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Inicialmente, no que tange aos números brasileiros relativos ao deslocamento interno, importa esclarecer que há uma franca ausência de dados oficiais sobre o tema314, o que leva à justificação da escolha metodológica de se analisarem nesta seção os dados do Instituto Igarapé, uma instituição sem fins lucrativos que se autodenomina um “think and do tank” independente, dedicado à integração das agendas da segurança, da justiça e do desenvolvimento.

Para se enfrentar a realidade brasileira relativa ao deslocamento interno, serão analisados dados colhidos entre janeiro de 2000 e dezembro de 2017315, com vistas à identificação de suas principais causas e consequências. No citado período, pelo menos 8.8 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar no Brasil em função de desastres, projetos de desenvolvimento e violência nos espaços rurais.

No que toca ao deslocamento forçado, e não somente interno, é seguro dizer que o Brasil enfrenta não apenas uma, mas múltiplas crises. Desde 2016, milhares de venezuelanos cruzaram a fronteira com o Brasil em busca de segurança e de sobrevivência. O país também recebe refugiados de mais de 80 nacionalidades, além de um número alto de migrantes haitianos. Muito menos visíveis, no entanto, são os milhões de brasileiros que são forçados a se deslocar em função de desastres naturais, da violência sistemática e de empreendimentos de desenvolvimento.

Os aludidos 8.8 milhões de pessoas deslocadas forçadamente no Brasil, entre 2000 e 2017, podem ser distribuídos em quatro categorias: refugiados, violência, desenvolvimento e desastres. A grande maioria delas – cerca de 6.4 milhões – teve que abandonar os seus lares

314 O Brasil não possui nenhum tipo de repositório voltado à centralização e sistematização de dados sobre deslocamento forçado. Isso contribui para que as respostas governamentais ao fenômeno - tanto no que diz respeito à formulação de normativas, quanto à implementação de políticas públicas - sejam insuficientes, fracas e compartimentadas entre os diferentes órgãos públicos, como se demonstrará ao longo desta tese.

315 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018. O levantamento de dados desse artigo teve, como base, dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) e de relatórios, entrevistas e reuniões com representantes de organizações envolvidas, direta ou indiretamente, com a temática de migração involuntária. Também foram consultadas instituições financeiras, bancos de desenvolvimento e organizações da sociedade civil. O estudo inclui, ademais, dados de empresas públicas e privadas, e também de ministérios e secretarias do governo federal.

devido a desastres naturais ou provocados pelo homem, como incêndios e rompimentos de barragens. Os projetos de desenvolvimento, por sua vez, deslocaram pelo menos 1.2 milhões de brasileiros nos últimos 18 anos. Já a violência em espaços rurais forçou o deslocamento de cerca de 1.1 milhões de pessoas. No que diz respeito aos refugiados, identificou-se que o Brasil acolhe apenas 10.022 deles.316

Ao analisar especificamente a realidade brasileira de deslocados internos, Robert Muggah317 propõe interessante categorização das circunstâncias em que o deslocamento interno ocorre no país. Partindo de uma generalização, o autor identificou que há pelo menos três cenários capazes de gerar o deslocamento interno no Brasil, a saber: violência política e criminal, intervenções vinculadas ao desenvolvimento e desastres naturais.

Note-se que todos os três vetores – violência, desenvolvimento e catástrofes – geram deslocamentos forçados, mas, por outro lado, acarretam outras formas de migração, de natureza voluntária.318

A classificação sugerida por Muggah por ser devidamente ilustrada por meio da tabela abaixo.

Tabela 3 ― Categorização própria do deslocamento interno no Brasil.

Categoria Tipo Características

Induzida por

Violência

Atuação de gangues e milícias

Formas de deslocamento de curto, médio e longo prazo, incluindo movimentos intra e entre cidades. Em casos raros, inclui refugiados, mas predominantemente apenas deslocados internos.

Atuação policial e de Forças Armadas

Formas de deslocamento de curto prazo durante as operações, com predominância de movimentos dentro da cidade. Gera deslocados internos temporários e, em alguns casos, programas de proteção às testemunhas.

Induzida pelo Desenvolvimento

Infraestrutura e

melhoramentos urbanos

Formas de deslocamento a longo prazo que podem estar relacionadas com a realocação formal advinda de programas de reassentamento resultantes de projetos

316 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018.

