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3 VISÃO GERAL SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA ONU NO PERÍODO DE

3.1 UMA VISÃO GERAL SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA ONU NO PÓS-GENOCÍDIO

3.2.3 Reconciliação, Memória, Justiça e Direitos humanos

Descreve-se o pós-genocídio como um período em que a população se encontra ferida de inúmeras maneiras, muitas delas se sentiram vítimadas, abusadas e violadas em questão de direitos humanos. Desta maneira era quase automática a busca por justiça, porém algumas restaurações não acontecem pelo simples fato dos perpetradores enfrentarem julgamentos e receberem suas punições. Aqui então aborda-se os três temas principais da reconstrução de Ruanda após o genocídio, a busca por justiça e respeito aos direitos humanos, o processo de reconciliação e a memória presente na sociedade.

O processo da busca pela justiça já foi mencionado algumas vezes neste trabalho, sabe-se que o Estado contava com as investigações do TPIR e com os tribunais nacionais e comunitários conhecidos como gacacas. Ambos tinham a mesma função, punir aqueles que tiveram alguma relação com os crimes ocorridos durante o genocídio. Era função da comunidade que se reunia durante os julgamentos gacacas, ouvir as vítimas e dar a elas espaço para expor o que ocorreu. Tentava-se de alguma maneira chegar a uma sensação de justiça, e ao mesmo tempo eram julgados os perpetradores cujo crimes eram o de menor grau, sendo assim alguns poderiam receber penas alternativas como restituir suas vítimas, ou compensar seus danos para então ser reinserido na comunidade (UNITED NATIONS, 1999).

Além da justiça para as vítimas, a ONU através do PNUD consolidou uma unidade de justiça para todos, esse programa tinha a intenção de estender a capacidade do acesso a justiça, promover a prevenção de futuros crimes e melhorar a eficiência do sistema judicial. Entre seus objetivos específicos estava criar um sistema de vigilância comunitária e fortalecer a construção da paz e a reconciliação através dos tribunais gacacas. Esse programa tinha a intensão de abordar pessoas em condições vulneráveis, reforçando mecanismos de justiça e mediação. (RWANDA OPERATIONS, 2008).

No decorrer dos primeiros anos que sucederam o genocídio a população ruandesa pensava apenas em buscar justiça. Com a efetividade dos julgamentos que já estavam acontecendo a algum tempo, a sociedade começou a avaliar a necessidade de uma reconciliação.

Segundo “situation of human rights” (1999, p.10, tradução nossa)47

Depois de cinco anos recusando-se a falar de reconciliação até que a justiça fosse vista, os ruandeses agora aceitam que a reconciliação deve ser um objetivo nacional por direito próprio. Esta é uma medida da nova confiança do país e merece o reconhecimento da comunidade internacional.

Assim sendo, o governo de Ruanda começava a apresentar alternativas de reconciliação promovendo iniciativas que gerassem certo clima de paz entre a população. As atividades que viabilizavam a reconciliação eram pensadas e desenvolvidas com antecedência contando com a opinião popular apresentada em debates públicos sobre assunto. A função da ONU diante da questão de reconciliação era a de monitorar essas atividades e verificar se o governo estava fazendo a sua parte quanto à nova política (UNITED NATIONS, 1999).

Após o genocídio as prioridades do governo eram proporcionar a paz e a segurança. A medida que os anos se passaram e o país saia do seu estado de emergência, o governo passou a pensar no desenvolvimento a longo prazo.

Com a intenção de promover a reconciliação, o governo de Ruanda adotou uma nova vertente às suas políticas durante o período de transição, com isso foi imposto a Política nacional de união e reconciliação. Dentro desta política estava as tentativas do governo de equilibrar a lutas diárias, como restabelecer as redes sociais e reconciliar famílias, amigos e vizinhos de uma maneira que estas práticas estivessem incluídas nas políticas de união liderada pelo Estado (THOMSON, 2013).

De acordo com “Situation of human rights” (1999, p.10, tradução nossa)48

O governo considera que a reconciliação exige, em primeiro lugar, que a divisão da etnicidade seja expurgada da história ruandesa e da vida comunitária, mas também reconhece que a reconciliação não pode ser imposta e que os ruandeses há muito tempo estão trabalhando suas próprias soluções.

