratégica” outorgada por Jiang Zemin quase duas décadas atrás. Isso se reflete em duas dimensões: o arcabouço institucional dedicado às relações bilaterais e a opinião pública.

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Enquanto muitos consideram 2004, com a troca de visitas presidenciais acompanhadas de enormes delegações comerciais e criação de mecanismos de diálogo, um marco fundador nas relações contemporâneas entre Brasil e China, o que se vê é que as iniciativas lá iniciadas não adquiriram força. A Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível, presidida pelo então pelo vice--presidente José Alencar e pela vice-premiê Wu Yi (atualmente liderada por Michel Temer e Wang Qishan), teve em oito anos de existência tantas reuniões canceladas quanto realizadas. A segunda cúpula da COSBAN (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação), agendada para 2009, foi cancelada de última hora pelo governo brasileiro, enfurecendo tanto sua contraparte chinesa, que havia preparado a maior de-legação chinesa já enviada ao Brasil (10 membros do Conselho de Estado e 62 empresários), quanto o setor privado brasileiro.

O Memorando de Entendimento no qual o Brasil pro-metia reconhecer a China como economia de mercado foi alvo de críticas na mídia, por grupos de interesse dos mais diversos setores (calçados, máquinas, brinquedos, têxteis, entre outros), e até mesmo por vozes dentro do Ministério de Relações Ex-teriores. Como consequência disto (e do fato de que a China recuou no apoio à candidatura brasileira a um assento perma-nente no Conselho de Segurança), o memorando jamais foi im-plementado e a China continua a ser tratada como economia não-de-mercado na legislação comercial brasileira. A expecta-tiva criada na época (por falhas de comunicação) de que a China investiria em setores considerados prioritários pelo go-verno brasileiro nunca se concretizou, gerando mais desilusões e críticas por parte de lobbies industriais (FIESP) e órgãos do governo (Presidência, MDIC, MRE). Em 2010, quando os in-vestimentos começaram a chegar, sua concentração inicial em

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recursos naturais gerou apreensões e críticas violentas por parte desses mesmos atores e de muitos outros.

Desinteressado pelos temas da agenda bilateral e desi-ludido com a perda do apoio chinês aos planos brasileiros de reforma do Conselho de Segurança, o Chanceler Celso Amo-rim deu pouca atenção à China, fato refletido nas dificuldades sofridas pelas representações diplomáticas em Pequim e Xangai no período23 e na virtual inexistência de pessoal especializado no Ministério. A promoção do Embaixador Antônio Patriota a Secretário Geral e, em seguida, a Ministro de Relações Exterio-res trouxe novas ideias e iniciativas nessa área, mas há ainda um grande déficit a ser remediado.

Esse déficit também é presente nos outros níveis da so-ciedade brasileira. São poucos os especialistas em China na academia brasileira capazes de oferecer cursos sobre história, política, direito, economia ou outros tópicos, e o estudo do mandarim só começou a ser popularizado nos últimos três anos. Como resultado, o número de profissionais capacitados nos setores público e privado é irrisório. Isto limita direta-mente a capacidade brasileira de compreender as mudanças profundas que acontecem na China e sua crescente interação com o resto do mundo, e limita ainda mais gravemente sua capacidade de reagir aos desafios e oportunidades que estes processos apresentam.

O conhecimento chinês sobre o Brasil é igualmente de-ficitário. Apesar de contar com um número impressionante de latino-americanistas, a China possui poucos brasilianistas e o conhecimento sobre o país entre sua sociedade é mínimo. Um estudo publicado em 2008 pelo Instituto de Estudos

Latino-23 Entre outras, as dificuldades mencionadas por funcionários das representações incluem falta de pessoal para atender as demandas funcionais e falta de atenção e apoio no MRE.

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-Americanos (ILAS), da Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS), concluiu que o interesse dos empresários chineses na América Latina é considerável, mas mal informado. O Brasil é visto como importante parceiro e fonte de bens cruciais para o crescimento chinês, mas pouco se sabe sobre sua história, cul-tura e economia.

Outro fator que diferencia o Brasil de outros países, in-clusive na América Latina, em sua relação com a China é a ausência de uma comunidade chinesa mobilizada e influente.

Apesar de abrigar uma diáspora chinesa relativamente nume-rosa (aproximadamente 200.000), esta se encontra concen-trada quase exclusivamente no Estado de São Paulo, dividida entre chineses de Hong Kong, Taiwan e RPC, assimilada em grande parte a outros grupos imigrantes e à população geral, e, consequentemente, inarticulada politicamente ou economi-camente. A falta de coordenação é ilustrada pela existência de mais de 30 câmaras de comércio Brasil-China lideradas por chineses étnicos que competem vigorosamente entre si.

Outro resultado da assimilação chinesa no Brasil é positivo:

esses imigrantes não têm sofrido o mesmo tipo de persegui-ção e discriminapersegui-ção que seus co-nacionais em outros países da América Latina24. Como mencionado anteriormente, um novo fluxo de imigrantes chineses, muitos trabalhadores tem-porários que não se assimilam à sociedade, começa a mudar essa figura. Isolados em complexos habitacionais ou hotéis, esses imigrantes não aprendem a língua local e são identifica-dos com suas companhias e com o governo. Ao contrário identifica-dos imigrantes das ondas anteriores, a presença desses cidadãos chineses começa a levantar suspeitas – de envolvimento em

24 Ver Adrian Hearn e Luis Manríquez (eds.) China and Latin America: Tracing the Trajectory (Lynner Rienner, 2011), especialmente capítulos 8 e 11.

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atividades ilegais – e gerar tensões sociais devido a receios de competição por vagas de trabalho que requerem maior qualifi-cação25.

