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Segunda temporada no TTB e encontro com Aloka Panikar na Índia

4 IDAS, VINDAS E NOVAS ROTAS

4.1 Segunda temporada no TTB e encontro com Aloka Panikar na Índia

De 2003 a 2007, Ricardo Gomes eu estávamos de volta a Bergamo e estabeleceu- se nova relação de trabalho entre mim e o TTB. Tornei-me “atriz-colaboradora”, participando de espetáculos do grupo de forma eventual, e de outros projetos, continuadamente. Em paralelo, apresentava o espetáculo Pierino e il lupo (Pedro e o lobo), coprodução entre o TTB e o Teatro Diadokai. Minha principal função no TTB era o treinamento corporal e vocal dos alunos-atores, os mesmos jovens que trabalhavam ao meu lado num projeto de espetáculos para escolas (do ensino fundamental), que se realizava na nova sede do TTB, no ex-convento do Carmine. A nova sala teatral era pelo menos duas vezes mais ampla que a anterior, na sede da Piazza Citadella. Eu orientava o treinamento físico, seguindo o estilo do TTB: plastica, treinamento com acessórios (bastões e tecidos) e Orissi. A maioria das aulas de dança eram individuais, mas havia um grupo misto que reunia as alunas-atrizes do TTB e alunas “externas”. Também voltei a ter aulas em grupo, como aluna, com Tiziana Barbiero e/ou Luigia Calcaterra: Silvia Baudin (atriz que ingressou no grupo em 1998), Maria Grazia Pasttore (atriz de outro grupo, que fez o aranghetam comigo em 1990) e eu. Além de Orissi e do projeto para escolas, minha colaboração como atriz estendia-se também a outros projetos. Por exemplo, em 2003, participei do espetáculo Valse, em turnê à Índia, substituindo uma aluna-atriz que havia deixado o TTB; nessa ocasião, reencontrei Aloka Panikar.

Nessa segunda estadia na Índia, fui acompanhada de outros atores e atrizes do TTB, que praticavam Orissi ou Kathakali. Os primeiros quinze dias das férias-de-estudo foram organizados na cidade de Cheruthuruthy, em Kerala, região sul do país. Aloka Panikar e sua filha vieram de Nova Delhi e ficaram hospedadas na casa de John Kalamandalam, o mestre de Kathakali do TTB, onde aconteceram também as aulas de Orissi. No turno da manhã, eram as aulas realizadas Ambika Paniker, e no turno da tarde, com sua mãe. A filha de Aloka Panikar tornara-se uma excelente professora de sua especialidade como dançarina: a técnica. Seu “olho clínico” detectava em nós, as alunas, as mínimas imprecisões. Seu estilo de ensinar era menos “duro” que o da mãe. Além dessa diferença com relação a Aloka Panikar,

A principal fonte de registro de memória deste capítulo são DUARTE, P. Caderno de trabalho no 4, 2005 – 96

eu observava pequenas diferenças no ensinamento de minhas professoras: Tiziana Barbiero, Luigia Calcaterra, Aloka Panikar e Ambika Paniker. De certa forma, o sistema tradicional de aprendizagem por transmissão oral e corporal, no qual se aprende por imitação, admite eventuais discrepâncias. Variações que não alteram substancialmente o caráter da dança não representam um problema. Em sentido mais amplo, não existe uma forma absoluta de Orissi. Assim como certas tradições vivas de transmissão oral encontram-se em perene mutação, detalhes de um mesmo passo da dança podem sofrer variações ao longo do tempo. Porém, considero que o grau de propriedade que Aloka Panikar e sua filha imprimem no ensinamento da dança, inerente à matriz cultural a que essas artistas pertencem, não é comparável ao de Tiziana Barbiero e Luigia Calcaterra, apesar dos muitos anos que as atrizes italianas dedicaram ao estudo e ao ensino de Orissi.

