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3. MÍDIA E ATORES COLETIVOS

3.2 Movimentos sociais na imprensa pernambucana

3.2.2 Versões e renúncia do debate

Como linguagem, o jornalismo não está distanciado dos processos sociais que reporta, refletidos constantemente no modo como o conteúdo da notícia é descrito. A criação de técnicas, estratégias de narratividade sobre o acontecimento, agregam uma série de postulados objetivos, uma sobreposição do fato em relação ao sujeito, o produto humano da notícia mais próximo da natureza do que do discernimento. No entanto, na abordagem dos movimentos sociais, parte dessas técnicas, mesmo as pautadas nos critérios de objetividade, parecem esquecidas. A renúncia dos acontecimentos e das problematizações políticas dos movimentos é também acompanhada pela redução dos espaços de debate. Atores da sociedade civil, representantes do campo político e de setores do mercado apresentam suas versões sobre os fatos isoladamente, sem o intercâmbio entre as visões de mundo ou posicionamentos opostos. O pressuposto do diálogo torna-se, nessa atitude, receita de manual antiquado, substitui a fé nos procedimentos pela ausência de crítica.

A construção desse discurso de ausências pode ser exemplificada segundo as aparições do acontecimento descritas por Tuchman (1999): a apresentação das possibilidades de conflito; exposição de provas que comprovem o noticiado; o uso das aspas e a sequência de exposição dos enunciados. Esse suporte semântico, baseado numa gramática de leis e regras de produção, dá conta do ambiente de tensão (redações) na tentativa diária dos jornalistas de reproduzir a realidade. Apesar das críticas diversas que essa crença na objetividade tem recebido, ela segue como um elemento-chave assente no modelo liberal de jornalismo, assinalada até mesmo pelos que não concordam totalmente com seu conceito. O argumento toma partido nos moldes específicos de produção da notícia. Por esse viés, a falta de critérios objetivos recairia na lógica do “vale tudo”, o que acarretaria uma crise de legitimidade nos periódicos. Partindo de outra proposta, tem-se a busca por uma concepção consensual da verdade, iniciada, formalmente, com a disseminação de argumentos diversos para a tomada de decisões e deliberação no espaço público. A escuta de “outros lados” mantém-se, desse modo, como atributo indispensável ao pluralismo e ao papel democrático dos jornais no idioma público da mídia, sobretudo ao captar argumentos distintos (ou à margem) no espaço público, como expressão de um “jornalismo possível”.

Contudo, como mostra a tabela 12 (p. 110), em praticamente metade dos casos os textos sobre os movimentos sociais aparecem com apenas uma versão. No JC, esse percentual chega a 46,7%. Em seguida, tem-se a FPE, com 46,3%, e o DP, com 40,6%. A falta de pluralidade disposta nas notícias atenta para uma redução do alcance das reivindicações desses atores coleitivos em relação ao campo político. A busca por respostas razoáveis aos

conflitos (cobrança ao corpo legislativo, judicial ou administrativo), determinante da própria inserção da sociedade civil no universo midiático, é também deixada à revelia. A mediação proporcionada pelos jornalistas imprime uma redução da crítica e descomprometimento com a apuração das assertivas postas em causa. A produção desses discursos fragmentados alarga as lacunas entre a sociedade civil e o poder público, revela a inexistência de um embate dialógico que torne claro as possibilidades de consenso e obscurece as questões de conflito próprias da democracia. Essa discursividade monológica origina uma atrofia argumentativa, isto é, deixa de compreender o conjunto de enunciados indispensáveis ao acesso externo e de mobilização a partir dos embates na esfera pública.

Tabela 12: Versões (JC) Versões (DP) Versões (FPE)

Por isso, como trata Habermas (2002), o sucesso da comunicação pública80 não se mede pela ‘produção de generalidade’, mas sim por critérios formais do surgimento de uma opinião pública qualificada, que, por sua vez, depende de fluxos episódicos de discussão. O ato de argumentar, desse modo, assume lugar de decisão na estrutura administrativa, envolve outros públicos em torno de posições, podendo impulsionar oportunidades de engajamento com base na opinião e na tarefa política em pauta. Com o recrudescimento do diálogo, a participação e a compreensão sobre o fato no público não só fica comprometida, como também parece destituída de sentido racional-informativo. O jornalismo, numa perspectiva de deliberação, deve, sobretudo, tornar comum esses elementos, indispensáveis no acúmulo de experiências para legitimar instituições ou validar decisões e normas.

Outro componente fundamental nessa relação diz respeito aos textos que possuem uma ou mais versões, sem ceder, no entanto, espaço aos movimentos sociais. Essa renúncia ao debate se inscreve como negação da própria oportunidade de fala. Perpassa o processo de seleção do acontecimento como noticiável, mas retém o posicionamento dos atores diretamente envolvidos na ação. No geral, centram a narrativa nas consequências trazidas pela manifestação no espaço público e se preocupam em ouvir primeiro as fontes responsáveis pelo retorno à ordem, como o poder administrativo, a polícia ou as entidades patronais. Nos casos em que foram registrados mais de uma versão, a porcentagem de menções com esse viés variou entre 14,6% (JC), 14% (DP) e 12,6% (FPE), como demonstra a tabela abaixo. Tabela 13:

Mais de uma versão (JC) Mais de uma versão (DP)

80 O termo, nesse caso, difere da referência à comunicação pública utilizada no cap. II. Trata-se, de modo mais abrangente, de toda comunicação formal (discussão) ocorrida no interior do espaço público.