317 MUGGAH, R. The invisible displaced: a unified conceptualization of population displacement in Brazil. J Refug Stud. 2015;28(2):222–37.

318 Nesse ponto, é importante destacar diferenciação feita pelo autor na obra citada na referência acima: para os propósitos desta tese, deslocamento refere-se a uma movimentação involuntária, quando a opção de permanecer é psicologicamente e fisicamente removida. Embora as distinções nem sempre sejam claras, o deslocamento pode ser distinguido da migração, na medida em que esta implica um certo grau de escolha para realocar.

Categoria Tipo Características

de barragens, estradas e megaeventos em grandes cidades, embora mais provável em áreas peri-urbanas e cidades vizinhas de dimensão intermédia.

Recursos e terra Formas de deslocamento de médio a longo prazo por parte ou em razão de latifundiários (soja, produção de carne bovina) que afetam os grupos minoritários / de baixa renda.

Pode gerar sem terra.

Induzida por

Desastres

Eventos climáticos

dramáticos

(Inundações, chuvas, secas)

Formas de deslocamento de curto a médio prazo nos centros urbanos, bem como em áreas periféricas rurais. Muitas vezes resulta em outras formas de migração (voluntária)

em razão da deterioração das condições. Degradação da terra a longo

prazo

Deslocamento de longo prazo em áreas desmatadas e salinizadas. Pode resultar em deslocamento em uma distância curta ou média. É frequentemente associada ao

Deslocamento induzido pelo

desenvolvimento.

O panorama nacional apresentado por Folly319 acrescenta à tabela acima uma subcategoria relativamente ao deslocamento ocasionado por desastres; justamente a categoria dos desastres provocados por seres humanos e, portanto, associados a intervenções humanas. Seriam também predominantemente de longo prazo e teriam como exemplos os incêndios, a liberação de produtos químicos, o colapso de edificações, bem como o rompimento de barragens.

Cabe ressaltar que, embora as categorias definidas (violência, desenvolvimento e desastres) tenham sido representadas na tabela separadamente, em muitos casos há forte interseção entre elas. Ilustrativamente, a migração forçada causada por empreendimentos de desenvolvimento pode englobar o uso de violência e, ainda, contribuir para a ocorrência de desastres, como ocorre nos casos de construção e rompimento de barragens.320

No que toca às pessoas deslocadas por desastres, a pesquisa coletou dados originários de uma única fonte, o Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), alimentado pelos órgãos de Defesa Civil municipais e sistematizado pelo Ministério da Integração Nacional. Esse sistema armazena dados sobre os desastres ocorridos em estados e municípios

319 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018.

desde 1991, assim como fornece informações sobre a população afetada, desaparecida, morta, ferida e deslocada por cada desastre catalogado.321

O quantitativo de pessoas deslocadas a partir de 2000, incorporado neste mapeamento, foi calculado pela soma das categorias de desabrigados (pessoas desalojadas que necessitam de abrigo temporário) e desalojados (pessoas cujas habitações foram danificadas ou destruídas, mas que, necessariamente, não precisam de abrigo público temporário).

O levantamento relativo às pessoas deslocadas em razão de projetos de desenvolvimento buscou informações de múltiplas fontes, desde bancos de desenvolvimento, como o Banco Mundial, a empresas privadas e organizações da sociedade civil, em especial o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas (CPCO). Também foram iagrupados dados obtidos por intermédio de entrevistas e reuniões com representantes de ministérios do governo federal, sobretudo do Ministério das Cidades (MCidades), do Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil (MTPA), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Ministério de Integração Nacional (MI) e da Secretaria- Geral da Presidência (SEGP).

O levantamento cingiu-se às obras financiadas pelo governo federal e cujos dados foram passíveis de obtenção por meio de fontes primárias e secundárias, como o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Portanto, a totalidade de projetos mapeados não corresponde à integralidade dos empreendimentos existentes. Com exceção feita à parte dos projetos associados à Copa do Mundo e às Olimpíadas, não foram incluídas as obras dos campos estaduais e municipais.322

A violência no Brasil atinge tanto espaços urbanos quanto rurais. Em áreas urbanas, inúmeras famílias e indivíduos já se viram forçadas a se deslocar em virtude da violência. Nada obstante, uma vez que não foi possível coletar dados quantitativos para calcular a escala de pessoas atingidas, frente à ausência de mecanismos de registro dessa dinâmica, lançou-se mão de uma abordagem qualitativa para tratar do fenômeno da violência urbana.

