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Recebendo o darshan ou o encontro com Grotowski

2 OS ANOS DE FORMAÇÃO

2.5 Recebendo o darshan ou o encontro com Grotowski

Nesse mesmo período (1990), em meio aos desafios da substituição de Luigia, houve um episódio inesperado. O TTB foi convocado por Grotowski para uma espécie de intercâmbio de dois ou três dias com o Workcenter, em Pontedera (Itália), trabalhando com o

Downstairs group77, guiado por Thomas Richards. Grotowski havia decidido abandonar a arte

como espetáculo e dedicar-se à outra extremidade da corrente das artes performativas, que ele chamou de arte como veículo . O trabalho com os grupos em Pontedera faz parte dessa fase e 78 originou obras que ficaram conhecidas sob os títulos Main Action, Downstairs Action e

Action. Grotowski (2001, p. 239) considerava importante mostrar a outros grupos, o seu

De 1987 a 1993, as atividades do Workcenter eram conduzidas por dois grupos, cada um com sua própria

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linha de pesquisa, chamados “Upstairs” e “Downstairs” (em referência ao piso do espaço ocupado por cada um). Os dois grupos eram dirigidos por Grotowski, mas o trabalho cotidiano era guiado por seus colaboradores: Thomas Richars, que guiava o Downstairs, e Maud Robart, o Upstairs (WOLFORD, 2007). Para mais detalhes sobre a arte como veículo, Downstairs Action e Action, recomenda-se a leitura de

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GROTOWSKI, J.; FLASZEN, L. Da companhia teatral à arte como veículo. In: O Teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959 – 1969. São Paulo : Fondazione Pontedera Teatro/Sesc SP/Perspectiva, 2001, p. 226 – 243; RICHARDS, T. The Edge-point of the performance. Pontedera : Documentation Series of the Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 1997, e ATTISANI, A.; BIAGINI, M. (Org.). L’Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards – Opere e Sentieri. Roma : Bulzoni, 2007.

trabalho, para que a qualidade deste fosse colocada à prova e para que dele não resultassem “questões puramente privadas, inúteis aos outros”.

Nos dias do intercâmbio, mostramos trechos do nosso treinamento de acrobacia e de dança indiana. Assistimos ao treinamento físico deles, à Downstairs Action, além de participarmos de uma sessão de cantos haitianos conduzida por Thomas Richards e Mario Biagini. Grotowski assistiu a alguns trechos dos nossos trabalhos práticos. Uma das experiências mais impactantes daquele encontro foi assistir à Downstairs Action. Thomas Richards (1997) diz que inicialmente essa montagem não se destinava ao público, mas às pessoas que dela participavam. Como descreve Thomas Richards (1997), a obra consistia de uma sequência estruturada de canções associadas a ações precisas e contato entre os atores, cujo fim era possibilitar a “transformação da qualidade de energia dos doers”. Considero interessante confrontar a descrição de Thomas Richards com minhas impressões pessoais sobre a Downstairs Action, anotadas no meu Caderno

de trabalho na ocasião do intercâmbio:

O que vi, talvez seja indescritível. Vi talvez a essência em movimento. Fui testemunha de um momento, de um acontecimento revelador. Vi seres humanos desnudados, alegres, em um estado de paz difícil de crer neste mundo. O ambiente era muito particular [...] era diferente de qualquer outra sala de trabalho que eu tenha conhecido. Mosteiro ou laboratório: é um espaço fora do mundo. Completamente isolado (até as janelas são tapadas para não permitir a visão das horas). Aquela sala me colocou imediatamente em outra dimensão, que me pareceu a dimensão justa para o desenvolvimento de um trabalho tão sincero. O sorriso, a plenitude daqueles corpos em movimento, o prazer de poderem aventurar-se livremente no próprio mundo interior...Tudo isso é muito fascinante (DUARTE, 1989-1994, p. 28).

Tudo aquilo que eu almejava alcançar no âmbito teatral materializou-se naquele encontro em Pontedera e em Downstairs Action. Aqueles atores me pareceram intensos, sinceros, felizes – as “pessoas melhores” que eu desejava ser. Meu encantamento começou pela figura angelical do jovem Mario Biagini, com seus cachos dourados, sorriso maroto e olhar curioso; foi ele quem nos recepcionou na chegada ao hermético galpão, isolado no meio da pradaria onde se localizava a sala de trabalho. Os dois dias de atividades com o

Workcenter foram extremamente intensos, e na última noite da nossa estadia houve um jantar em que Grotowski esteve conosco e nos concedeu uma espécie de entrevista coletiva informal. Ao terminar sua silenciosa refeição, ele nos disse: “Agora vocês podem fazer suas perguntas”. Não me lembro de nada do que foi dito naquela noite. Minha memória mais nítida é o sapato de Grotowski com um buraco recortado, para dar lugar ao seu imenso joanete. Essa imagem criou imediatamente um “curto circuito” na impressão que sua

presença me causou. Ao mesmo tempo em que me sentia recebendo o darshan - a visão abençoada da divindade, para os hinduístas –, eu estava, na verdade, diante de um simples mortal com seu calo no dedão do pé. A trivialidade dessa situação, reveladora das misérias humanas mais comuns, fez o “mito Grotowski” ruir durante uma fração de segundo. Mas eu era ainda muito jovem e carente de exemplos a seguir, de representantes significativos em que pudesse me espelhar; precisava de mitos, buscava gurus. Talvez por esses motivos, a força da experiência com o Downstairs group tenha incitado em mim um clamor profundo, do desejo que me dizia: “quero ficar aqui”. Acredito que esse desejo foi “captado” por Thomas Richards como se fora uma “mensagem telepática” enviada pelo meu olhar, que não podia evitar de fixar o dele.

Coincidência ou não, alguns dias depois um telegrama chega ao TTB convocando-me para participar de uma seleção de novos atores para o Downstairs group. Eles não sabiam que eu já iniciara os treinamentos para a substituição de Luigia Calcaterra. Embora na ocasião do encontro em Pontedera, eu ainda não tivesse nenhum compromisso formal com o TTB, tal situação estava prestes a modificar-se. Fiquei muito perturbada com o convite, e antes de responder fui aconselhar-me com Renzo Vescovi. Transcrevo aqui, do meu Caderno de trabalho, as anotações sobre esse episódio:

[...] Renzo [Vescovi] então me esclareceu algumas questões [...]: existia uma diferença fundamental entre essas duas “escolas” (TTB e Grotowski): Grotowski está interessado em uma técnica religiosa e não em uma técnica teatral. Do ponto de vista da técnica religiosa, eles são os melhores; do ponto de vista da técnica teatral, são limitados. Um ator, quando sai daquele grupo, encontra muita dificuldade em levar adiante o trabalho, pois não sabe fazer tantas coisas. Por isso, a formação oferecida pelo TTB, com o acesso aos mestres orientais, com o teatro de rua, com os instrumentos musicais, pode ser considerada mais completa. Lógico que eles trabalham com uma concentração muito maior, pois só fazem aquilo. No entanto, todas as outras atividades paralelas desenvolvidas pelos atores do TTB, que nada têm a ver com o trabalho do ator, são muito importantes no amadurecimento deles como atores. O TTB é um teatro com buracos. Não existe uma continuidade, pois os atores têm que se dividir em muitas atividades diferentes (DUARTE, 1989/1994, p. 81).

A conversa com Renzo Vescovi me fez desistir de candidatar-me à seleção do

Workcenter. Simultaneamente à minha decisão, Mario Biagini havia se inteirado do meu envolvimento com o TTB e retirado o convite, desculpando-se pela gafe.