Outro elemento ausente do ambiente político brasileiro é um lobby pró-China. O Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), criado por iniciativa da, então, Vale do Rio Doce com beneplácito do presidente Lula, congrega grandes em-presas como Suzano, Sadia, Embraco e Embraer. Durante os seis primeiros anos de sua existência, o CEBC atuou como a principal voz pelo desenvolvimento de laços comerciais mais estreitos, melhor coordenação entre governo e setor privado e contra o preconceito e contra a adoção de medidas prote-cionistas desnecessárias. As pressões proteprote-cionistas advinham de grupos de interesse setoriais – têxteis (ABIT), brinquedos (ABRINQ), máquinas (ABIMAQ), calçados (ABICALÇA-DOS) – e grandes complexos industriais regionais como a Fe-deração das Indústrias do Estado de São Paulo. Estes grupos, e vozes associadas na imprensa, na academia e em think tanks lideravam e continuam a liderar a campanha contra a China, moldando a opinião pública e políticas comerciais. O discurso dominante, propagado por esses atores, é o de uma China que invade o Brasil com bens cuja competitividade adviria não de vantagens comparativas tradicionais como abundância de mão de obra e capital, mas de trabalho escravo, pirataria, bai-xos padrões de qualidade, evasão fiscal e subfaturamento, e, é claro, dumping sistemático.

Contando com apoio de grandes empresas e de atores dentro de órgãos do governo (por exemplo, do Ministério de

25 Para uma explicação do fenômeno, ver Mayda, Anna Marie. 2006. Who is Against Immigration? A Cross-Country Investigation of Individual Attitudes toward Immigrants. The Review of Economics and Statistics 88 (3):510-530.

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Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e do Mi-nistério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), o CEBC nesse período tinha como uma de suas missões primordiais contrabalançar essas pressões negativas e propor agendas positivas, como a diversificação de exportações e a atração de investimentos. Em 2008, o CEBC publicou, em parceria com o MDIC e a Confederação Nacional de Indústrias, a Agenda China, que propunha uma agenda de promoção co-mercial para aumentar exportações de bens de maior valor agregado para a China em produtos nos quais o Brasil possui vantagem comparativa. A Agenda, bem recebida por atores de dentro do governo e no setor privado, jamais foi imple-mentada.

Em 2010, após mudança na liderança, o CEBC se tornou menos vocal em sua oposição a esses grupos e menos disposto a contrariar decisões do governo. De fato, desde então, o CEBC passou a adotar posturas mais próximas da FIESP e outros gru-pos de interesse. No mesmo ano, quando os primeiros grandes investimentos chineses em petróleo e mineração foram anun-ciados, a instituição se posicionou contra a livre entrada de ca-pital chinês no Brasil, especialmente em setores de recursos na-turais, opinião compartilhada publicamente por figuras como Benjamin Steinbruch, da FIESP (e CSN), e Delfim Netto.

Ainda em 2010, o Congresso aprovou lei que impunha novas restrições à aquisição de terras por estrangeiros, em parte motivada por receios quanto a interesses chineses, e rumores começaram a circular sobre a criação de uma nova lei de mi-neração com fins similares. Mesmo a entrada de investimentos em manufaturas, curiosamente, tem enfrentado críticas. Em 2011, empresas chinesas de automóveis (JAC e Chery, principalmente), que haviam começado a importar unidades e conquistar fatia

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relativamente pequena do mercado nacional, e haviam anun-ciado planos de investimento em montagem e produção, se tornaram alvo de ataques de rivais locais (e multinacionais), lobbies industriais acima mencionados e sindicatos. O resultado foi o anúncio de aumento do IPI em 30% incidente sobre auto-móveis com menor índice de conteúdo local e o descarrilamen-to de planos de investimendescarrilamen-tos já anunciados e reavaliação das percepções de risco político e regulatório brasileiro por parte das empresas chinesas.

Conclusões

A partir da breve análise acima podemos destacar três implicações da crescente presença chinesa na América Latina para o Brasil.

1. A China tem contribuído para o crescimento econômi-co em diversos países da região econômi-como fonte de demanda e recursos financeiros, especialmente face à crise finan-ceira global e à estagnação dos parceiros tradicionais da região, sendo o Brasil um dos principais beneficiários.

As reações negativas locais a essa presença chinesa ofe-recem lições para o Brasil sobre o perigo da sobre-expo-sição a certos riscos políticos associados a investimen-tos em setores extrativos26.

2. Por outro lado, ao se estabelecer como parceiro eco-nômico, credor e doador sem precondições políticas, a

26 Empresas brasileiras com operações na região não desconhecem esses riscos - vide os protestos enfrentados pela Vale no Peru em 2011 – porém aprender com os erros de outros é um luxo que não se pode desprezar.

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China preenche uma das lacunas na região que o Brasil se ocupava em explorar. É certo que há espaço suficiente na região para ambos, mas a competição por projetos específicos, especialmente nos setores de energia, mi-neração e construção só deve crescer no futuro. A in-fluência que o Brasil busca extrair por ser um credor e doador alternativo a países desafetos com as fontes tra-dicionais deve ser diluída consideravelmente.

3. A ascensão da China (bem como do restante da Ásia) acentua as cisões internas à região decorrentes de estru-turas políticas e econômicas domésticas que favorecem, em partes da região, maior liberalização e integração e, em outras, maior protecionismo. Isto dificulta os planos brasileiros de promover um novo padrão de integração regional informado por ideais desenvolvimentistas e, em certa medida, voltado para maximizar a influência brasileira. Por outro lado, existe sobreposição dos inte-resses brasileiro e chinês à medida que o capital chinês passa a contribuir para o desenvolvimento da infraes-trutura regional.

Capítulo VI

Securing the border: Brazil´s “South