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Tem que realizar grandes feitos que ultrapassem as fronteiras do seu Estado, tem que deixar um legado maior, que vá além dos limites de sua sociedade e de sua

biografia.

Para este segundo caso, seriam exemplos interessantes para se pensar pessoas como Lênin e o legado do socialismo realmente existente (sorex), com a Revolução Socialista de 1917, de cunho popular, com lastro na luta de classes e na violência, e que deveria inaugurar uma nova forma de vida social. Também Gandhi é um exemplo de homem da

virtù que escapa a seu tempo, mas agora alegando justamente que a não-violência seria

uma forma de fazer política inovadora.

Em outro contexto, mais formal-institucional, também aí se encontrariam os pioneiros da sociedade e do Estado norte-americano, quando instituíram o modelo de República, de Democracia, de Constituição e de Federação amplamente copiado pelo

111 Esta seria a ética da convicção, em que não se sente responsável pelo resultado último dos próprios atos, dado que se acredita que a ação possa estar sendo guiada por outras forças, acima da vontade própria.

mundo afora. Os exemplos de homens de virtù do mundo antigo, dados por Maquiavel, no entanto, são outros: Moisés, Teseu, Ciro, Rômulo e um exemplo menor, que é Hierão de Siracusa. Na lista não figura nem mesmo Alexandre, o Grande. No mundo moderno, do Maquiavel do século XV, os exemplos são quatro: Sforza, Fernando de Aragão e os Papas Alexandre VI e Júlio II : “A chave para essas figuras é o seu papel como fundadores de novas ordens, inovando sob o disfarce da renovação, criando instituições que sobreviveram a eles, dando extraordinárias demonstrações de si próprios” (Chisholm, 2004, p. 72). Todos são exemplos de príncipes violentos, mas o que os retira do rol da crueldade estéril é que fizeram um uso inteligente da força e política é isso: usar inteligentemente a força física. Mas, então, parece mesmo que Maquiavel é ainda mais incisivo quanto à análise fria de que a regra da política é a violência, e que diante deste fato a ética política é sem dúvida a de resultados finais, sob pena de se ver derrotado.

Ele endossa a idéia convencional de que virtù é o nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um príncipe aliar-se com a Fortuna e conseguir a honra, glória, fama [Argumenta] que a característica que define um príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo aquilo que for ditado pela necessidade — independentemente do fato de ser a ação eventualmente iníqua ou virtuosa — para alcançar seus mais altos objetivos. Deste modo, virtù passa a denotar precisamente a qualidade da flexibilidade moral que se requer de um príncipe: “ele deve ter uma mente pronta a se voltar em qualquer direção, conforme os ventos da Fortuna e a variabilidade dos negócios assim exijam” (Skinner, 1988, p. 65).

Desse modo, também sugere-se que a virtù é uma qualidade de adaptação à fortú, à fortuna, à sorte de lidar bem ou melhor com as circunstâncias e/ou fatos novos que lhe apareçam. É uma adaptação e uma ponderação a situações muitas vezes adversas e não só ao acaso — neste aspecto, a virtù é uma ação racional, medida, calculada, acertada, pensada. Trata-se de uma avaliação das contingências e das características do ambiente, do enredo, dos demais participantes e de suas próprias forças: o que não exclui que se tenha vida, dedicação, emoção, paixão pela política, pelo jogo da política.

Enfim, apenas quando prevalece o interesse público é que os fins justificam os meios; do contrário, quando prevalecem os interesses particulares — por serem interesses mesquinhos, cinicamente exclusivistas, desinteressados do coletivo —, aí se tem o crime de responsabilidade pública, porque se agiu em benefício próprio, mas contra a coletividade. Interessante notar, no entanto, que mesmo assim, Weber adverte para o fato de que a máxima, os fins justificam os meios, não está isenta de responsabilidade: “Se fizermos qualquer concessão ao princípio de que os fins justificam os meios, não será

possível aproximar uma ética dos fins últimos e uma ética da responsabilidade, ou decretar eticamente que fim deve justificar que meios113” (Weber, 1979, p. 146).