Ao longo de 2017, foram realizadas entrevistas com moradores de comunidades menos favorecidas do Rio de Janeiro que tiveram que abandonar os seus lares em razão da violência, sobretudo por ocasião de disputas entre facções rivais e das constantes incursões policiais com enfrentamento armado, em regiões próximas as suas residências. Tais

321 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, 2018

entrevistas confirmaram que o fenômeno do deslocamento forçado também se faz fortemente presente em contextos urbanos.323

Por sua vez, conseguiu-se obter os dados relacionados ao deslocamento de pessoas por violência nos espaços rurais. Esses foram baseados no relatório anual a respeito de conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que produz e sistematiza informações sobre a violência sofrida por moradores de áreas rurais, tais quais o número de assassinatos; de casas e roças destruídas; e de famílias expulsas e despejadas em função de conflitos por terras, caracterizados como ações de resistência e de enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso aos recursos naturais.324

O deslocamento forçado é um sintoma de turbulência e instabilidade global, de que o Brasil não está imune, uma vez tem em seu território representações locais da crise global de deslocamento forçado.

Sob o ponto de vista geográfico, os cinco principais estados brasileiros afetados em termos do número absoluto de pessoas deslocadas, entre 2000 e 2017, foram o Rio Grande do Sul (902.172), Amazonas (892.003), Santa Catarina (848.217), Minas Gerais (716.229) e São Paulo (657.501). Em termos relativos, isto é, considerado o número total de pessoas deslocadas em relação ao número de habitantes de cada estado brasileiro, o estado do Amazonas torna-se o principal atingido (teve 26% de pessoas deslocadas, de sua população de 3.483.985 pessoas), seguido do Acre (16% do total de 733.559 de habitantes), de Santa Catarina (14% de 6.248.436), do Rio Grande do Sul (8% de 10.693.929) e do Espírito Santo (8% de 3.514.952). Nesta análise, o número de habitantes de cada estado foi baseado no Censo de 2010, realizado IBGE.325

No Brasil, o crescimento urbano desordenado e as mudanças climáticas também têm constituído importante força motriz do deslocamento forçado.

Além da enorme escala de pessoas que precisam deixar os seus lares (uma média de 357 mil por ano, desde 2000), o estudo de Folly demonstra que os desastres também provocam grandes perdas humanas e custos econômicos. Estima-se que, nos últimos 20 anos, os desastres naturais tenham custado R$ 182 bilhões ao Brasil, o que representa uma perda mensal de 800 milhões.

323 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, 2018.

324 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018.

325 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018.

Uma parte relativamente pequena do total de deslocados por desastres desde o ano 2000 (1% ou 54.355 indivíduos) foi vítima de desastres provocados pelo próprio homem. Entre esses eventos, merecem destaque os incêndios, que forçaram 41.952 indivíduos a se deslocarem, o rompimento e o colapso de barragens (6.047 indivíduos) e o colapso de edificações (3.384).

Embora os desastres provocados pelo homem ocorram com menos frequência do que os naturais, aqueles podem causar danos irreversíveis, como no caso do rompimento da barragem na região de Mariana, em Minas Gerais, objeto da presente tese.

Também sob o prisma do deslocamento induzido por desenvolvimento (como uma de suas externalidades negativas), as barragens permanecem como importante propulsor da migração forçada no Brasil, especialmente aquelas destinadas à construção de usinas hidrelétricas (UHEs). Os dados de Folly indicam que entre 200 e 230 mil brasileiros foram forçados a deixar seus lares em função da instalação dessas barragens.326

Os deslocamentos causados por barragens são especialmente sensíveis. Por ocorrerem predominantemente em áreas rurais, costumam afetar diretamente, não apenas as moradias, mas também a renda, os costumes e as tradições das famílias locais. Entre as barragens construídas a partir dos anos 2000, a UHE Belo Monte, a quarta maior hidrelétrica do mundo, foi a que apresentou os maiores efeitos adversos. A usina provocou o deslocamento de cerca de 30 mil pessoas, e contribuiu significantemente para que o município de Altamira, onde a UHE está localizada, se tornasse a cidade mais violenta do Brasil. Além de liderar o ranking nacional no quesito homicídios e mortes violentas sem causas identificadas, a violência sexual contra mulheres, crianças e adolescentes aumentou consideravelmente em Altamira.327

