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1. JORNALISMO E IDENTIDADES

1.4 Reconhecimento coletivo e instâncias de aparição

A negação da auto-realização a partir da exclusão do outro no discurso jornalístico cria um verdadeiro “fosso político da notícia”30 de caráter subjetivo, ao dificultar a possibilidade de reconhecimento de interesses individuais no interior do público. Essa relação, que caracterizamos como “não-outro generalizado”, têm impacto direto sobre os critérios de noticiabilidade morais levados a cabo nas coberturas. Atentam às características ordenadoras das democracias liberais, reinterpretam discursos sociais segundo recortes do real tornados informação pública. Os movimentos sociais, que abrem a perspectiva de ralações ampliadas de reconhecimento e de diferentes representações da comunidade social, se veem, com isso, condicionados a formas de aparição pré-estabelecidas, seja a partir da negação do conflito, da ilegalidade ou das consequências trazidas pela ação.

Pode-se considerar duas instâncias dessa busca por reconhecimento nas comunidades de comunicação. A primeira delas diz respeito às relações informais de sublimação de uma situação de desrespeito individual para um grupo mais próximo, ou seja, se insere,

inicialmente, numa abertura do “I” citado por Mead (1992), intersubjetivamente, aos “outros significativos” ou próximos, como possibilidade de tipificação de argumentos para um determinado grupo. Passam a gerar um horizonte subcultural das experiências de desrespeito. É o primeiro compartilhar de uma resistência coletiva por legitimidade social. A segunda instância se refere à publicização do discurso desses grupos na esfera pública política. Nesse processo de ligação entre o pessoal e o coletivo, e entre o coletivo e o geral (sociedade), o “outro generalizado” possui papel determinante, sobretudo no que diz respeito à atuação do campo do jornalismo. Nas sociedades complexas, essa relação não pode ser entendida sem a influência da onipresença midiática. Como dispõe Honneth (2003, p. 115), “apenas as experiências de sofrimento que ultrapassaram os limites dos meios de comunicação de massa são, usualmente, admitidas como moralmente relevantes, e nós somos incapazes de tematizar temas voltados às injustiças sociais desprovidos da atenção do público”.

Assim, o recorte de construção do real disposto na notícia encampa um papel central na tematização dessas “questões-limite”. As instâncias informais de comunicação, desde a interação inicial entre atores (primeira instância), compõe uma rede de encontros discursivos que podem gerar fluxos mais complexos e abrangentes. A visibilidade no idioma público da mídia (segunda instância) não pode se dar sem se levar em consideração essa agenda mínima de formação (informal) da vontade na esfera pública. Esse trânsito se relaciona diretamente com a não-generalização do outro, ou, como abordamos ao tratar dessa ambivalência estrutural no campo do jornalismo, contribuem para o reconhecimento dessas assertivas como atitudes legítimas no escopo social. Também atentam à intervenção do campo político, reelaborando propostas e sugerindo outras possibilidades de decisão. Essa incorporação de diferentes interpretações gesta uma inclusão do outro sob outro prisma, reinscreve, enquanto opinião pública, as fronteiras de atuação entre as acepções de (inter)subjetividade e da ação coletiva quando da mudança nos âmbitos político e jurídico.

Sobre este ponto, Melucci (1996) irá identificar uma fase “visível” e outra “latente” das ações coletivas. O processo de formação da dimensão pública atinge diversos níveis de cooperação e de interação entre atores antes da maturação midiática. Nesses casos, embora não sejam tão perceptíveis como nos momentos de interação pública, os sentimentos de solidariedade e pertecimento também se constituem como representações nítidas na fase de “latência”. Afinal, a identidade é nutrida por ações “escondidas” de um número reduzido de atores. “São precisamente estes grupos menores os responsáveis por reproduzir e criar as

condições de renovação das ações coletivas, bem como por originar as novas ondas de públicos que precedem as mobilizações” (DELLA PORTA e DIANE, 2006).

A conexão objetiva entre os movimentos sociais, derivados de ações e identidades coletivas, e a segunda instância adquirem maior ressonância quando interpõem os fluxos informais e institucionalizados no enfrentamento por novos direitos e proposições. Habermas (1997, p. 42) admite que “somente após uma ‘luta por reconhecimento’, desencadeada publicamente, os interesses questionados podem ser tomados pelas instâncias políticas responsáveis, introduzidos nas agendas parlamentares, discutidos e, eventualmente, elaborados na forma de proposta”. A transformação de responsabilidades formais por práticas que existam efetivamente passam, desse modo, pela concretização de resoluções políticas ou definidas no campo do direito. O que não significa a negação da desobediência civil como aporte legítimo por mudanças sociais, nem da pressuposição de um dissenso na construção de novos argumentos.

Ao referencial jornalístico é também atribuída a percepção desses fluxos de “comunicação sem sujeito”, isto é, dos discursos informais na esfera pública como potenciais discursos formais na tematização de assuntos outros. Afinal, esse “público fraco” é, quando cruzado numa rede pública e inclusiva de subculturas, sujeito da “opinião pública”. A percepção inteligível desse mundo de referência, próprio ao campo do jornalismo, pode admitir uma dimensão reflexiva da construção da notícia, que corresponde, simultaneamente, às reivindicações dos “invisíveis” na esfera midiática e, ao mesmo tempo, à análise das zonas de dissenso entrelaçadas nessas reivindicações direcionadas a uma formalização do conflito tornado público. Atua, como avalia Mead, como condição para enriquecer normativamente nossas representações da comunidade social. Corresponde à possibilidade de identificação individual com as reivindicações postas em causa por diferentes atores (distanciados espacialmente), gerando novas interpretações e adesão às respostas dadas às experiências de desrespeito, antes restritas a um âmbito privativo. Pode-se aferir, portanto, que um dos processos gestados na segunda instância, como resultado dessa reflexão na composição da notícia, pode corresponder, nas palavras de Honneth (2003), a uma “luta coletiva por reconhecimento”.

A revisão desses “costumes em comum” (THOMPSON, 1998), ou da reprodução hegemônica de determinados marcos político-jurídicos, retornam sob a ótica da intersubjetividade num reforço à auto-realização. O que se torna “comum”, nesse patamar, é a resistência coletiva e o reconhecimento de “si-próprio” em relação a uma comunidade de

comunicação futura. Nessa trilha, a luta, quando de uma coletividade, alimenta também a ação individual, estimula a participação e revisa atitudes consideradas ilegítimas de atores formais (institucionalizados) respaldadas por um status quo. Essa dinâmica recoloca o campo do jornalismo como um dos cernes nas estratégias de tipificação e de publicização dos movimentos sociais. Ao contrário da não-generalização do outro, seguindo um enquadramento mais próximo de uma exclusão discursiva, deve-se atentar para a abertura ao debate e à incorporação legítima de reivindicações sociais que assegurem a pluralidade de argumentos. Uma superação que pode corresponder a diferentes níveis de intervenção sobre o exercício do poder político e também à geografia de fontes jornalísticas, em geral, presa aos mesmos lugares e espaços de fala.

Em sentido amplo, essa deslimitação da subjetividade, funda outras interpretações acerca do papel do jornalismo. A revisão desses critérios morais de promoção da notícia e o expressivo vínculo com o espaço cedido à participação política no ideário liberal-democrático assentam outros eixos de discussão, sobretudo no que confere à relação entre o campo jornalístico e atuação dele no espaço público político. A expressão desse apelo da opinião às instâncias formais, como canal de formação da vontade, admite novos desafios entre a mídia e as ações coletivas.