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3. MÍDIA E ATORES COLETIVOS

3.2 Movimentos sociais na imprensa pernambucana

3.2.4 Renúncia ao reconhecimento e aos direitos humanos

O jornalismo atua na construção da realidade como palco principal para visibilidade nas sociedades complexas. Essa disputa por fontes, argumentos e apuração dissemina temas e também contribui na consolidação ou violação de direitos. O direcionamento público dos movimentos sociais aos atores políticos e ao universo dos media guarda esse caráter “ofensivo” de revisão do mundo social. Os atores coletivos redefinem, portanto, barreiras com o campo político, lançam no idioma comum novas proposições, alargando a esfera de direitos. Como argumenta Mouffe (1996, p.17), o processo democrático exige esse choque de posições, um conflito aberto de interesses. “Quando isto falta, poderá ser (...) substituído por uma confrontação entre valores morais não negociáveis e identidades essencialistas”.

Essa inflexão por direitos sob a ótica das lutas sociais pode ser tomada com o estabelecimento dos direitos individuais de liberdade, dos direitos políticos de participação e a criação dos direitos sociais e de bem-estar89. De acordo com Honneth (2003, p. 192), esses dois últimos direitos “surgem numa sequência de ampliação, forçada “a partir de baixo”, do significado que se associa à ideia de “igualdade de valor”, própria da condição de membro de uma “comunidade política”. Assim, torna-se patente que a privação dos direitos fundamentais, com o não reconhecimento simbólico, atinge também o auto-respeito dos grupos excluídos, dificultando sua inserção no debate público. Honneth (2003, p. 198) cita o exemplo do movimento negro por direitos civis nos EUA, entre as décadas de 1950 e 1960, como uma das situações históricas excepcionais de reconhecimento jurídico coletivo. Uma situação em que

89 O estabelecimento desses direitos não se dá necessariamente nesta ordem, sobretudo quando leva-se em conta países como o Brasil, que teve os direitos civis e políticos cassados durante a Ditadura Militar (1964 – 1985).

“a tolerância ao sub-privilégio jurídico conduz a um sentimento paralisante de vergonha social, do qual só o protesto ativo e a resistência poderiam libertar”.

O nexo de abertura à visibilidade dos atores coletivos consiste, desse modo, na apresentação das reivindicações em pauta, dos motivos e contextos de seu surgimento. A possibilidade de torná-las parte do discurso midiático, como procedimento político, atenta para a capacidade do jornalismo de articular demandas na esfera pública e contribuir, portanto, na formação de uma opinião não apenas para a disputa por direitos previstos legalmente, mas na percepção da norma como estatuto carente de revisão, aberto à justificação e a potenciais novos direitos (HABERMAS, 1989).

Embora existam registros de reportagens que não reconhecem a motivação dos movimentos, os jornais pernambucanos atingiram os melhores resultados neste indicador, se afastando de uma “renúncia ao reconhecimento”. O DP legitimou a reivindicação dos atores coletivos em aproximadamente 91% do total de notícias. Em seguida, aparecem a FPE, com 86,5%, e o JC, que assegurou a representação das motivações em 79% dos casos, como mostra a tabela 17 (abaixo). Esse desdobramento das lutas sociais mostra-se, assim, vínculado de um “jornalismo possível” reafirmado pela imprensa pernambucana. O reconhecimento da causa, quando apresentada a outras audiências, amplia as possibilidades argumentativas do movimento, dando a conhecer situações que antes poderiam permanecer invisíveis a setores do público. A aparição dessa “constelação discursiva” contribui efetivamente para uma democracia com características deliberativas, por expor as demandas que, em sentido amplo, se constituem como uma das razões da existência organizada desses atores.90

Tabela 17:

Reconhecimento da causa (JC) Reconhecimento da causa (DP)

90 No entanto, é importante lembrar que o fato de dar a conhecer a ação coletiva não implica, necessariamente, maior disposição ao debate, como o número de versões clarifica.