É indiscutível que usinas hidrelétricas desempenham um papel central no modelo de desenvolvimento econômico brasileiro. Desde meados da década de 1970, mais de 60% da oferta interna de energia é sustentada pela energia hidráulica.328 Embora, por um lado, o investimento estatal na construção de grandes centrais hidrelétricas tenha reduzido drasticamente a dependência externa de energia, por outro, teve custos econômicos, sociais e ambientais muito elevados.

Em todo o Brasil, são enormes as tensões entre investidores, órgãos de governo, movimentos sociais e população atingida.

326 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018

327 FOLLY, M. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. Instituto Igarapé, v. 1, p. 1, 2018

328 MUGGAH, R.; FOLLY, M. . O lado obscuro do modelo de desenvolvimento brasileiro. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/O-lado-obscuro-do-modelo-de-desenvolvimento-brasileiro. Acesso em dez.2018.

Ainda que o deslocamento de populações ocasionado pela instalação de hidrelétricas não seja um fenômeno recente, o Brasil não possui nenhum órgão encarregado de prover proteção, compensação e reparação a essas pessoas.

O Poder Executivo monitora o deslocamento forçado como uma das condicionantes ambientais necessárias à emissão de licenças para realização de projetos de infraestrutura. Esse monitoramento tem sido feito pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) e por órgãos equivalentes no âmbito estadual. Embora desempenhem trabalho importante, esses órgãos carecem de recursos, de pessoal e de formação técnica específica para responder aos desafios da migração forçada. Além disso, não possuem normativas ou protocolos próprios para conduzir análises de risco ou para propor e garantir medidas compensatórias, serviços básicos e reparação adequada às pessoas deslocadas.

A ideia, por óbvio, não é defender a interrupção completa da instalação de usinas e centrais hidrelétricas no Brasil, mas incentivar que o processo seja mais transparente, participativo e sustentável. É urgente que se adote um paradigma socialmente responsável.

Embora o Brasil tenha se tornado um país urbanizado, são normalmente as populações rurais e comunidades indígenas – que dependem da terra para sobreviver – as que acabam forçadas a se deslocar em nome de um progresso sobre o qual não foram consultadas.329

Enquanto esta tese é escrita, outra tragédia de grandes proporções e idênticas origens assola o país. A barragem 1 da mina Córrego do Feijão em Brumadinho se rompeu no dia 25 de janeiro de 2019. Os rejeitos atingiram a área administrativa da Mineradora Vale, uma pousada e comunidades perto da mina. As causas da tragédia permanecem não esclarecidas.

Até maio de 2019, 33 pessoas seguem desaparecidas, ao passo em que já foram identificados 237 corpos. Mesmo após mais de 100 dias, as buscas do Corpo de Bombeiros, em Brumadinho, continuam intensas.330

Em 22 de março de 2019, a barragem da Vale em Barrão de Cocais, também em Minas Gerais, entrou em alerta máximo para o risco de rompimento. A mineradora afirmou que houve divergência de dados de instrumentos que monitoram a segurança do reservatório.

O sinal de alerta soou por volta das 21h30 de sexta-feira (22). Sem saber o que esperar, muita gente passou a noite em claro.331

329 MUGGAH, R.; FOLLY, M. . O lado obscuro do modelo de desenvolvimento brasileiro. Nexo Jornal. Disponível em:

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/O-lado-obscuro-do-modelo-de-desenvolvimento-brasileiro. Acesso em dez.2018.

330 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2019/05/07/interna_gerais,1051902/policia-registra-237-mortos-identificados-apos-tragedia-brumadinho.shtml. Acesso em mai.2019.

A barragem Sul Superior é considerada a estrutura em estado mais crítico da mineradora com 6 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério. Em caso de rompimento, a lama atingiria o Rio São João, que atravessa cinco bairros, inclusive a área urbana de Barão de Cocais.

SEÇÃO 2: (PARCOS) MARCOS LEGAIS NACIONAIS RELATIVOS AO