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TTB: encantamento e partida para a Itália

1 OS ANOS DE DESCOBERTA

1.3 TTB: encantamento e partida para a Itália

Dos três grupos que “aportaram” em terras cariocas em 1987 e 1988, um deles teve sobre mim um impacto especialmente significativo: o TTB. Casualmente, foi por intermédio de um grupo italiano que a dança indiana me foi apresentada em terras

brasileiras. As danças indianas do TTB resultavam de um longo percurso de investigação e de prática, mas também de escolhas, de um certo olhar e de um certo modo de apropriação dessas técnicas, como pude observar mais tarde. São marcantes as lembranças que tenho dos espetáculos de rua do TTB, com atores surgindo com seus instrumentos musicais do alto dos muros do convento de Santo Antônio e atravessando o caos do centro do Rio sobre pernas de pau, ou da imagem do “albatroz” despontando nos prados do MAM . Mas creio que a 24 experiência mais significativa foi mesmo o espetáculo de dança indiana. A intensidade expressiva, a presença cênica, a elaboração e a precisão dos gestos dos atores-dançarinos do TTB suscitaram-me um verdadeiro encantamento.

Na oficina de Orissi do TTB (no Rio), Aglaia Azevedo (companheira do grupo de pesquisa orientado por Helena Varvaki) e eu aprendemos em três ou quatro dias de trabalho, cerca de hora e meia por encontro, os primeiros fundamentos desse estilo. A oficina foi ministrada por Tiziana Barbiero. Recordo-me dessa primeira oficina como ocasião de trabalho físico extenuante, mas diverso, por exemplo, dos exercícios que levavam à exaustão física, ou das acrobacias, propostos por Luis Otávio Burnier e Helena Varvaki. As questões colocadas não diziam respeito à demolição de resistências ou à superação do medo. Em Orissi, pareceu-me que, antes de tudo, o que estava em jogo era a conquista de formas extremamente elaboradas e precisas. Era necessário dominar o corpo, modelá-lo segundo aquelas formas. Percebe-se, já nessa oficina, a ênfase no aspecto técnico

Museu de Arte Moderna, localizado no Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro.

do treinamento no TTB, que originou os conceitos de ator-menestrel, ator-lírico e corpo- orquestra (VESCOVI, 2007), apresentados na Introdução.

A manutenção das posições fundamentais da dança – tribhanga e chowka – demandava um esforço que a maioria dos alunos na oficina tinha dificuldade em sustentar. O tribhanga (FIG. 1) – posição dos três arcos – cria um desequilíbrio no eixo da coluna, pelas inclinações opostas entre cabeça, tórax e bacia. Além disso, as pernas devem manter-se flexionadas e voltadas para fora (na verdade trata-se de uma tripla- flexão envolvendo as articulações do tornozelo, joelho e quadril, somada à rotação externa da articulação coxofemural). Durante os passos, frequentemente uma perna fica livre para mover-se com o pé percutindo o chão, e a outra perna serve de base, mantendo- se flexionada e apoiada no chão. Já o chowka (FIG. 2) – posição do quadrado – apesar de

simétrico e sem desequilíbrios no eixo da coluna, exige a manutenção da tripla-flexão e da rotação externa da coxofemural em ambas as pernas, mantendo o centro de gravidade do corpo mais próximo do chão do que na posição tribhanga. A coordenação entre o movimento dos olhos, da cabeça e do tórax confere a graça e sensualidade características da dança Orissi. A primeira parte da aula de Tiziana Barbiero foi dedicada à saudação inicial, aos exercícios de aquecimento físico (até para os olhos) e aos passos fundamentais. Tudo me pareceu muito estático: os movimento não são amplos nem

FIGURA 1: posição tribhanga Fonte: MOHANTY, 1988, p. 40

FIGURA 2: posição chowka Fonte: MOHANTY, 1988, p. 40

promovem grandes deslocamentos. Orissi é uma dança que não ocupa grandes espaços. É o próprio corpo que tem o seu espaço subdividido em pequenas frações, que dialogam de forma coordenada: olhos, cabeça, tórax, braços, cotovelos, pernas, joelhos, tornozelos, calcanhares, dedos, punhos etc. Para minha grande surpresa, visto que minhas referências eram as aulas de ballet clássico que tive na infância e juventude, não havia música; todos os exercícios e passos foram acompanhados pela professora, que utilizava a percussão de um par de címbalos (pequenos pratos de bronze) e entoava sílabas que pareciam não ter significado, mas apenas uma função rítmica . Nos passos fundamentais, o corpo parece 25 dividido em dois blocos: da cintura para baixo é muito vigoroso, com os joelhos sempre flexionados e os pés que percutem o chão, marcando o ritmo; da cintura para cima, os movimentos do tórax, braços e mãos são graciosos, arredondados e contínuos. Durante as primeiras repetições, Tiziana Barbiero executava os passos servindo de modelo, para que pudéssemos imitá-la até que fôssemos capazes de realizá-los sozinhos.