Com essa iniciativa de propiciar a reconciliação entre a comunidade, o governo encorajava algumas mudanças que favoreciam tanto a superação da comunidade em relação as consequências do genocídio, como também em relação ao desenvolvimento de práticas sociais. Como exemplo dessas iniciativas o governo disponibilizou auxílio econômico para que as famílias de origem Hutu acolhessem em suas casas os órfãos Tutsis e vice e versa. Outra forma

47 After five years of refusing to talk of reconciliation until justice is seen to be done, Rwandans now accept that reconciliation must be a national goal in its own right. This is a measure of the country’s new confidence and it deserves the recognition of the international community.

48 The Government feels that reconciliation requires, first and foremost, that the divisiveness of ethnicity be expunged from Rwandan history and communal life, but it also acknowledges that reconciliation cannot be imposed and that Rwandans have long been working out their own solutions.

foi nos casos em que alguns refugiados idosos ao voltarem para suas casas e viam estas ocupadas por novos refugiados, muitas vezes de maioria Hutu, era incentivado que ambos entrassem em acordos para viverem juntos sobre o mesmo teto (UNITED NATIONS, 1999).

O governo criou então duas comissões nacionais cujo objetivo era desenvolver programas de reconciliação e união, a National Human Rights Commission e a National Unity

and Reconciliation tinham o trabalho de administrar financeiramente e tecnicamente os

mandatos que buscavam seus objetivos (UNITED NATIONS, 1999).

Segundo “Situation of human rights” (1999, p.11, tradução nossa)49

A recém-criada unidade de justiça e direitos humanos do PNUD poderia desempenhar um papel significativo neste mecanismo, juntamente com os representantes das duas comissões, para ajudar a fortalecer a complementaridade, a cooperação e a independência das duas Comissões nacionais.

Em conjunto com a política de reconciliação, o governo de Ruanda promovia a ideia da extinção da segregação étnica, uma vez que essa foi a causa do genocídio de 1994. Eles acreditam em um novo país, uma Ruanda para todos os Ruandeses50, cujo objetivo era criar uma identidade nacional unificada onde toda a população seria ruandesa, ao invés de ser Tutsi, Hutu ou outros (THOMSON, 2013).

No entanto, algumas práticas de reconciliação colocavam a população do país em situações pouco confortáveis, visto que algumas pessoas eram forçadas a conviver com outras por não terem outra escolha, estas se viam em constante dúvida sobre o fato de que podiam estar compartilhando suas vidas com possíveis assassinos. Para alguns ruandeses, a política de reconciliação é fonte de disparidades socioeconômicas e humilhação pessoal, já que muitos ainda têm dificuldades para lidar com suas exigências.

Nas palavras de Joseph M., cidadão Tutsi entrevistado por Thomson. (2013, p.115, tradução nossa)51

Eles falam sobre unidade nacional e reconciliação. Mas eles não sabem o que significa unidade ou reconciliação. Eu sei que sou um Tutsi, como eu não posso? Corri e escondi por ser um Tutsi. Agora tenho que esquecer isso em nome da unidade e da

49 The newly created UNDP Justice and Human Rights Unit could play a significant role in this mechanism, together with representatives of the two commissions, to assist in strengthening the complementarity, cooperation and independence of the two national Commissions.

50 “One Rwanda for all Rwandans!” Slogan de campanha da política de reconciliação promovida pelo governo da época.

51 They talk about national unity and reconciliation. But they don’t know what unity or reconciliation means. I know I am a Tutsi, how can I not? I ran and hid because of being a Tutsi. Now I have to forget that in the name of unity and reconciliation. Unity for whom? Reconciliation for whom? It is a political game that is the responsibility of local officials. Reconciliation is not an administrative matter; it is an affair of the heart, of accepting the wrong and then forgiving the ones who harmed you.

reconciliação. Unidade para quem? Reconciliação para quem? É um jogo político que é responsabilidade de autoridades locais. A reconciliação não é um assunto administrativo; É um caso do coração, de aceitar o errado e então perdoar os que o prejudicaram.

Há também algumas críticas quanto aos envolvidos nessas atividades, o governo expressa que a reconciliação deve ser feita principalmente entre as vítimas e os perpetradores, que após terem assumido responsabilidade e arrependimento pelos crimes cometidos, estes deveriam receber o perdão de suas vítimas, o que gera a exclusão de demais atores e suas experiências de violência (THOMSON, 2013).

Conclui-se que o processo de reconciliação é longo, visto que a população ainda carrega muitos traumas é difícil fazer com que estas se desapeguem dos rancores do passado e possam perdoar aqueles que as fizeram sofrer. Porém com as iniciativas constantes do governo e o apoio das OI’s, o Estado de Ruanda já deu início ao seu desenvolvimento e a sua recuperação. Ao longo desses 20 anos após o genocídio o sentimento de sociedade é uma das características entre a população ruandesa.

