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Capítulo III Essência poética transfigurada pelas imagens

3.1 Duplo espelho

3.1.1 Realidade: reflexo do eu no outro

No soneto Realidade, podemos observar inicialmente que o título mostra a consciência do eu-lírico. Essa consciência é evidenciada pelo título e é confirmada na primeira estrofe, em que nos é sugerida a vivência de um amor com intensidade:

Em ti o meu olhar fez-se alvorada E a minha voz fez-se gorjeio de ninho... E a minha rubra boca apaixonada Teve a frescura pálida do linho...

Um relacionamento amoroso é evidenciado pela expressão “Em ti”, logo no início do primeiro verso. Conhecemos então o eu-lirico feminino e o outro. O eu-lírico traça um retrato de si no amado, pois se caracteriza em três partes do rosto no momento em que se integra no amado: olhar, voz e boca.

Retrata apenas partes do rosto, que é uma característica da poesia clássica. Podemos perceber a presença de substantivos que proporcionam uma força adjetiva. Para caracterizar o olhar surge o substantivo “alvorada”

como força concretizadora de luz pura, sem manchas, do amanhecer. Esse substantivo torna-se então um adjetivo e nos induz à imagem da manhã.

No segundo verso: “E a minha voz fez-se gorjeio de ninho”, evidencia- nos a imagem do gorjear. Isso também produz uma força adjetiva e concreta. O termo gorjeio – expressa uma sonoridade quase audível e táctil por meio da inocência e alegria sem limites dos pássaros no ato de cantar.

Toda adjetivação nos demonstra a beleza do eu-lírico. A voz representada por gorjeio de ninho, expressa aconchego, amor, sensualidade, algo que se torna palpável, táctil.

Encontramos também uma antítese entre as expressões “rubra boca apaixonada” e “frescura pálida do linho”, que nos sugere o sentimento amor tão contraditório e, ao mesmo tempo, tema constante em muitos poemas. Essa contradição produz uma tensão.

Sua boca apaixonada se transforma em algo puro como a frescura do linho. Enquanto sua boca é suavizada pelo frescor alvo do linho, sua paixão se satisfaz. Esse branco simboliza algo puro e positivo.

Todos esses predicativos que vêm materializar seu olhar – a alvorada, sua boca – rubra apaixonada, alva e fresca como o linho, sua voz – o gorjeio são substantivos que adjetivam, que concretizam sua imagem no amado, um espelho transformador sensorialmente quase táctil.

Na segunda estrofe,

Embriagou-me o teu beijo como um vinho Fulvo de Espanha, em taça cinzelada... E a minha cabeleira desatada

ainda percebemos o eu-lírico consciente da realidade, porém, embriaga-se com o beijo que é comparado a um vinho “fulvo de Espanha” - um vinho especial amarelo cor de ouro. Revela uma dualidade, pois o eu-lírico está consciente, mas começa a fugir do real. As reticências evidenciam esses momentos.

Há uma relação de embriaguez com o outro, de calor, diante da cor amarelada do vinho. O beijo é que a embriaga e que a transforma. A taça cinzelada por sua forma tão desenhada nos remete à boca do amado, pode representar o contato íntimo com o amante, algo sedutor.

Se na primeira estrofe, o eu-lírico nos remete à figura feminina delicada, meiga, as estrofes seguintes nos revelam a sedução depois de uma transformação embriagadora pelo vinho.

O eu-lírico agora possui os cabelos desarrumados em “cabeleira desatada”, já não possui a serenidade de antes. Em contrapartida, esse contato tão dinâmico e avassalador, encaminha-se novamente para a calma e segurança de estar com o amado. Surge o termo “sombra” que vem representar o aconchego, a direção. O eu-lírico se guia pelo amado, é transformados por ele e nele.

Esses dois quartetos em que o eu-lírico se transforma no amado, remete-nos ao soneto de Camões Transforma-se o amador na cousa amada, no qual o amador se transforma na coisa amada. As metáforas são comparações dela refletida no amado:

Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar;

[...]

Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? [...]

Como a matéria simples busca a forma.

(Transforma-se o amador na cousa amador – Camões )

No primeiro terceto, do poema florbeliano:

Minhas pálpebras são cor de verbena, Eu tenho os olhos garços, sou morena, E para te encontrar foi que eu nasci...

fica mais evidente a feminilidade do eu-lírico. A percepção de um eu-lírico feminino só se confirma nessa terceira estrofe quando se diz “morena”. Nessa estrofe, o eu-lírico faz uma descrição de seus olhos e cútis. “Minhas pálpebras são cor de verbena” e “Meus olhos são garços, sou morena”. Essa descrição já não é reflexo dela no amado, porém ressalta seus próprios aspectos físicos , não se vê no espelho do amado.

Mostra o uso de um adjetivo abstrato, pois o substantivo “pálpebras” recebe uma locução adjetiva “cor de verbena”. Coloca a cor de verbena em seus olhos, torna-se uma concretização de seus olhos, é o querer materializar.

Isso nos retrata a imagem de uma mulher muito bela e cheia de amor. Há uma espécie de neo romantismo, nesse fragmento.

Introduz um argumento adversativo “E para te encontrar foi que eu nasci”. Esse verso tem continuidade de idéia no próximo que é o primeiro verso da última estrofe “Tens sido vida fora o meu desejo”. Esses dois versos nos denunciam duas marcas psíquicas, evidenciando o pensamento do eu-lírico, ou seja, “Nasci para me fundir a ti e o meu desejo é isto”. Esse é o desejo do eu- lírico, fundir-se no amado. É um desejo real, que ela sente e vive nesse instante.

Entretanto, na última estrofe,

Tens sido vida fora o meu desejo E agora, que te falo, que te vejo, Não sei se te encontrei...se te perdi...

expressa seu desejo de fusão no amado no primeiro verso “Tens sido vida fora o meu desejo”, enquanto que no segundo verso: “E agora, que te falo, que te vejo”, há a quebra do plano ideal para o real, com a adição do termo “agora” que representa o momento presente. Esse termo marca a passagem, a mudança do plano ideal para o plano real.

O eu-lírico encontra-se em conflito e frustração. Deseja o homem amado, porém não consegue mantê-lo ao seu lado com uma dúvida “não sei se te encontrei... ou se te perdi...” O último verso mostra a realidade do eu-lírico, que se manifesta como o porta-voz da poeta.

O eu-lírico se retrata como transformada num espelho, que é o amado e que causa essa mudança. É uma fotografia dela no amado, integrada nele. Esse retrato dela é submetido a uma transformação radical do que ela é.

A propósito da temática do poeta decadente, ressaltamos que se situa no movimento Simbolista, o qual trata o poeta em conflito, como nos ressalta BELLODI (2005, p.30):

Ser poeta, é pelo menos em princípio, atividade masculina. Ser poeta é ser reflexivo, ser intelectualizado, é dar valor e importância especiais aos sentidos, aos sentimentos, e refletir sobre eles. Cabia ao homem, tradicionalmente, fazer essa reflexão. Florbela Espanca assume a persona da poeta, vivendo-a intensamente. Isso cria conflitos e dificuldades.

Notamos, nesse soneto, que o eu-lírico tem consciência e depois a perde na embriaguez da bebida. O poeta mostra-se em conflito com as coisas do mundo, principalmente, as frustrações com o “outro”.

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