Mais de uma versão (FPE)

Como exemplo, tem-se a cobertura do DP sobre o protesto dos camelôs no Centro do Recife, em novembro de 2010. Naquele momento, a prefeitura havia iniciado uma política de regularização do comércio informal e exigia a retirada dos ambulantes para um novo reordenamento e padronização da venda de produtos e alimentos nas ruas. Tal medida desagradou as associações e o sindicato da categoria, que decidiram protestar contra o poder público no dia previsto para retirada dos camelôs. A ação levou à determinação de um “caos” por parte do jornal, que impôs, entre outras formações discursivas, a expressão, própria da narrativa de uma guerra, “toque de recolher”:

“Comércio de portas fechadas, trânsito parado, tumulto, corre-corre e muita boataria. Ontem o Centro do Recife teve um final de tarde caótico. A um mês do Natal, as pessoas que transitavam nas principais ruas do comércio da cidade não corriam em busca de promoção, mas por medo81” (DP, 26/11/2010).

*

O ´toque de recolher` foi dado por comerciantes informais que se dividiram em pequenos grupos em pontos estratégicos como as ruas da Imperatriz, da Palma e das Calçadas. Segundo a polícia, eles espalharam a falsa notícia de

que estaria havendo um grande arrastão no Centro.

Apenas duas fontes foram ouvidas na notícia. A prefeitura, responsável pela ação no Centro, e a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), representante do comércio “legalizado”:

“O programa de restruturação Recife! Nosso Centro, anunciado terça-feira, não será modificado. ´A prefeitura até pede desculpas pela ação, mas não tem como desapropriar um local alertando antes. É interessante que a categoria perceba que o comércio vai ter que ser regulado e isso não tem retorno`, resumiu Amir Schvartz” [secretário municipal de Controle, Desenvolvimento Urbano e Obras] (c.f.).

81 Grifos nossos.

*

“A Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) ainda não contabilizou os prejuízos causados pelo tumulto. ´É claro que houve perdas, porque a população ficou intranquila e deixou de comprar. Os comerciantes também ficaram inseguros`, disse o coordenador do Centro de Apoio ao Lojista, Paulo Monteiro” (c.f.).

A reportagem não evidencia, sequer, as colocações dos comerciantes não ‘legalizados’, bem como dos seus representantes institucionais, o Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Informal de Pernambuco e a Associação dos Ambulantes do Bairro da Boa Vista. Embora represente um universo reduzido no total de textos, essa ausência discursiva tem impacto direto sobre a imagem pública das entidades e da assertiva política levada a cabo. O assunto, por exemplo, tornou-se capa da edição do DP, contribuindo para um enquadramento negativo junto aos demais públicos, a dizer, uma “imagem roubada” ao movimento e prensada como manchete. Conforme argumenta Shudson (1999, p. 289) “não há somente uma narrativa da política nas notícias; as notícias são parte da política da forma da narrativa”, o que atesta a linha tênue entre legitimidade, interesse e público na construção do noticiário.

Com as notícias de única versão, essa relação se deu de modo diferenciado entre os jornais. No caso do JC, a situação chega a se inverter: 45% das versões são do movimento contra 55% que não o são. O DP mantém uma margem parecida, com 53,6% dos textos com a versão dos movimentos contra 46% que não os ouvem. Na FPE, com cobertura marcada pelo posicionamento de sindicatos trabalhistas, a mudança atinge patamares significativos. Ao todo, 83% das reportagens escutam exclusivamente os atores, como mostra a tabela:

Tabela 14:

Única versão (JC) Única versão (DP)

Única versão (FPE)

Com efeito, a afirmação do discurso único sem o posicionamento dos movimentos sociais demonstra como a lógica ordenadora e liberal de determinados veículos se sobrepõe como critério-notícia determinante. Pautada nos discursos oficiais de líderes ocidentais, os protestos democráticos no Oriente Médio responderam por 46,7% (JC) das matérias que não ouviam os atores coletivos, seguido por 39,5% (DP) e 35,7% (FPE). Os movimentos sindicais também se mostraram diretamente afetados, sobretudo em virtude da greve no complexo portuário de Suape. A cobertura mostrou a falta de apuração em 13,3% (JC) dos textos, 31,6% (DP) e 28,6% (FPE). Por último, aparece a reforma agrária, sob enquadramento expressivo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os grupos que rediscutem a questão agrária não foram ouvidos pelos repórteres em 8,9% (JC) dos casos, 10,5% (DP) e 14,3% (FPE).