Talvez nem fosse necessário dizer, mas ainda queremos lembrar que o homem de

virtù é aquele que trata dos interesses de sua coletividade, até de seu Estado — o que não

se confunde com a idéia de bem comum, na versão católica romana, uma vez que a violência sobressai como meio prático da política. Assim, quando se assiste a um filme como O Poderoso Chefão é difícil não pensar no homem de virtù, capaz de colocar a coletividade, a organização da família, que é máfia de origem siciliana, acima dos próprios interesses e da própria vida. Note-se que, mesmo se tratando de facção criminosa, há um forte sentido de lealdade com a causa e com o grupo. Mas, a cena final da trilogia, quando

Al Pacino morre solitário (apenas com a companhia de um pobre cão), sem poder e nem

glória alguma, é indisfarçável a leitura que devemos fazer de que a virtù é uma habilidade, uma técnica que merece ser apurada, refinada, que merece muito reino e reflexão, e não um dom, uma revelação ou marca divina — mesmo o carisma deve ser apurado com técnicas de oratória, desenvoltura, conhecimento específico sobre táticas e estratégias, aliás, como fazem os grandes generais. É óbvio que se trata aqui de uma licenciosidade deste autor e não de Maquiavel. Neste caso, a virtù soaria mais como potência (virtus) e não como força-total em si mesma, uma vez que o príncipe da máfia serviria apenas a uma parte do todo, e evidentemente que não a todos indistintamente. A virtù, portanto, é uma qualidade moral (senso de responsabilidade) e psicológica (sentido de proporção) que orienta tanto aos políticos quanto ao Estado:

Pode-se, pois, definir a política como a atividade que reivindica para a autoridade instalada em um território o direito de domínio, com a possibilidade de usar em caso de necessidade a força ou a violência, quer para manter quer para defender a comunidade contra ameaças externas. A atividade política consiste, em suma, no jogo que tenta incessantemente formar, desenvolver, entravar, deslocar ou perturbar as relações de domínio. O domínio é a manifestação concreta e empírica do poderio (Macht) (Freund, 1987, p. 161).

O certo mesmo, no entanto, é que o melhor é ter prudência até ao final, e que isto valha tanto para a vida política, quanto privada. Então, não é demais lembrar o próprio Maquiavel quando cita Petrarca, como as últimas palavras do livro O Príncipe, aliás, palavras que soam como sussurro: “A virtude tomará armas contra o furor e será breve o combate, pois o antigo valor ainda não está morto nos corações italianos” (Maquiavel,

113 No Estado de Exceção, o pretenso fim da conquista ou da Segurança Nacional afasta esta máxima porque esses fins acabam por justificar os meios, a exemplo do Governo do Iraque e das constantes ameaças de invasão do Irã.

1987, p. 110). Este verso de Petrarca, na sua famosa canzone “Minha Itália”, reflete bem que a virtù é um valor pessoal. É isto que requer a virtù: deixar os vícios; nutrir as virtudes.

2ª PARTE

H

HOOBBBBEESSEEOOEESSTTAADDOOMMOODDEERRNNOO (

(CCOONNSSEERRVVAAÇÇÃÃOOEEMMOODDEERRNNIIDDAADDEEEEMMHHOOBBBBEESS))

Uma das construções mais evidentes e contundentes da modernidade foi sem dúvida a centralização dos aparelhos do Estado, retirando as instituições do aparente caos do Estado Feudal. Por isso, nada mais lógico do que retomarmos um pouco dessa história da formação do Estado Moderno e com isso também resgatar Hobbes, pois foi um dos idealizadores da racionalidade do Estado Moderno e da Razão de Estado.

O Estado moderno é o que formulou as bases do poder absoluto. O Estado Moderno tem como principal característica a centralização e a concentração do poder – Luís XIV, na França, já alertava com seu famoso: L’Etat, c’ est moi (O Estado sou eu!). Porém, no curso da história do Estado Moderno, outros elementos foram agregados e assim permitiram não só a centralização (em torno da Administração Pública), mas igualmente a concentração do poder (em torno de um indivíduo ou de um grupo político restrito). Vejamos os elementos essenciais:

1. Estado-Nação: a densidade cultural, destacada em inúmeros momentos da história, retorna com força total, agora havendo clara equivalência entre Estado e Nação. Nesta fase, o sentimento de pertencimento ao Estado decorre desse espírito nacional e, portanto, o fator de unificação só pode ser cultural, deixando de ser a religião, a raça, a vocação militar. Sentir-se parte da cultura de todo um povo, não só local ou regional, é o sentimento que sedimentou a construção da Nação. É como se os indivíduos daquele povo fossem todos irmãos. É um sentimento quase-

universal.