Nessa estadia na Índia, Silvia Baudin e eu fizemos aulas juntas, e Aloka Panikar nos ensinou o Moksha, que, assim como o Batu, é um dos items de dança pura mais difíceis do repertório clássico de Orissi. Aloka Panikar conduziu as aulas sentada a maior parte do tempo. Para mim, não ter alguém à frente para imitar tornava a assimilação quase impossível. Cada aula tornava-se uma luta contra o esquecimento, mas este último acabou vencendo. Após aquela temporada na Índia, o Moksha tinha-se apagado completamente da “memória do meu corpo”. Ao contrário, o Mangalacharan Cadacit, primeiro item que aprendi em 1989, foi assimilado tão profundamente que sou capaz de lembrá-lo mesmo se fico anos sem praticar. Mas também tive a impressão que o nível de exigência de Aloka Panikar não era mais o mesmo com relação a mim. Não sei até que ponto o fato de eu não ser mais atriz integrante do TTB influía em seu grau de dedicação comigo.

Por outro lado, posso afirmar, com certeza, que o meu interesse pela dança Orissi havia-se modificado. Persistia minha perplexidade quanto à pertinência do aprendizado dessa dança nos moldes que eu havia conhecido no TTB. Tinham-se passado catorze anos desde a minha primeira viagem à Índia. Eu sentia claramente os efeitos do tempo sobre o meu corpo. Minha condição física não era ideal para enfrentar um treinamento intensivo de Orissi, de quatro horas por dia, durante quinze dias. Minha participação na turnê foi de última hora, e não houve tempo hábil de preparação física antes da viagem. Quando eu era atriz do TTB, situações desse tipo justificavam-se na lógica da “Índia do TTB”; períodos intensos e repentinos de treinamento de dança eram comuns em nossa rotina. Porém, não pude desperdiçar a ocasião de, novamente, ter aulas com Aloka Panikar; uma vez que eu não era mais atriz do TTB, as possibilidades de encontro com a mestra indiana tornariam-se cada vez

mais difíceis. Então, como prosseguir? O que fazer, fora do TTB, com a dança Orissi que eu havia aprendido? De certo modo, Pedro e o lobo tinha sido uma resposta a essa questão, muito embora eu ainda não estivesse satisfeita.

Depois da turnê à Índia, na volta à Itália, os estudos de Orissi no TTB tiveram um momento marcante: a preparação de uma versão, em trio, de um item de dança pura, o

Vasante Pallavi (Vasante: primavera, e Pallavi: elaboração). Silvia Baudin, Maria Grazia Pasttore e eu fomos as dançarinas. O nome do Pallavi é geralmente derivado do nome do

raga (escala musical) em que é composta a música que acompanha a dança; o raga inspira também o caráter particular da composição musical e coreográfica. O breve fragmento de

abhinaya (dança expressiva) que introduz o Pallavi lembra as características do raga. Assim, no raga Vasante, ou raga da primavera, a estação do ano é representada por gestos, poses e movimentos que evocam árvores em flor, pássaros que cantam, sementes que brotam, enquanto Kama, o deus do amor, reina soberano sobre a situação, disparando flechas de amor com seu arco de flores (VESCOVI, 2007).

Nessa ocasião, Tiziana Barbiero atuou como ensaiadora e como adaptadora da coreografia original, solista, para a versão em trio. Na condução dos ensaios, fui mais uma vez confrontada com o preciosismo técnico e a obsessão pela precisão no TTB, que, a meu ver, é proveniente da relação que o grupo estabeleceu com a dança indiana. Como afirma Renzo Vescovi (2007), o TTB nunca esteve interessado na originalidade, mas na perfeição; a dança indiana era vista por ele como “beleza absoluta”. Como nossa ensaiadora, Tiziana Barbiero seguia a mesma conduta de Renzo Vescovi, insistindo na repetição dos movimentos até que a angulação de cada segmento do corpo, o acabamento de cada gesto, o ritmo e a sincronia fossem perfeitos, ou quase. A noção de precisão presente no TTB deriva, em parte, do ideal de beleza desenvolvido por Renzo Vescovi, mas também da influência de Barba (1993; 2012). Renzo Vescovi valorizava na dança indiana, princípios da Antropologia Teatral (BARBA, 1993; 2003) como a dança-das-oposições, o corpo

dilatado, corpo fictício e comportamento extracotidiano, nos quais a energia despendida para produzir uma ação é maior do que a necessária na vida cotidiana, o que concede vitalidade à expressão do ator. Porém, Barba (2012) afirma que além do corpo, é preciso o ator trabalhar a mente: ao corpo dilatado, corresponde uma mente dilatada; o ator deve estar atento a não bloquear-se diante de estereótipos do corpo, de modos previsíveis e conhecidos de mover-se, desconectados da mente, que, por sua vez, pode fechar-se também em pensamentos e julgamentos estereotipados.