A partir dos progressos alcançados quanto à recuperação das consequências do genocídio, o país deixou de carregar a violência sofrida durante os massacres como um peso, e agora as carrega como memória. A memória do acontecimento do genocídio é hoje uma das principais características do Estado de Ruanda, é através da memória que a população relembra o que passou e como alcançaram a recuperação sem deixar de lembrar e homenagear aqueles que se foram.

Em Ruanda pode-se descrever a prática de relembrar do período de genocídio através de duas maneiras que se destacam por todo país. A primeira delas é composta pelo período de luto praticado anualmente durante todo o mês de abril, no decorrer deste mês os habitantes de Ruanda prestam suas homenagens às vítimas do genocídio, visitando memoriais e mostrando seu respeito as lembranças daquela época. Uma das características desta prática de luto, é o uso das cores que mais representam o sentimento da população, além de se vestirem de maneira respeitável, as pessoas possuem o costume de usar a cor roxa52, que em sua cultura representa esperança, a esperança que os cidadãos de Ruanda carregam desde os tempos do genocídio de que a paz e união sejam reestabelecidas (BISHOP, 2012).

52 O uso de cores facilita o entendimento e a comunicação entre as vítimas do genocídio, como é o caso de Silas Kamanda, que identifica uma conexão entre as pessoas que carregam as cores roxo ou rosa de alguma forma em suas roupas. “O roxo é mais que uma cor para nós, é também um símbolo de união”

Outra ação que possui o intuito de preservar a memória do genocídio, foi construída no ano de 2004 (quando completou 10 anos após a tragédia) o Kigali Genocide

Memorial, este memorial relembra os acontecimentos, homenageia as vítimas e promove

constantes atividades que visam a prática da lembrança e do aprendizado. Segundo Kigali Genocide Memorial (2017, tradução nossa)53

O Memorial do Genocídio de Kigali inclui três exposições permanentes, a maior delas documenta o genocídio de 1994 contra os Tutsi. Há também um memorial infantil e uma exposição sobre a história da violência genocida em todo o mundo. O centro de educação, os jardins e o Arquivo do Genocídio de Ruanda contribuem para um tributo significativo para aqueles que pereceram e proporcionaram uma experiência educacional poderosa para os visitantes.

O memorial possui a missão de fornecer um local de enterro digno para aqueles que faleceram devido as violências do massacre contra a população Tutsi, prestar informações sobre os acontecimentos além de fornecer documentações oficiais sobre o período do genocídio, ensinar aos visitantes algumas maneiras para prevenir a ocorrência de novos genocídios e também oferece suporte aos sobreviventes, incluindo em sua maioria as crianças e as mulheres viúvas.

Fotografia 1 – Memorial Kigali

Fonte: KIGALI GENOCIDE MEMORIAL (2017).

53 The Kigali Genocide Memorial includes three permanent exhibitions, the largest of which documents the 1994 Genocide against the Tutsi. There is also a children’s memorial and an exhibition on the history of genocidal violence around the world. The education centre, gardens, and Genocide Archive of Rwanda contribute to a meaningful tribute to those who perished, and provide a powerful educational experience for visitors.

Fotografia 2 – Memorial Kigali

Fonte: KIGALI GENOCIDE MEMORIAL (2017)

Desde sua abertura, o memorial promove apresentações, celebrações e festivais que relembram e homenageiam as vítimas do genocídio, e trazem para a população as memórias e a esperança de recuperação.

A construção do memorial no ano de 2004 marcou os 10 anos após o genocídio, posteriormente foi criado em 2014 o festival Kwibuka, cujo tema era o de “relembrar, unificar e renovar”54, Kwibuka significa relembrar em Kinyarwanda, idioma típico de Ruanda, com objetivo de expor as formas de reconciliação e superação assumidas pela população a fim de construir um futuro melhor.

As homenagens do Kwibuka acontecem durante um período de 100 dias, o mesmo que marcou os tempos do genocídio, essa comemoração possui algumas características como a presença de histórias reais e depoimentos de sobreviventes dos massacres. Uma chama é carregada por todo o país até chegar a capital Kigali, onde permanece acesa no memorial do genocídio até o final das celebrações (MARSHAL, 2014).

As celebrações durante o período do Kwibuka contam com a presença da comunidade internacional, como por exemplo autoridades de outros países e também de organizações internacionais e não governamentais, como por exemplo a ONU, que leva embaixadores representantes (MARSHALL, 2014).