Reconhecimento da causa (FPE)

A pesquisa também avaliou se houve associação entre a causa ou reivindicação dos movimentos com os direitos humanos. Diferente de outros direitos, a referência a estes tem implicações diretas na efetivação ou na violação de garantias fundamentais. Entendidos como conjunto inter-relacionado dos direitos políticos, civis, culturais, econômicos e sociais, estão no cerne dos objetivos pressupostos pelos atores coletivos. Contudo, de cada dez matérias sobre os movimentos na imprensa pernambucana, sete não evidenciam qualquer menção aos direitos humanos. Entre os veículos estudados, a FPE admite o maior grau de distanciamento entre a motivação e esses direitos, com 86%. Em seguida, aparecem o JC, com 72,6%, e o DP, que apresenta 66% (ver tabela 18, p. 126).

O ato de negligenciar a relação entre a notícia e os direitos humanos (ação que se trata, em muitos casos, da razão da reivindicação) assume uma clara inversão nos parâmetros jornalísticos para além das técnicas e do tempo para reportar o fato. Um processo que ultrapassa a noção de tipificação do acontecimento, assume intencionalidades reais. A partir dessa pressuposição, pode-se reconhecer que o jornalismo recorre a dispositivos retóricos, estereótipos que se expressam em convenções narrativas de um interdiscurso localizado.

Tabela 18:

Reconhecimento e Direitos Humanos (JC) Reconhecimento e Direitos Humanos (DP)

Reconhecimento e Direitos Humanos (FPE)

Essa postura também repercute no potencial de mobilização da esfera pública em zonas de intervenção entre países. Bohman (2007, p. 31) advoga que os direitos humanos, quando distanciados de um discurso instrumental, podem se constituir como “principal demanda de reposta às situações de injustiça e de violação” na política transnacional. Também relaciona tais direitos às políticas adotadas em âmbito local, que passam a contar com outros apoios da comunidade internacional e de públicos críticos reunidos por novos contextos comunicacionais. Reforça, nesse sentido, a “suprassunção” (HABERMAS, 2002), na cobrança de responsabilidades ao Estado. Neste ponto, é interessante notar como determinadas bandeiras dos movimentos possuem maior grau de associação a esses direitos em relação às demais. Na cobertura de temas como a reforma agrária, por exemplo, a não

associação atinge 66,7% dos casos no JC, 80% no DP e 100% na Folha de Pernambuco. Situação parecida ocorre com os movimentos que possuem como reivindicação o direito à moradia: o DP aparece com 33%, seguido pelo JC, com 57,1%, e pela FPE, com 90%.

Apesar de ambas as causas terem como pilares os direitos humanos, os jornais pernambucanos parecem ignorar esse referencial no recorte da realidade que dispõem nas notícias. Outro fator a ser considerado corresponde ao fato de esses movimentos lutarem por questões de natureza distributiva, com agenda e pauta de reivindicações bem definidas, como é o caso dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Sem-Teto (MTST). A não associação ocorre com menor frequência, ao contrário, nos movimentos identitários e culturais (gênero, etnia e geracional). Embora o índice ainda seja alto, pode-se perceber uma variação nas causas vinculadas aos movimentos homossexuais, cujo percentual de não associação aos direitos humanos foi de 20% no JC, 63,3% no DP, e de 63,7% na FPE -, e afrodescendente, que obteve a não associação em apenas 20% dos casos na FPE e de 0% no JC. O DP, neste quesito, apresentou- se como exceção, com 100% dos textos desses atores coletivos sem qualquer referência aos direitos humanos.

A cobertura da Primavera Árabe, marcada por discursos em prol dos direitos humanos, também obteve associação reduzida. A desvinculação a esses direitos chegou a 71,3% no JC, 57,7% no DP e 73,3% na FPE. Os grupos ligados à categoria do trabalho, como os sindicatos, atingem a maior média de distanciamento: 95,4% na FPE, seguido pelo JC, com 90,3%, e pelo DP, com 72,5%. Durante os seis meses de análise, os jornais não realizaram qualquer menção aos movimentos sociais que lutam pelo direito à comunicação. As representações indígenas e as questões de gênero também foram pouco retratadas, sendo citadas em apenas duas e três notícias, respectivamente91. O processo reitera a noção de públicos fracos

(FRASER, 1991) ou invisíveis (HONNETH, 2003), que tem suas lutas por reconhecimento negadas em âmbito discursivo. A constituição desse aparato simbólico alarga as esferas de marginalização, ao compor uma narrativa que representa interesses de uma audiência consumidora e se distancia da deliberação política em torno de reivindicações legítimas no espaço público.