2. Secularização ou Laicidade114: por esse aspecto, fortificou-se uma nítida separação entre o poder temporal e o poder espiritual, pois ambos passaram a ser tratados como esferas distintas da vida civil. Houve secularização do Estado porque daqui por diante, o Estado não teria mais a religião por base – daí o sentido proposto pelo Estado Laico: o poder político não mais terá fins ou propósitos religiosos. Portanto, os sacerdotes deixaram de ser agentes políticos do Estado.

114 Também conhecido como processo de dessacralização, pois tanto a política quanto o próprio Estado deixariam de ser sacros, santos.

3. Soberania: por esta característica definidora do Estado, deve-se entender que o Poder Público seja soberano, supremo, uno, indivisível e indisponível. Desse modo, também podemos assegurar que a soberania é una, indivisível, intransferível – aparentemente ilimitada. Este poder superior, supremo e ilimitado será utilizado sobremaneira para vencer as resistências internas à própria unificação, bem como para declarar e manter a independência externa – em relação a outro Estado-Nação. 4. Razão de Estado: o Estado levará em conta apenas os interesses públicos (da ordem da soberania nacional) e não os direitos ou os interesses individuais: o soberano não será julgado como um cidadão qualquer115. Trata-se da política que serve exclusivamente à edificação e à sustentação dos aparatos do Estado e, neste caso, o indivíduo tem seus interesses e direitos submetidos ao próprio Estado. 5. Virtuosidade: Para Jorge Miranda (2000, p. 64): “Os Estados europeus combinariam, em certa medida, as virtudes dos impérios e das Cidades-Estados. Seriam suficientemente vastos, mas conseguiriam envolver no processo político uma boa parte dos seus habitantes e criar um certo sentimento de identidade comum”. Esta virtuosidade, por sua vez, gerou mais energia para o devido aprofundamento, densidade e complexidade cultural e que favoreceram fortemente o sentimento de pertencimento a uma Nação, no interior do Estado Moderno.

6. Nomenclatura: Foi Maquiavel, no livro O Príncipe116, quem primeiro procurou expressar a idéia do Estado que busca a unidade e a centralidade. Como o conhecemos, Estado deriva de stato e este de status - designando-se uma estrutura política firme, forte, mas que também se traduz por uma Constituição ou ordem política e jurídica interna: “Daí a fortuna do termo ‘Estado’, que através de modificações ainda não bem esclarecidas passou de um significado genérico de situação para um significado específico de condição de posse permanente e exclusiva de um território e de comando sobre os seus respectivos habitantes, como aparece no próprio trecho de Maquiavel, no qual o termo ‘Estado’, apenas introduzido, é imediatamente assimilado ao termo ‘domínio” (Bobbio, 1987, p. 67). 7. Unidade política e jurídica: só há um centro de emissão de controle político e de produção jurídica. Uma vez que além de unificar os centros de poder, o Estado Moderno (soberano) trouxe unidade às fontes jurídicas, enterrando o “pluralismo jurídico medieval” e inaugurando uma outra fase em que só o Estado seria considerado fonte jurídica legítima – o monismo jurídico117.

8. “Poder amoral”: desde que sirva às “Razões de Estado”, o poder é amoral (nem moral, nem imoral) e quem lhe assegurou esse grau de desprendimento foi o chamado Maquiavelismo. Porque a relevância do Poder Público está em assegurar a unidade e a fortaleza da estrutura política estatal – a chamada Razão de Estado. 9. Papéis ou funções do Estado: I. Soberania; II. Regulação da economia; III. Representação do povo; IV. Segurança Pública; V. Controle monetário e

115 De certo modo, deve-se a essa tradição as chamadas imunidades presidenciais.

116 “Os dois tipos de Estado, as duas formas de governo que sempre houve ou que há sobre os homens ou são Repúblicas ou Principados” (Maquiavel, 2003, p. 113).