Com isso pode-se concluir que o Estado de Ruanda apresenta grandes esforços quanto aos temas de justiça, reconciliação e memória. Apesar de muitos desafios, o governo e a sociedade buscam preservar a paz e alcançar o desenvolvimento do país adotando medidas voltadas para a comunidade, contando sempre com a ajuda de parceiros, como as atividades e programas oferecidos pela ONU e também ONGs que colaboram com o crescimento do Estado e com a reabilitação de uma nação que fora destruída.

3.3 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

No decorrer deste capítulo, foram descritas algumas formas de atuação da ONU no pós-genocídio de Ruanda, e como esta se fez presente em não só questões imediatas, como também em planos de desenvolvimento a longo prazo. A organização tinha como trabalho identificar as necessidades do país e da sua população durante o processo de recuperação.

Com a atuação da HRFOR foi possível avaliar o estado de emergência e que ações seriam tomadas, a partir disso foi consolidada a presença na ONU em Ruanda. Essa operação era caracterizada pela presença de representantes oficiais, além de tropas e voluntários que trabalhavam para resolver as consequências do genocídio, questões como a falta de proteção aos direitos humanos, a grande quantidade de refugiados e a destruição das cidades e a falta de estrutura da sociedade eram prioridade para o processo de restauração.

A HRFOR obteve muitos resultados em relação a atuação imediata que o país precisava após o conflito. Foi a partir destas atividades que a ONU começou a desenvolver alguns projetos para o desenvolvimento do país, alguns focados em setores específicos, como a educação e a reconstrução de moradias, enquanto outros tinham foco em grandes temas, como o processo de justiça e a reconciliação.

Durante este capítulo, pode-se perceber que a ONU colaborou com melhorias nas condições de vida da população de Ruanda, foi através de visitas efetuadas pelos representantes oficiais que a organização fiscalizava a reconstrução e progresso do Estado sempre considerando a necessidade dos habitantes e a situação dos direitos humanos.

Após o genocídio uma das maiores preocupações era garantir que os perpetradores fossem julgados e recebessem punição adequada pelos seus crimes, além do auxílio prestado

durante a coleta de informações sobre as violações cometidas durante o período do massacre, que mais tarde cooperariam para a construção de alguns julgamentos no TPIR, por intermédio de agências especificas, a ONU também colaborou na construção de alguns centros de detenção. Ainda sobre a situação carcerária do Estado, a ONU, prestou suporte através da UNICEF a fim de preservar os direitos básicos da infância, como a educação e as condições adequadas para criação para as crianças envolvidas no genocídio, que ou aguardavam julgamento pelos seus próprios crimes, ou acompanhavam suas mães no encarceramento.

Usou-se as organizações do PNUD e UNICEF como foco para demostrar a atuação da ONU no processo de transição de Ruanda, através de projetos como a reconstrução de vilas, o fornecimento da educação, a promoção da justiça e da democracia, preservando acima de tudo o respeito aos direitos humanos e o alcance da paz entre a população.

Estende-se um pouco o foco da atuação em áreas específicas, foi abordado neste capítulo, a reconciliação e a preservação da memória. Ambas características de um outro momento de recuperação após o genocídio, estas questões só começaram a ser tópicos de discussão depois de alguns anos. Quanto a reconciliação, primeiramente as vítimas estavam mais preocupadas com a punição dos perpetradores do que com o perdão, foi só depois que o governo implementou planos de reconciliação entre vítimas e perpetradores que as pessoas começaram a perdoar e dar mais uma chance para a reintegração nas comunidades.

Quanto ao tópico de memória, percebe-se que as lembranças do genocídio ainda se encontram vivas em suas vítimas, porém no decorrer dos anos o processo de superação foi crescendo cada vez mais, e através disso pode-se notar a consolidação dos acontecimentos como memória do país. Em 2004, o Estado inaugurou um memorial para as vítimas do genocídio, já em 2014 foi celebrado os vinte anos após o genocídio através de um festival que preserva tanto a lembrança do passado, como visa também o progresso e a superação. É através de eventos simbólicos, memoriais e períodos de luto que a memória do genocídio é preservada, que as vítimas sejam lembradas e que a população tenha consciência de que os direitos devem ser preservados, a fim de evitar a ocorrência de outro conflito.

No capítulo seguinte será feita a análise de como o papel da ONU, e consequentemente, o PNUD e UNICEF, foram relevantes para o processo de justiça de transição, e qual a importância para o Estado de Ruanda quanto as atividades realizadas durante os vinte anos após o genocídio.

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