Depois dessa primeira parte, cuja ênfase eram a forma e a precisão do movimento, além da precisão do ritmo, iniciou-se outra sessão de trabalho, com poses estáticas representando deuses hindus e ações como tocar instrumentos musicais. Houve ainda uma sequência de caminhadas de animais, como o cavalo ou o elefante. Praticamos também os hastas (FIG. 3) – gestos estilizados com as mãos –, cantando seus respectivos nomes numa língua estranha . Experimentamos poses inspiradas em 26 estátuas dos templos, representando a ação de tocar instrumentos musicais, ou de embelezar-se, como a pose do espelho – darpani (FIG. 4) –, em que a dançarina coloca a tilaka (sinal) na testa. Não havia qualquer traço devocional nas poses de deuses hindus (como Krishna, Shiva ou Ganesha) que Tiziana Barbiero nos mostrou. Pareceu- me não haver qualquer outro envolvimento entre ela e a dança Orissi que não fosse estritamente técnico. De fato, já transparecia, aqui, uma das motivações que levou o TTB à Índia: o domínio de uma técnica. As origens sagradas de Orissi nos foram informadas resumidamente durante a oficina.


Bole é o nome que designa as sequências de “sílabas rítmicas”, sem significado, recitadas pelo professor para

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oferecer uma base rítmica aos passos e exercícios de Orissi. A cada família de passos ou sequência coreográfica, corresponde um bole diferente.

Os hastas utilizados em Orissi provêm dos tratados clássicos Abhinaya Darpana e Abhinaya Chandryka, e

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FIGURA 3: hastas de Orissi Fonte: NANDIKESWARA, 1975, p.70-71

FIGURA 4: Aloka Panikar na pose darpani – o espelho Foto: Maurizio Buscarino – acervo da autora

Durante esse primeiro encontro com o TTB, além de assistir aos espetáculos, conferências e participar das oficinas, Aglaia Azevedo e eu estávamos tão interessadas em

Orissi que não desperdiçávamos nenhuma oportunidade para saber um pouco mais sobre essa dança. Submetíamos Tiziana Barbiero a um “bombardeio” de perguntas, até mesmo durante as refeições. Pedimos para ter aulas fora dos horários da oficina e fomos atendidas, graças à grande generosidade da atriz. Mesmo depois da partida do TTB, até a sua volta ao Brasil no ano seguinte, continuamos a praticar os rudimentos de Orissi que tínhamos aprendido. Tudo parecia extremamente difícil: as posições de base, que exigiam a manutenção dos joelhos flexionados e o centro de gravidade baixo; os gestos estilizados das mãos, que demandavam um enorme empenho mental para fazer o comando chegar no dedo certo que se queria mover; os exercícios para os olhos, que faziam as lágrimas saltarem, pela obrigatoriedade de não piscar; as poses e caminhadas sinuosas, que deveriam, se bem executadas, fazer de um elefante um animal sensual; o trabalho com ritmos duplicados, que pareciam impossíveis de serem executados pelos pés.

Em 1989, pouco mais de um ano depois de formados em Artes Cênicas, Ricardo Gomes e eu partimos para a Itália para um estágio informal no TTB. Ele pretendia investir 27 em conhecimentos de direção teatral e eu tinha como principal objetivo aprofundar os estudos de Orissi. Meus planos eram permanecer na Itália por um ano, tempo que parecia suficiente para estudar Orissi com Tiziana Barbiero e conseguir algum trabalho temporário para custear uma viagem de estudos à Índia. Desse modo, eu acreditava que seria possível retornar ao meu país com um material de trabalho consistente. No entanto, o que se verificou a seguir foi bem diverso do planejado. O estágio informal no TTB acabou convertendo-se em relação profissional, inaugurando uma longa história que teve diversas etapas e configurações. Durante cinco anos – de 1989 a 1994 – fui atriz do TTB, e de 2003 a 2007 trabalhei como atriz-colaboradora e pedagoga do grupo.

Ricardo Gomes é meu companheiro de profissão e de vida. Nossa parceria iniciou-se na graduação em Artes

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