117 O mesmo monismo jurídico que permitiu a Hitler colocar toda a fé pública necessária à validação da Lei de Plenos Poderes e dela extrair os meios de exceção que lhe conviessem.

exclusividade na emissão de moedas e dinheiros. É curioso notar que se esperava do Estado mais ou menos o que se espera ainda hoje. Porém, é perfeitamente visível nos dias atuais a forma dramática e a velocidade como o controle estatal dessas funções tem diminuído drasticamente.

Quanto à estrutura básica do poder e ao raciocínio político que definem o Estado Moderno, já sabemos que passa a vigorar a idéia de centralidade e que atuam forças centrípetas118, atraindo todos para o centro de comando e de decisão. No Estado Moderno, o domínio passa do ex parte príncipe ao ex parte principio119 (momento em que ganham destaque a burocracia estatal e a unidade do poder): “Este poder do Estado foi chamado de

soberania, e a definição tradicional de soberania, que se adequa perfeitamente à

supremacia do Estado sobre todos os outros ordenamentos da vida social, é a seguinte:

potestas superiorem non recognoscens” (Bobbio, 1992, p. 11). Não se pode reconhecer

poder superior. A soberania política (uma vez que o poder é soberano, uno, indivisível e inalienável) teria de ser acompanhada também da soberania e da supremacia legislativa. Não seria possível, àquela época, que o Estado quisesse centralizar a ação política sem que tivesse pleno domínio da ordem jurídica. Aliás, quando há revolta e se revira a legitimidade da ordem jurídica, quando não se aceita o Direito Vigente e Posto, é porque a instabilidade é tal que se está muito próximo da ruptura. Como já foi mencionado, foi o Estado Moderno que promoveu a unificação política e a uniformização jurídica, ambas como elementos de base da centralização e da concentração do Poder Político. Então, pode-se dizer que o Estado Moderno produziu um duplo processo de unificação e de controle jurisdicional:

1) unificação de todas as fontes de produção jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano. Desta forma são gradualmente rejeitadas as fontes tradicionais do direito: ao costume atribuem-se efeitos jurídicos somente quando for reconhecido pela lei; a ciência do direito é cada vez mais considerada unicamente como um complexo de opiniões120

que, mesmo valiosas, nunca são vinculatórias; à jurisdição se reconhece o poder meramente secundário e derivado de aplicar as normas jurídicas de origem legislativa; 2) unificação de todos os ordenamentos jurídicos superiores e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico estatal, cuja expressão máxima é a vontade do príncipe (Bobbio, 1992, p. 12).

O Estado é absoluto porque não reconhece limites à produção do Direito e esse processo de produção hegemônica do Direito é a chave política para que o Estado e seus

118 No Estado Medieval, pode-se ver que se sustentava com vagueza, sob a ação de forças centrífugas. 119 No caso, o princípio é a própria administração do poder e da soberania, tendo em conta o que é relevante, ou seja, o Estado soberano.

120 Assim, percebe-se como os Princípios Gerais do Direito vão perdendo eficiência. Nenhuma fonte legisladora está acima do Estado e nem pode haver dualidade ou pluralidade política.

mandatários apliquem as penas sem serem contestados. O Estado Absoluto tem autorização plena para reconhecer direitos ou impor castigos e sofrimentos. Portanto, é óbvio que o Estado Absoluto não conhecerá limites jurídicos (tem poder ilimitado121):

[...] é absoluto porque tornou-se definitivamente o único poder capaz de produzir o direito, isto é, de produzir normas vinculatórias para os membros da sociedade sobre a qual impera, e portanto, não conhecendo outros direitos senão o seu próprio, nem podendo conhecer limites

jurídicos para o próprio poder. É um poder absoluto no sentido próprio da

palavra, isto é, como legibus solutus (Bobbio, 1992, p. 13).