Apesar de serem perceptíveis em Renzo Vescovi, as influências da Antropologia Teatral, ele não utilizava a mesma terminologia criada por Barba (1993). O conceito de corpo-

orquestra, de Renzo Vescovi (2007), inspirado na dança indiana, é um exemplo de como o diretor do TTB elaborou ideias e cunhou conceitos próprios. Durante ensaios de espetáculos de dança indiana do grupo, Renzo Vescovi sempre parecia mais interessado em observar aspectos da “margem esquerda” (da técnica) que da “margem direita” (das imagens); como se o êxito do trabalho com a primeira margem conduzisse, inevitavelmente, ao mesmo resultado com a segunda. Penso, porém, que a insistência sobre a técnica pode levar o ator à esterilidade criativa ao invés de conduzi-lo à “margem das imagens”; tem-se o risco de se instaurar um terreno de “comportamentos-clichês”, que se repetem sem variação. Nesse caso, a “ponte” – que seria o processo criativo em si mesmo – que liga as duas “margens”, da técnica e das imagens, como dizia Renzo Vescovi (2007), ou entre físico e mental, como diz Barba (2012), torna-se frágil. Como sempre, não há receitas no trabalho artístico, mas cair na mecanicidade é sempre um risco que ameaça todo artista. Assim como outras técnicas aplicadas ao treinamento, a dança indiana não tem, por si só, o poder de conceder aos atores “imunidade” contra estereótipos.

Como visto, Luigia Calcaterra e Tiziana Barbiero, além de atores das primeiras gerações do TTB, pioneiros da jornada indiana do grupo, tiveram períodos de imersão mais frequentes e profundos dedicados às danças. No início, para aprendê-las não havia outro modo senão ir à Índia ou trazer os mestres indianos de dança à Itália. Mas depois de uma década de estudos intensos, os atores mais velhos do grupo passaram a ser os professores de dança das novas gerações de alunos-atores. Ao longo dos anos, a situação econômica do grupo também foi-se modificando, e o TTB não tinha mais condições de arcar totalmente com as despesas das “férias-de-estudos” de seus atores. Assim, especialmente para os mais jovens, o contato com os mestres tornou-se mais ocasional, e quando ocorria, a ênfase era aprender novos items em detrimento da técnica de base. Silvia Baudin e eu fizemos parte dessa geração de alunos-atores cujos primeiros mestres de dança indiana não foram indianos, mas italianos: os atores do TTB.

A principal consequência dessa diferença entre a velha e as novas gerações, com relação ao aprendizado da dança indiana, foi a consolidação da lógica da “Índia do TTB”, uma tradição própria do grupo que, penso, privilegiava a apropriação formal da técnica. Considero que as novas gerações do TTB viram-se, cada vez mais, precipitadas a abreviar os tempos de aprendizagem, tendo que assimilar coreografias completas baseadas em uma técnica ainda frágil. Acredito que a técnica, quando assimilada de forma superficial, é tão ou mais propensa a conduzir o artista a comportamentos estereotipados do que a técnica que se

mecaniza; é como se faltasse uma estrutura sólida, que pudesse servir de ponte em direção às imagens mentais, permitindo a superação da técnica. Conforme dito anteriormente nesta dissertação, as partituras de dança indiana constam de praticamente todos os espetáculos do TTB: de forma explícita, nos espetáculos de dança, e de forma implícita, nos espetáculos de

sala ou de rua. Acredito que, para o TTB, lidar com os novos tempos representa um grande desafio para a continuidade da relação do grupo com a dança indiana. Como o grupo lida com a própria tradição? Para mim, como atriz do Diadokai, as questões que se colocam são outras: vale a pena, ainda, investir no aprendizado de Orissi, uma vez fora do TTB? Como evitar que o treinamento em Orissi me torne um “clichê de dançarina Orissi”?