De fato, só é soberano (inquestionável) o poder que é absoluto, que absolutamente não é contestado e/ou confrontado. O Estado de poder absoluto não tem limites jurídicos e seu maior pensador será Hobbes que, por sua vez, já vinha nas pegadas do Maquiavelismo. Hobbes, então, estará apoiado nas premissas da chamada Razão de Estado formulada por Maquiavel, para construir sua teoria do absolutismo. Trata-se da Razão de Estado (o poder e a razão a serviço do Estado), da lógica política e jurídica que sirvam ao discurso da soberania. Portanto, Hobbes também estará lutando contra a supremacia dos costumes na base legal, uma vez que a atividade legislativa deve ser exclusividade do Estado:

Nas obras de Hobbes encontra-se de fato: 1) a teoria segundo a qual a única fonte do direito é a vontade do soberano, por isso ele luta contra a supremacia que, na Inglaterra, era conferida ao direito consuetudinário (common law) [...] 2) a teoria longamente documentada nas duas obras políticas principais (De Cive e Leviathan), segundo a qual a Igreja não constitui um ordenamento superior ao ordenamento estatal porque, como ordenamento jurídico, identifica-se como o estatal [...] a tese de que os ordenamentos jurídicos inferiores ao Estado adquirem relevância jurídica somente através do reconhecimento conferido a eles pelo soberano, motivo pelo qual não podem ser considerados ordenamentos originários nem autônomos (Bobbio, 1992, p. 13).

Enfim, por Maquiavelismo se entende a expressão mais bem acabada de que o poder soberano é irresponsável, aos olhos do cidadão comum, pois há razões políticas e técnicas que os homens mortais, comuns desconhecem. Ao pensar a soberania, de fato, Hobbes não vislumbra dois termos ou uma meia-medida, pois ou se é soberano ou não se é nada, em termos políticos. Por isso, em Hobbes, poder soberano não comporta superlativo: “[...] o poder soberano é absoluto. Se não fosse absoluto, não seria soberano: soberania e caráter absoluto são unum et idem” (Bobbio, 1985, p. 107). Por essa linha, o príncipe (ou

condottiere) está acima das implicações institucionais/legais da vida civil, livre do jugo do

povo e do cumprimento até mesmo das leis morais e divinas. Se o Príncipe é bom para o Estado, para sua ordem interna e sobrevida externa, então, até mesmo certos deslizes

pessoais, morais ou certos abusos de poder e até certa tirania122 serão perdoados. Vejamos

uma clássica interpretação de Maquiavel, n’O Príncipe, demonstrando que o importante (governante, condottiere) deve ser a conservação do Estado e da sua soberania:

Quando fala das virtudes e dos vícios dos príncipes, ele não se refere às virtudes e aos vícios dos quais falam os moralistas; virtudes são as qualidades idôneas à conservação do Estado, vícios são as que levam à destruição do Estado. Falando do Duque Valentino diz: “César Borgia era considerado cruel: contudo tal crueldade tinha ajustado, unido, apaziguado e oferecido confiança à Romagna” (cap. XVIII). Este “contudo” encerra integralmente o espírito do maquiavelismo. Que importa ao político que Borgia tenha sido tão cruel? O que importa ao político é saber se aquela crueldade foi útil ou não ao “ajustamento” do Estado (Bobbio, 1992, p. 14 – grifos nossos).

A busca de apaziguamento interno do Estado deverá prevalecer, principalmente se o que está em jogo é esta soberania sem limites do Estado. A soberania e o próprio Estado devem estar acima da lei, do Direito, por causa da personificação idealizada na figura do Príncipe. Isto é Razão de Estado. Essa irresponsabilidade do Estado deve ser a regra, ao contrário do que implica e do que se aplica aos indivíduos e/ou cidadãos que formam determinado Estado, mas que, na qualidade de simples indivíduos, desconhecem as Razões de Estado, desconhecem as reais intenções e razões do Estado soberano: “Com a expressão ‘razão de Estado’ deve ser entendido que o Estado tem as suas próprias razões que o indivíduo desconhece” (Bobbio, 1992, p. 14). Sob esta Razão de Estado, toda a ordem política e jurídica que interessa diretamente ao Estado (especialmente no que toca à soberania) e que foi colocada além, acima, distante da vida civil comum, será indiferente aos anseios, desejos e direitos individuais123. Portanto, não há direitos ou interesses individuais legítimos a não ser que o próprio Estado os reconheça:

O indivíduo tem obrigações que o soberano não tem. A teoria da razão de Estado é portanto uma outra maneira de afirmar o absolutismo do poder do soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem às leis jurídicas nem às leis morais. Enquanto que, através das teorias jurídicas, se vinha afirmando a supremacia do poder estatal sobre o direito, com as teorias